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Ministério da Educação
CAPES

Volume 13, Número 4, Out/Dez - 2009

PESQUISA

  

Vulnerabilidades de adolescentes com vivências de rua

 

Vulnerability of adolescents with street-life experience

 

Vulnerabiidades de los adolescentes de la calle

 

 

Camila Rose Guadalupe Barcelos Schwonke I; Adriana Dora da Fonseca II; Vera Lúcia de Oliveira Gomes III

 I Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem/ FURG. Enfermeira da Universidade Federal de Pelotas. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Enfermagem, Gênero e Sociedade - GEPEGS. Brasil. E-mail: kmila.enf@ig.com.br,
II Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta e Diretora da Escola Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Enfermagem, Gênero e Sociedade - GEPEGS. Brasil. E-mail: adriana@vetorial.net,
III Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Titular da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Enfermagem, Gênero e Sociedade GEPEGS. Brasil. E-mail: vlogomes@terra.com.br

 

 


 RESUMO

 Estudo exploratório-descritivo, qualitativo, efetuado nos meses de maio e junho de 2006, com o objetivo de discutir o contexto de vulnerabilidades em que estão inseridos os adolescentes que vivenciaram o ambiente de rua, com ênfase na exposição à infecção pelo HIV. A História Oral foi a técnica escolhida para a coleta dos dados, que foi operacionalizada por meio de entrevistas individuais gravadas e transcritas. Os informantes foram seis moças e seis rapazes que se encontravam acolhidos em duas instituições de abrigo de uma cidade do Rio Grande do Sul, Brasil. Os dados revelam que a baixa escolaridade e o barato das drogas os expõem a riscos, e que, acerca da camisinha, ainda há contradições. Tais fatores aumentam a vulnerabilidade às DSTs e AIDS, tendo em vista que o ambiente da rua não oferece condições necessárias à tomada de decisões conscientes, somando-se ao fato de estarem distantes do acesso a serviços e profissionais de saúde.

 Palavras-chave: Saúde do Adolescente. Vulnerabilidade. Doenças Sexualmente Transmissíveis. Pesquisa Qualitativa. 


 ABSTRACT

 This exploratory, descriptive qualitative study took place in May and June of 2006. The main purpose of this research was to discuss the context of vulnerability experienced by adolescents with street-life experience, with emphasis on their exposure to HIV/AIDS. Oral History was the method choosen for the recollection of data for this investigation, achieved through individual interviews that were first recorded and then transcribed. 12 adolescents were interviewed six female and six male participants - that lived in two shelters in a city of the state of Rio Grande do Sul, Brazil. The data demostrated that low education levels and cheap drugs exposes them to risks. Another aspect that was discovered, is that the use of condoms still seems to be contradictory. These factors increase the vulnerability of adolescents to HIV/AIDS& STDs, if we consider that the street environment does not provide conditions necessary for making informed decisions, adding to the fact that they are far from access to services and health professionals.

 Keywords: Health of the Adolescent, Vulnerability, Sexually Transmissible Disease, Qualitative research.


 RESUMEN

 Estudio exploratorio-descriptivo y cualitativo efectuado en los meses de mayo y junio del 2006, con el objetivo de discutir el contexto de las vulnerabilidades experimentado por adolescentes que vivieron en el ambiente de calle, enfatizando el riesgo a ser infectados por VIH. La Historia Oral fue la técnica elegida para la colecta de los datos, realizada mediante entrevistas individuales grabadas y transcritas. Los entrevistados fueron seis muchachas y seis muchachos que estaban acogidos en dos instituciones de abrigo en una ciudad de Rio Grande do Sul. Los datos revelan que la baja escolaridad y el precio barato de las drogas los exponen a riesgos, y en lo relacionado con la utilización del preservativo, todavía hay contradicciones. Tales factores aumentan la vulnerabilidad a las EST y Sida, teniendo en cuenta que el ambiente de la calle no ofrece condiciones necesarias para tomar decisiones conscientes, sumandose al hecho que estos jovenes están lejos de tener acceso a los servicios y profesionales de la salud.

 Palabras claves: Salud del Adolescente. Vulnerabilidad. Enfermedades Sexualmente Transmisibles. Investigación Cualitativa.


 

 

INTRODUÇÃO

 Na busca por conceituar a adolescência, diversos autores a concebem como uma fase singular, de profundas transformações, que ocorre no intercurso da infância e a vida adulta,1-3 podendo ser compreendida a partir de diferentes critérios, ou seja, cronológico, do desenvolvimento físico, sociológico, psicológico, ou da combinação dos mesmos, sendo uma fase marcada por um elenco de mudanças físicas e psicológicas conflituosas, permeada por necessidades de autoafirmação.

 Do ponto de vista cronológico, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)4 define a adolescência como o período da vida do indivíduo que compreende a faixa etária dos 12 aos 18 anos.

 Enquanto evento biologicamente determinado, a puberdade é inerente a todos, já a adolescência como evento sociocultural nem sempre é acessível àqueles que se lançam precocemente ao mundo da rua. Nestes casos, aspectos importantes do desenvolvimento humano ficam comprometidos. A situação de abandono e afastamento do núcleo familiar acaba por impedir esses adolescentes de conviverem com a possibilidade do respeito, tão necessário nessa fase, de usufruírem espaços socializadores, como a escola, bem como outros mais íntimos e até acolhedores como o próprio quarto.5

Experimentar a crise do adolescer no ambiente de rua pode fomentar e perpetuar condutas marginalizadas e o acesso ao uso e abuso de drogas, como forma de alívio às tensões impostas pelo meio social e pela própria fase de desenvolvimento.

Outro aspecto relevante nesta fase da vida é a influência que o grupo de amigos tem para o adolescente, ou seja, existe uma necessidade de pertencer a um grupo de iguais, com quem possa se identificar, sofrendo da mesma forma pressões deste grupo para se autoafirmar, para demonstrar que é "adulto" e não mais criança, devendo constantemente dar provas desta sua transição2,6. Contudo, tais pressões podem ter efeito negativo, quando o universo do adolescente é a rua, visto que, nessa situação, a própria cobrança do grupo pode determinar o rompimento do adolescente com os laços familiares e, consequentemente, sua permanência no ambiente da rua, bem como sua adesão a comportamentos de risco.5

É necessário considerar que, em sua essência, o adolescente é um ser vulnerável, ou seja, predisposto a inúmeras situações de risco, oriundas de um sentimento de imunidade que o habita. Tal sentimento, aliado ao de onipotência, comuns nessa fase, fazem com que o adolescente acredite que nada pode acontecer consigo, pois é um ser jovem e saudável.

Conseqentemente, costuma se expor mais a situações vulneráveis principalmente a relacionamentos amorosos instáveis, cuja atividade sexual não contempla o uso de preservativos, seja por preconceitos morais ou de gênero, aumentando significativamente as chances de exposição às doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e à AIDS, sendo essas situações potencializadas pelo viver no mundo da rua. 6-7

Atualmente a AIDS vem tomando proporções assustadoras entre a população adolescente. O primeiro caso de AIDS em jovens brasileiros foi notificado em 1982 e desde então, foram identificados 54.965 casos, sendo 10.337 entre jovens de 13 e 19 anos e 44.628 entre os de 20 e 24 anos.8

Diante do exposto, na busca por compreender o fenômeno em que se configura a infecção pelo HIV na adolescência, optou-se por discuti-lo a partir de um contexto de vulnerabilidade, que se acredita potencializado pela característica "ser adolescente".

O adolescente nem sempre se encontra preparado para processar as informações de que necessita na hora de tomar uma decisão, fato este que não representa apenas oposição aos pais, como na maioria das vezes aparenta, mas uma limitação biológica. Assim, em vez de "analisar os vários ângulos de uma questão, ele toma decisões por blocos" 3:56.

Essa dificuldade de gerenciamento na tomada de decisões pode ser fortemente influenciada por sentimentos inerentes ao próprio processo de ser adolescente como, por exemplo, o sentimento de onipotência. Esse sentimento lhe confere a sensação de estar acima de tudo e de todos, é como se nada fosse forte o bastante para desestabilizar o seu mundo. É sentir-se imune a qualquer possibilidade de prejuízo.3 Tal relação de invulnerabilidade do adolescente com o mundo se processa de várias formas e em diferentes contextos, produzindo, no âmbito das questões de saúde, comportamentos de risco que os tornam mais suscetíveis à infecção pelo HIV.5

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa exploratório-descritiva, com abordagem qualitativa, cuja técnica escolhida para a coleta de dados foi a História Oral. Foram informantes doze adolescentes que em algum momento de suas vidas moraram na rua, mas no momento da entrevista estavam em instituições denominadas Casas Lares que acolhem os jovens oriundos da rua em uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. Todos estavam sob tutela institucional no momento da coleta de dados.

Os dados foram coletados no período compreendido entre maio e junho de 2006, por intermédio de entrevistas semiestruturadas, individuais, conforme o roteiro elaborado especificamente para este fim, gravadas e transcritas na íntegra. A opção por essa técnica fundamentou-se no fato de ela proporcionar a interação do pesquisador com os informantes.13 Os adolescentes foram identificados por meio de pseudônimos, escolhidos por eles no momento das entrevistas. O critério para encerramento das entrevistas foi a saturação dos dados.

Foi utilizado ainda um diário de campo no qual foram registradas as impressões da entrevistadora acerca do ambiente, dos adolescentes e das expressões não verbais, tais como gestos, expressões faciais, risadas e silêncio, que permearam os momentos de contato com os jovens.

Imediatamente após a transcrição dos dados buscou-se sistematizar, analisar e discutir as informações colhidas, amparadas no referencial teórico e em autores que desenvolveram estudos relacionados ao tema.

Foi solicitado ao promotor da vara da infância e juventude do município onde se localizam as instituições o consentimento por escrito para a realização da pesquisa. Também foi solicitada uma autorização à coordenação das instituições além da anuência dos adolescentes, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido do Participante. Assim foram respeitados todos os preceitos éticos legais inclusos na Resolução 196/96 que trata sobre pesquisas com seres humanos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, de uma universidade do sul do Brasil, sob o nº 059/06.

Como recurso analítico, utilizou-se a análise de conteúdo na modalidade temática.13 A operacionalização foi construída a partir das etapas de ordenação dos dados, classificação dos dados e análise final, elegendo-se nestas etapas as categorias analíticas, que nortearam a interpretação dos resultados.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo foram apresentados e discutidos em duas etapas. Na primeira, procurou-se delinear o perfil dos adolescentes que contribuíram com a pesquisa e, na segunda, descrever e analisar o elenco de vulnerabilidades que emergiram das histórias dos jovens e que originaram as seguintes categorias: Baixa Escolaridade: limitada às possibilidades de escolha; Drogas: o "barato" que expõe; e Camisinha: práticas e contradições.

As seis meninas apresentavam idades entre 12 e 14 anos. Todas estavam regularmente matriculadas no ensino fundamental, quatro cursavam a quarta série, e as outras duas, a quinta e a sétima série, respectivamente. Quando indagadas sobre o tempo de permanência nas ruas, duas relataram fugas diárias, porém sem permanência noturna na rua, ou seja, retornavam para suas casas no período da noite; e as demais referiram períodos entre dois dias e um ano.

Os seis meninos tinham idades mais elevadas que as meninas situando-se na faixa dos 13 aos 17 anos. Um referiu ter interrompido os estudos na quinta série, três informaram estar cursando regularmente a quinta série; um, a oitava; e o outro, a primeira série do ensino fundamental O tempo de permanência na rua também se mostrou mais prolongado que o das meninas, oscilando entre um mês e seis anos. Dois adolescentes relataram fugas frequentes das casas-lares para a rua.

Baixa escolaridade: limitada às possibilidades de escolha

Especificamente neste estudo, por estarem nas Casas-Lares, os adolescentes eram obrigados a frequentar uma instituição de ensino; ficou constatado que somente um dos rapazes não estava matriculado, os demais se encontravam cursando o ensino fundamental.

Todos eram alfabetizados, mas tinham baixa escolaridade. Com exceção de três adolescentes, apresentavam idade para estar no ensino médio, porém a maioria estava cursando a quarta ou a quinta série, estando um dos rapazes com quinze anos de idade, ainda cursando a primeira série do ensino fundamental. Apesar desse contexto de exclusão, reconhecem que, para melhorarem de vida, precisam estudar:

[...] quero trabalhar, quero ser um advogado ou até mesmo fazer um curso pra mim trabalhar. (Patrick, 17 a)

Entendem-se as dificuldades apresentadas pelos adolescentes para conciliar o processo de educação formal com a sobrevivência.

Eu tento, tá! Pro colégio eu ia...,[mas} se eu não arrumasse dinheiro eu não comia dentro de casa, se eu não arrumasse serviço, se eu não buscasse dinheiro eu não comia, e é isso daí. (Gersel, 15 a)

Nesta perspectiva, estes jovens apresentam dificuldades em adaptar-se ao ambiente escolar, e o rendimento nos estudos é baixo, o que produz desinteresse e consequente evasão escolar. Eles são frequentemente reprovados e acabam saindo da escola sem ter aprendido quase nada além de escrever o próprio nome.14

Portanto, as exigências impostas pela família acerca da necessidade de "trazer dinheiro para casa", aliadas ao desinteresse pela escola - pois o sistema escolar geralmente desconsidera o universo do adolescente que está na rua, acabam comprometendo o futuro desses jovens na medida em que não lhes é proporcionada qualificação profissional. Cria-se ou mesmo intensifica-se um círculo vicioso, no qual sem escolaridade as oportunidades são escassas e a escassez de oportunidades os impede de frequentar a escola.

A rua, nesse sentido, oferece mais oportunidades que a escola, o que gera indivíduos com limitadas possibilidades de escolhas, pouca informação e, consequentemente, mais vulneráveis.

Drogas: o "barato" que expõe!

Dentro deste contexto de vulnerabilidades, identifica-se uma tendência acentuada do adolescentes ao consumo de drogas. Quatro dos entrevistados relataram em suas histórias o uso de alguma substância psicoativa, quando imersos neste ambiente.

Na rua que eu tava cheirando cola e fumando maconha [...] eu gostava mais era de cheirar cola, andar na rua, ficar até tarde, até as cinco da manhã e dormir no meio do calçadão. (Patrick, 17 a)

Ah! Eu usei cocaína, eu usei craque, usei maconha, usei cola, tinner, mas nunca droga injetável. (Katiuscia, 14 a)

O tipo de droga mais comumente utilizada entre meninos de rua é a cola de sapateiro, seguida da maconha, o que reforça a representação social do adolescente de rua como mal vestido e com um saco ou tubo de cola nas mãos.14

Em relação a essa questão, a literatura diz que a utilização de inalantes por adolescentes de rua, em especial cola e tinner, tem mais a ver com um comportamento social do que com a condição de tóxico-dependente, ou seja, ele não só modifica as sensações do indivíduo, mas principalmente faz com que o jovem participe das atividades do grupo, fortalecendo o sentimento de pertencimento ao mesmo.15

O álcool também é relatado como droga consumida por esses adolescentes, sendo muitas vezes a primeira droga utilizada pelo jovem, ainda dentro da própria família, provavelmente por ter maior aceitabilidade e caráter lícito,2 como refere a respondente a seguir:

Minha mãe deixava eu beber. Não era ela que me dava. Eu tomava escondido. (Emanuele, 12 a)

Viu-se anteriormente que o jovem possui necessidade de pertencer a um grupo de iguais com quem possa se identificar, e, nesse sentido, o uso de drogas pode configurar-se como uma prova de identificação.

As consequências do consumo de substâncias psicoativas podem estar imbricadas com fenômenos como o da violência e o da disseminação do HIV, seja pelo compartilhamento de seringas contaminadas, seja pela atividade sexual desprotegida. Nesse contexto, a intenção não foi desvelar o padrão de consumo destes adolescentes, mas sim salientar que, estando sob efeito de qualquer substância psicoativa, os jovens tornam-se mais vulneráveis, na medida em que apresentam comportamentos de risco, como o envolvimento em situações de violência e a não utilização de preservativos durante as relações sexuais, como relata a adolescente Katiuscia:

Ah! Eu nem dava muita bola! Por causa que drogada a gente não pensa em usar camisinha ou isso e aquilo, sabe! Mas sempre eu vinha na minha cabeça de usar camisinha mas aí os guri: ah...tá drogada... nem sabe o que tá falando. (Katiuscia, 14 a)

Por outro lado, um adolescente relatou que quando estava "chapado", ou seja, sob ação da droga, não se envolvia com ninguém, só curtia o efeito que ela produzia, e ainda comenta sobre a situação de violência que vivenciou.

Nunca curti guria chapado, tia. Porque eu nunca chegava em nenhuma guria. Eu ficava sempre viajando, mas sempre na consciência de não chegar em ninguém, ficava num canto sozinho, pra não dá nada pra mim. Porque uma vez tomaram um tênis novinho que eu tinha, quebraram a pau, não deu pra ver quem era porque eu tava assim com a mão na cara, assim eles roubaram o meu tênis e o meu tubo. ( Maicom, 16 a)

Contudo, em outras falas, o adolescente comenta seu envolvimento sexual com uma garota de rua que admitia ter AIDS, porém enfatiza o uso de camisinha para se prevenir. Ele ainda demonstra uma preocupação muito grande quanto aos sintomas da AIDS, o que pode levar a pensar que em algum momento da vida ele se expôs a uma situação de risco, quer estivesse drogado ou não.

Ela gosta de fazer sexo com o cara, depois que já tá ela pega e diz que tem Aids. Ainda bem que eu tava de camisinha, ela quis me jogar na cara, não sô bobo, né tia! Ela ainda pensou que ia aprontar comigo ah é! Tá loco! Bobo eu não sou tia. Oh tia, a Aids quanto tempo dura, tia. De vida é? Bah! É que dá medo aí às vezes, tu vê vários aí secando por causa de Aids, me dá uma baita pena assim... de ver os cara bem sequinho, assim... tá loco! Eu não tenho Aids, tá loco! Graças a Deus, eu nem quero pegar, não tenho doença nenhuma eu. (Maicom, 16 a)

Da fala de Maicom salienta-se também o sentimento de onipotência que frequentemente habita os jovens, quando ele relata que não é "bobo", afastando para longe de si qualquer situação de risco que o poderia atingir; ou seja, ao sentir-se onipotente, o jovem acredita estar acima de tudo e de todos.

Camisinha: práticas e contradições

O sentimento de invulnerabilidade se processa em vários contextos e em diversas situações. Os adolescentes reconhecem a necessidade de prevenção das DSTs/AIDS e da gravidez não planejada.

Eu tava sempre me preocupando, mas eu pensava... não... tem que usar, com esse senhor eu usava (camisinha), porque... capaz que ele ia querer me engravidar, nem eu também queria filho, né! (Katiuscia, 14 a)

[...] a camisinha é contra a Aids e eu sempre tive medo de Aids, então eu gosto de fazer com camisinha mesmo. [...] sexo assim... sem camisinha é o maior problema que depois engravida e a gente não tem condições de sustentar. Sexo é muito fácil, se não tomar cuidado, quando a gente vai transar, ou até mesmo fora do abrigo, não tem muito cuidado acaba botando filho... ou até mesmo pegando alguma doença (Patrick, 17 a)

Que eu acho que não pode... não pode ficar sem camisinha. Eu acho que se não pega Aids. (Paulo, 13 a)

É melhor tu te prevenir do que pegar uma Aids por aí. (Gersel, 15 a)

É quando queria fazer sexo curtia as guria... de tudo que é jeito, mas sempre prevenido, né tia! Sempre com camisinha. (Maicom, 16 a)

O adolescente João apresentou um conhecimento mais amplo em relação às DSTs e AIDS, atribuindo a esta última signos de fatalidade, como algo que não tem cura, resultado também encontrado por outro pesquisador16.

Antes mesmo, antigamente vinte anos atrás se pensava em gonorreia; gonorreia agora é um troço ali simples, bah! Agora a Aids mesmo já é bem diferente, tu pega deu né! Não tem o que fazer, tu vai ficar condenado. Bah! Tá loco! Claro, sem camisinha nunca. Tá loco se eu pego Aids, ou até engravido, pego um cancro mole, um troço, o cara fica condenado. (João, 16 a).

Contudo, observa-se nas suas histórias que nem sempre o discurso preconizado pelos adolescentes se traduz em prática, tendo em vista que relataram situações em que o uso do preservativo foi ignorado ou mesmo utilizado de forma inadequada, o que sugere a exposição às DSTs, HIV e gravidez, caracterizando um conhecimento fragmentado e superficial sobre o assunto que não se traduz no seu sentir e viver cotidiano.16

Eu não usava camisinha com os outros. (Katiuscia, 14 a)

Eu sempre me preveni. Só tive uma vez só que eu não tinha (camisinha) e ela não tinha. (Gersel, 15 a)

Se vou fazer sempre é com camisinha e sempre uso duas com as mais vagabundas, a gente usa duas, se estoura uma tem outra de reserva que a gente tá usando por baixo, não tem perigo. ( Patrick, 17 a)

A troca de parceiros entre adolescentes que vivenciam o mundo da rua é frequente, potencializando o risco de contaminação por HIV e outras DSTs. Neste estudo evidenciou-se que os garotos apresentam certo desprezo pelas meninas que vivenciam o mesmo contexto social,12 o que pode ser percebido na fala de João.

Eu conheço um monte de gente, não vou falar quem né! Conheço um monte de gente que ficava com essas guria e agora tão tudo com bichinho, tão tudo com a Aids. (João, 16 a).

No decorrer das entrevistas, verificou-se que apenas um dos meninos referiu a atuação prévia de profissionais distribuindo camisinha na rua ou a sua ida a uma unidade básica de saúde para obtenção da mesma. Também uma das adolescentes relatou sua preocupação com os cuidados de saúde, pela utilização de serviços específicos, uso do anticoncepcional e realização de exames como o citopatológico de colo uterino, porém demonstrando descontinuidade com os referidos cuidados.

Ah! Antes tinha é que agora né! A gente vai no postinho, compra... (João, 16 a)

Eu até fiz o pré-câncer, quando eu tava na rua eu fiz o pré-câncer. Eu fui no postinho, fiz o pré-câncer, tava tomando pílula, depois parei de tomar. Não cheguei a fazer exame de sangue, ia fazer mas [...] aí passou da data. (Katiuscia, 14 a)

Como se pode verificar, há uma lacuna entre esses jovens e os serviços e profissionais de saúde. A dificuldade de acesso aos serviços de saúde, aliada à pobreza, à violência e à exploração sexual, potencializa a vulnerabilidade dos adolescentes ao HIV, 17 tornando-se imprescindível que a rua passe a ser um campo de visibilidade e atuação dos profissionais e serviços de saúde.

 

 

CONCLUSÃO

Diante do exposto, considera-se que os adolescentes com vivências de rua se apresentam mais vulneráveis à infecção pelas DSTs, AIDS e gravidez, tendo em vista que a rua, enquanto seu contexto social, não oferece condições propícias a uma tomada de decisão consciente do que vem a ser melhor para si; além disso, o acesso do grupo aos serviços de saúde é precário e as poucas informações que têm sobre saúde sexual, geralmente são errôneas.

A maioria das ações que hoje são desenvolvidas em relação à prevenção de DSTs/AIDS e gravidez na adolescência está restrita aos ambientes sociais legitimados, ou seja, aqueles que a sociedade considera como adequados para que o adolescente frequente, como, por exemplo, as escolas, negligenciando a existência do jovem no contexto da rua.

Se faz necessário que os profissionais de saúde e os responsáveis pelas instituições de atendimento e proteção ao adolescente percebam a necessidade de trabalhar as questões de infecção do HIV/AIDS com esses sujeitos, na perspectiva de promoção de responsabilidade sobre suas próprias escolhas.

Urge a necessidade de desenvolver ações que resgatem a cidadania de adolescentes que vivenciam o cotidiano das ruas, permitindo-lhes tomar decisões mais conscientes em relação à sua saúde e à de seus pares.

Cabe aqui salientar que no ECA estão previstos os direitos da criança e do adolescente, como o acesso à escola, à saúde, à profissionalização, entre outros; porém, observa-se que muitos destes direitos não saíram do papel, pois não configuram ainda ações do Estado e da sociedade, o que potencializa as situações de vulnerabilidade e exclusão social sofridas por jovens com vivências de rua.

Dessa forma, considera-se de suma importância a inserção da Enfermagem e de outras profissões com interesses afins no ambiente de rua, com o intuito de minimizar os processos de exclusão destes adolescentes. No entanto, se fazem necessários a reavaliação da assistência e das práticas educativas que vêm sendo realizadas, o conhecimento do mundo em que estes jovens estão inseridos e o desenvolvimento de tecnologias de intervenção voltadas a suas reais necessidades, respeitando seus saberes e sua cultura.

Enquanto profissão, a Enfermagem pode contribuir para a minimização do processo de exclusão social, pela adoção de ações estratégicas, planejadas e compartilhadas, capazes de romper com os limites das instituições de saúde, incluindo, dessa forma, aqueles que estão fora dessas áreas circunscritas.18 Quando o enfermeiro se aproxima do adolescente de rua, precisa compreender que ele não é um simples receptor de suas orientações e cuidado, mas sim o próprio sujeito capaz de transformar e ressignificar sua realidade, pela conscientização da necessidade de realizar suas próprias escolhas, diante de um elenco de possibilidades que lhe pode ser apresentado.

O atendimento a adolescentes e crianças de rua torna-se emergente, requerendo sensibilização dos profissionais envolvidos, conscientização da situação de exclusão social, abordagem dos aspectos que contemplem o ambiente de rua, interdisciplinaridade e, principalmente, vínculo adolescente-profissional.18 O profissional enfermeiro, dotado de tais características, pode realizar suas intervenções com sucesso, à medida que conseguir cada vez mais penetrar no mundo da rua, entendendo como se dá a relação/fusão adolescente/rua, identificando pontos de conflito e sustentação que, em um primeiro momento, são apenas o produto de uma fase de observância.

Somente após apropriar-se dos significados do ambiente de rua para o adolescente é que o enfermeiro poderá iniciar sua atuação, que precisa se dar a partir de uma perspectiva de aproximação e de valorização do sujeito e de seu locus. Aconselha-se não emitir quaisquer juízos de valor sobre suas escolhas e/ou infrações cometidos anteriormente, primando-se pelo estabelecimento de vínculos.17

O enfermeiro que deseja efetivar o cuidado de enfermagem com os adolescentes, trabalhando questões de sexualidade e gênero, independentemente de estarem no ambiente de rua, precisa despojar-se da visão biologista com que tais temas vêm sendo abordados, voltando seu cuidado para o campo do desejo e da felicidade, que emergem da elaboração e ressignificação dessas questões para o indivíduo.

 

 

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Recebido em 16/03/2009
Reapresentado em 28/08/2009
Aprovado em 21/09/2009

 

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