Volume 13, Número 4, Out/Dez - 2009
PESQUISA
Cotidiano de mães-acompanhantes-de-filhos-que-foram-a-óbito: contribuições para a enfermagem oncológica
Daily of mothers-companions-of-children-that-were-to-death: contributions for the oncologic nursing
Cotidiano de madres-acompañantes-de-hijos-muertos o fallecidos: informaciones para la enfermería oncológica
Dayse Mary de Souza Carneiro I; Ivis Emília de Oliveira Souza II; Cristiane Cardoso de Paula III
I Enfermeira plantonista da seção de Pediatria/Hematologia Infantil do Instituto Nacional do Câncer (INCA), Especialista em Oncologia pelo INCA, Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEAN/UFRJ). Membro do Núcleo de Pesquisa de Enfermagem em Saúde da Criança (NUPESC-EEAN/UFRJ). Brasil. E-mail: dayanjo@terra.com.br,
II Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela UFRJ. Professora Titular de Enfermagem Obstétrica do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil da EEAN/UFRJ. Pesquisadora do NUPESC (EEAN/UFRJ). Orientadora da Dissertação de Mestrado que deu origem ao artigo. Brasil. E-mail: ivis@superig.com.br,
III Enfermeira. Especialista em Enfermagem Pediátrica. Doutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ. Professora Adjunta no Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria/RS (DENFE/UFSM). Líder do grupo de pesquisa: Cuidado à Saúde das pessoas famílias e sociedade (DENFE/UFSM). Pesquisadora do NUPESC (EEAN/UFRJ). Brasil. E-mail: cris_depaula1@hotmail.com
RESUMO
Objetivou-se compreender o significado de ser-mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito -por-doença-oncológica. A entrevista fenomenológica com 14 depoentes permitiu a captação dos significados que foram analisados como estruturas essenciais do fenômeno com base no referencial teórico-metodológico heideggeriano. Compreendeu-se que o ser-mãe significou: ser forte para tudo, mas na hora crítica da perda do filho sentiu necessidade de ter alguém ao seu lado; ser confortada por outras mães-acompanhantes/voluntários; contar com apoio familiar, institucional, governamental; ter muita dificuldade para aceitar o tratamento e a perda do filho; ter esperança de cura; querer que houvesse um jeito melhor de se falar que não há mais o que fazer. Na instituição, isso é registrado como Fora de Possibilidade de Cura Atual. A hermenêutica desvelou o sentido da impessoalidade do ser-mãe-aí-com no cotidiano assistencial. Diante dos significados/sentidos desvelados, conclui-se pela possibilidade de um cuidado singular e solícito, mediado pela empatia, em um movimento existencial dos profissionais de saúde sendo-com as mães.
Palavras-chave: Saúde da Criança. Enfermagem Pediátrica. Oncologia. Filosofia em Enfermagem. Existencialismo.
ABSTRACT
It aimed at understanding the meaning of be-mother-companion-of-child-that-was-to-death-due to-oncologic-disease. The phenomenological interview with 14 deponents permitted the captivation of the meanings that were analyzed as the phenomenon´s essential structures through the heideggerian theoretical-methodological reference. It understood that the be-mother meant: be strong for everything, but in the critical hour of the child´ s loss felt the need of having someone next to her; be comforted by other mothers companions/volunteers; count on familiar, institutional, governmental support; have great difficulty to accept the treatment and the child´s loss; hope for the cure; desire that there would have a better way of telling that there are no more to do. In the institution it is registered as Out of Present Cure Possibility. The hermeneutical unveiled the meaning of the impersonality of the being-there-with in the assistance daily. Before the unveiled meanings/feelings, it concludes by the possibility of a singular and helpful care, mediated by the empathy, in an existential movement of the health professionals being-with the mothers.
Keywords: Child Health. Pediatric Nursing. Medical Oncology. Philosophy, Nursing. Existentialism.
RESUMEN
El presente estudio tuvo como finalidad comprender el significado de ser-madre-acompañante-de-hijos-muertos por-enfermedad-oncológica. La entrevista relativa a este fenómeno con 14 entrevistados, permitió la captación de los significados que fueron analizados como estructuras esenciales del fenómeno con base en la referencia teórico-metodológico heideggeriano. Se comprendió que el ser-madre significó: ser fuerte para todo, pero en la hora crítica de la pérdida del hijo sintió necesidad de tener alguien a su lado; ser confortada por otras madres acompañantes/voluntarias; contar con apoyo familiar, institucional, gubernamental; tener mucha dificultad para aceptar el tratamiento y la pérdida del hijo; tener esperanza de cura; querer que hubiese un modo mejor de hablarse que no hay más lo que hacer. En la institución eso es registrado como Fuera de Posibilidad de Cura Actual. El análisis de la interpretación develo el sentido de la falta del ser-madre-ahí- en el cotidiano de la asistencia. Delante de los significados/sentidos revelado, se concluye la posibilidad de un cuidado singular y solícito, mediado por la empatía, en un movimiento existencial de los profesionales de salud siendo-con las madres.
Palabras-clave: Salud del Niño. Enfermería Pediátrica. Oncología Médica. Filosofía en Enfermería. Existencialismo.
INTRODUÇÃO
O estudo é fruto de inquietações decorrentes do acompanhamento das crianças em tratamento oncológico, que não tiveram outro desfecho além do óbito. No cenário hospitalar, quando em estágio avançado da doença, essas crianças são tratadas paliativamente. Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)1, está garantido o direito de um acompanhante, o qual na quase totalidade são as mães, que acompanham seus filhos na internação. No entanto, as mães encontram-se fora do processo assistencial, considerando que suas necessidades, carências, sentimentos e medos não estão incluídos no cuidado.
Esse dispositivo legal provoca necessariamente um pensar e um agir humanizado da equipe de saúde no cuidado tanto às crianças quanto aos seus acompanhantes.
Chega-se no século XXI com a proposta de tentar mudar o paradigma dominante na área da saúde, centrado na doença e não na pessoa. Para isso, a Enfermagem vem desenvolvendo uma maneira de olhar a saúde da criança incluindo sua família.2
No dia-a-dia assistencial, no ambiente hospitalar, a atuação profissional se detém na dimensão dos fatos e sinais, sintomas e reações do paciente, diagnósticos e prognósticos da doença e esquema do tratamento. Em oncologia, observa-se um foco no biológico e na resolutividade do processo patológico, pois se dedica ao enfrentamento clínico do câncer. Parece que os profissionais dispõem de tempo reduzido para atentar à dimensão das vivências, das representações, das subjetividades do adoecimento. Os profissionais de Enfermagem se envolvem na rotina da enfermaria tanto na prestação dos cuidados à criança quanto nas orientações aos familiares sobre a doença e o ambiente hospitalar.3-4
Esta rotina assistencial não envolve só a criança, pois, em função do ECA, a instituição hospitalar está voltada para a presença das mães nas enfermarias, acompanhando seus filhos.5-10 As mães-acompanhantes permanecem na enfermaria junto aos seus filhos, tanto durante o tratamento curativo quanto no tratamento paliativo, quando a criança que tem câncer é considerada fora de possibilidade de cura atual (FPCA). Essa presença materna evidencia que não somente a criança necessita de cuidados, mas sua mãe também necessita de atenção e apoio, pois vivencia as dores e os medos decorrentes do processo de adoecimento e morte.3-5 Essa situação justificou o desenvolvimento do presente estudo.
Pelo quadro clínico, os profissionais sabem quando pode ser a última internação da criança. Indicam, assim, poucas prescrições terapêuticas, restando apenas aquelas que fazem parte da manutenção do quadro, e não mais da vida. Os profissionais, em sua maioria, estão qualificados para muitos afazeres que objetivam a cura, mas, quando não é mais possível alcançá-la, o cuidar se torna difícil.
Sendo assim, apesar do avanço tecnológico no campo do tratamento oncológico, ainda se evidencia, com frequência nas instituições hospitalares especializadas e de referência, o óbito de crianças por câncer. Considerando que esse processo de adoecimento e morte é vivido pelas mães-acompanhantes, o objetivo desta investigação foi compreender o significado de ser-mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito-por-doença-oncológica.
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
A investigação é de natureza qualitativa, com abordagem fenomenológica e referencial teórico-metodológico heideggeriano.11-12 A fenomenologia busca desvelar o objeto de estudo, não apenas o que é o fato, mas como o fenômeno é em seus significados e sentidos. Podemos dizer que o saber buscado pela fenomenologia não é um saber sobre o fenômeno, mas do fenômeno. É o que se denomina como um saber imanente compreendido mediante a redução fenomenológica, que se refere à suspensão de pressupostos. Essa redução acontece na obtenção dos depoimentos durante etapa de campo e na escuta e leitura atentivas durante a etapa de análise. Para isso, busca-se excluir o que se sabe sobre os fatos, referente aos conhecimentos já produzidos. Isso possibilita a abertura do pesquisador em busca da compreensão existencial do fenômeno, para alcançar o objetivo livre de pressupostos acerca do objeto de estudo.13
Após a aprovação do comitê de ética (052/07CEP/INCA), a pesquisa teve como técnica de acesso aos significados a entrevista fenomenológica.14-15 Os depoentes foram mães-acompanhantes cujos filhos foram a óbito em uma unidade de internação de doença oncológica. O número de depoentes não foi predeterminado, visto que a etapa de campo mostrou o quantitativo de entrevistas necessárias para responder ao objetivo da pesquisa. Então, com 14 entrevistas findou-se essa etapa, uma vez que os significados expressos nos depoimentos contemplaram as estruturas essenciais do fenômeno de investigação, aquilo que anuncia o desvelamento do sentido.16
A entrevista é considerada fenomenológica porque, mediada pela empatia, procura a redução de pressupostos, de modo a concretizar o encontro existencial.13 A empatia é a primeira ponte ontológica que relaciona um sujeito, dado de imediato como sozinho (o pesquisador), a outro sujeito, que de imediato é inteiramente fechado (o depoente), possibilitando a abertura para o desvelamento de um determinado fenômeno (a questão de pesquisa).12
A partir das transcrições dos depoimentos captados nesse encontro pleno de intersubjetividade, as falas foram ouvidas repetidas vezes, para o desenvolvimento do primeiro momento metódico heideggeriano: análise compreensiva.11 Primeiramente, visa à apreensão dos significados: o quem e o vivido de ser-mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito-por-doença-oncológica. Essa captação se faz de forma atentiva, reportando-se ao encontro, juntamente com suas singularidades, expressas/significadas por cada uma das depoentes. Sem qualquer pré-julgamento das falas, busca-se distinguir os significados expressos pelas depoentes, captando aqueles referentes às estruturas essenciais, que sustentarão a formação/constituição das unidades de significação (US).11
Após destacar as estruturas essenciais dos depoimentos, foi possível construir a compreensão das depoentes em seu conjunto sobre o vivido de ser-mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito-por-doença-oncológica. Heidegger denomina essa compreensão de vaga e mediana, localizada na instância ôntica e factual.11 Essa etapa metodológica é composta pelo discurso fenomenológico que integra os significados expressos pelas depoentes nas entrevistas; é a descrição da compreensão das próprias mães de como se sentiram, refletiram, significaram e se comportaram no processo do cotidiano vivido no acompanhamento da internação hospitalar de seus filhos. Entende-se que só essas mulheres são capazes de, por meio de suas expressões, colocarem suas significações no que elas próprias experienciaram. Que elas sofrem somos capazes de saber onticamente, mas é necessária uma abordagem da instância ontológica para alcançar como é, como acontece e qual o sentido desse sofrimento. O saber ontológico é possível por meio de uma compreensão existencial.
Assim, o discurso fenomenológico da compreensão vaga e mediana é constituído de noções (estruturas essenciais), que explicitam os significados e possibilitam desvelar os sentidos do fenômeno, enquanto realização de uma intenção. Não questiona por quê, ou seja, a causa do fenômeno, aquilo que o condiciona ou determina; mas questiona para quê, a finalidade do fenômeno, a intenção a que o fenômeno responde.14
As US são apresentadas por um cabeçalho expressivo. Esse cabeçalho engloba os trechos dos depoimentos que as constituem e podem ser mostrados como ilustrações. Constrói-se, assim, o conceito vivido, que é o fio condutor para o segundo momento metódico heideggeriano: análise interpretativa, também denominada hermenêutica.11 O texto da compreensão vaga e mediana, iluminado pelo referencial teórico heideggeriano, permite desvelar os sentidos velados, no cotidiano, "na maioria das vezes e quase sempre antes de tudo" pelos significados.11:44 Assim, a dimensão do vivido, que é fenomenal, foi desvelada mediante a interpretação dos significados, que velam o fenômeno, no cotidiano assistencial.
Inicialmente, apresentam-se os resultados da investigação, a partir das US, cujo cabeçalho é seguido da compreensão vaga e mediana do ser-mãe-acompanhante. Posteriormente, apresenta-se a hermenêutica, que desvelou dois sentidos: o do ser-aí-com na cotidianidade e o da impessoalidade no cotidiano assistencial hospitalar.
RESULTADOS
os significados de ser-mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito
A US1 expressa "ser forte para tudo, mas na hora crítica da perda do filho sentiu necessidade de ter alguém ao seu lado". O ser-mãe-acompanhante reconhece que teve que ser forte, desde a descoberta do diagnóstico de seu filho, passando pelas etapas do tratamento, até a chegada do falecimento da criança. Por tamanho desgaste, necessita de apoio, da presença de pessoas queridas ao seu lado, que a acolham com carinho, diante da hora crítica final, que é a perda definitiva do filho. Diante disso, pede a Deus que apague as lembranças e, com elas, a dor.
A US2 expressa "ser confortada por outras mães-acompanhantes, por voluntários e outros profissionais do hospital, por conta do afastamento do lar, de seus familiares e de seu trabalho". O ser-mãe-acompanhante relata a necessidade de um suporte amigo, que veio por meio de outras mães-acompanhantes, de algum familiar, de voluntários ou de colegas de trabalho. Diz como o hospital se torna a sua casa, pois abandona sua família para fazer parte dele. Por sentirem-se tão afastadas de casa, muitas mães tentam dar forças para as outras como amparo emocional, pois ninguém sabe o que elas passaram, a não ser elas próprias, que tiveram seus filhos internados e estes vieram a falecer. Muitas criam vínculos de amizade, auxiliam a vestir o corpo dos filhos de suas amigas e acompanham até o enterro. Essas amizades permanecem após o falecimento de seus filhos. Trocam telefonemas, desabafam querendo paz e tranquilidade. Desabafam contando como tiveram seus relacionamentos conjugais desmoronados, porque os pais das crianças não entendem que, naquele momento, estavam voltadas somente para a criança. Quando a criança inicia o tratamento, suas mães passam a não ter mais vida própria. Por isso relembram o carinho e a atenção que seus filhos recebiam da equipe da pediatria e que elas receberam no dia do óbito de seus filhos, bem como o conforto recebido por suas colegas de enfermaria.
A US3 expressa "contar com apoio familiar, institucional, governamental ou de outras pessoas que puderam ajudá-la naqueles momentos". O ser-mãe-acompanhante considera a família muito importante, pois precisa de apoio e carinho. Esse carinho também é fornecido pela equipe no hospital, pois a mãe percebe solidariedade dos profissionais para com ela. Não importando de onde vem, a solidariedade é sempre bem-vinda. Questiona a presença da família só em horários de visita, pois, com um filho em fase terminal, todos são bem-vindos, qualquer um que venha para ajudar, porque os amigos fazem-na superar um pouco a dor. Acompanhar seu filho durante toda a internação até o óbito faz com que se crie um vínculo entre a mãe e a equipe da pediatria. A mãe considera os profissionais do hospital seus amigos, pois passa a ter mais contato com os profissionais do que com suas próprias famílias, e até consegue desabafar com eles. A mãe significa que presenciar a morte de seus filhos é uma situação difícil para alguém enfrentar sozinho, sentindo falta de alguém para lhe dar um suporte. Necessita de apoio psicológico, palestras, orientações, para não se sentir à deriva, perdida e desestruturada no relacionamento familiar. Sozinha não conseguirá superar as dificuldades. Reforça o desejo de que a instituição tivesse algum tipo de grupo de apoio para as mães, principalmente para aquelas que estão sozinhas, pois muitas mães-acompanhantes são abandonadas pelos maridos que se acovardam diante de um filho com câncer.
A US4 expressa "ter muita dificuldade para aceitar o resultado dos exames, as internações, o tratamento até sua limitação e a perda do filho, expressando isto por meio de sentimentos". O ser-mãe-acompanhante relata como foi difícil acompanhar o agravamento da doença oncológica, que determinou o fato de perderem seus filhos. De início foi complicado, porque não esperava que um filho seu tivesse a doença, ainda mais sendo criança. Sentiu-se impotente por não poder livrar o filho do sofrimento. Esses foram os piores momentos de sua vida. Isso gera incômodo até mesmo com a felicidade dos outros, pois queria brigar com o mundo, consigo mesma e até com Deus. Considera que só quem passa por essa dor sabe o que ela sente. Não é fácil lembrar-se do filho morrendo, pois "luta, luta e acaba morrendo na praia". Sempre soube que o óbito poderia acontecer, mas é difícil enfrentá-lo, pois pela lei natural da vida os pais deveriam ir primeiro que os filhos, e não o oposto. Torna-se um sofrimento para toda família, e o esperar dos acontecimentos vai desgastando. Reflete em como, de início, não acreditou na doença, negando-se a receber qualquer tipo de orientação ou explicação a respeito, chegando a se sentir como "personagem de um filme de terror, onde não há escapatória". Expressa que, como mãe, o seu maior desejo sempre foi o de criar seus filhos, e não de vê-los morrer. Mostra que desconhecia como era ter que lidar com o câncer.
A US5 expressa "ter esperança de que, apesar do fato de o tumor não estar respondendo ao tratamento, o seu filho ficaria bom". O ser-mãe-acompanhante relata que necessita ter esperança como forma de manter a força e não desistir de lutar por uma cura, bem como receber ajuda para suportar o fato de que seu filho iria falecer. Pergunta-se se as coisas poderiam ser diferentes, se poderia ter feito algo mais. Por mais que se questione, as respostas são sempre as mesmas. Sente-se egoísta em não querer perder seus entes queridos, em não querer a ausência que sobrevém à perda. Acha que a instituição poderia se preocupar em dar um apoio melhor às mães-acompanhantes, pois reconhece que seus filhos buscaram força em seus olhares, acreditando no que as mães acreditavam. Ocorrem mudanças na vida após as perdas de seus filhos, as coisas perdem o sentido, o que era considerado importante deixa de ser. Sente que os dias se prolongam e a dor aumenta, mas a fé de que o filho não está sofrendo mais, não o vendo definhar aos poucos, lhe traz consolo.
A US6 expressa "querer que houvesse um jeito melhor de se falar que não há mais o que fazer". Quando o seu filho é considerado pelo médico como FPCA, o ser-mãe-acompanhante expressa suas queixas pelo modo como foi falado que seu filho não tem mais chance de tratamento. Destaca a frieza de alguns profissionais que consideram o ato de maneira cruel. Necessita ver que seu filho, na passagem da hora crítica, foi bem acolhido pela equipe da saúde, sempre tentando o máximo, mesmo que a equipe e ela mesma saibam que não vai haver reversão do quadro clínico. Mas reconhece, em tal atitude, uma consideração a ela, o que pode produzir alívio e evitar mágoas.
DISCUSSÃO
sentidos de ser-mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito
O cotidiano de mãe-acompanhante-de-filho-portador-de-doença-oncológica -que-foi-a-óbito desvelou, por meio da hermenêutica heideggeriana11, dois sentidos: o ser-aí-com na cotidianidade e a impessoalidade no cotidiano assistencial hospitalar.
O ser-mãe se revela presente (-aí) e comporta-se de diferentes maneiras em seu existir. A pre-sença, na multiplicidade de modos-de-ser, indica continuamente o acontecer da história vivida por cada ser e é constituída por ser-em e ser-com.
A expressão "em" não configura uma localização espacial; significa estou acostumado a, habituado a, familiarizado a. A expressão "sou" se conecta a "junto" ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar. O ser-em é, pois, a expressão existencial da pre-sença que possui a constituição essencial de ser-no-mundo.11-12
Esse mundo pode ser circundante e público.10-11. As possibilidades do ser-aí-em seu mundo circundante conferem sentido para a falta que as mães expressam do domicílio durante o processo de sucessivas internações hospitalares até o óbito de seus filhos. Em decorrência, o mundo público passa a ser mais valorizado, inclusive integrando o mundo circundante. Muitas referem se apegar ao hospital como um segundo lar, pois dependem de sua assistência para a manutenção do tratamento e da vida de seus filhos. Contam com os cuidados e apoio dos profissionais e das demais mães da enfermaria, mostrando que conseguem ser-aí-com no mundo público, que toma a vez de seu mundo circundante.
Essa espacialidade do ser-em indica o "contexto em que de fato uma pre-sença vive"11:105, em que "não apenas é e está num mundo, mas também se relaciona com o mundo"11:64. Nesse sentido, o "com" é uma determinação da pre-sença, "em" um mundo sempre compartilhado com os outros. Portanto, o ser-em é ser-com. É a característica fundamental e genuína, mais especificamente, o "como" me relaciono, atuo, sinto, penso, vivo com os meus semelhantes.
O ser-com determina existencialmente a pre-sença mesmo quando o outro não é, de fato, dado ou percebido. Mesmo o estar-só também é ser-com-no-mundo, pois somente para um ser-com é que o outro pode faltar. Portanto, o estar-só é um modo deficiente de ser-com, e a possibilidade da falta (óbito) é prova disso.11
O cotidiano do ser-mãe-acompanhante reporta a influência do modo de ser impessoal, em que o ser-com passa a ser-entre-outros. A existência cotidiana sempre tem lugar em um mundo compartilhado com-outros, não outros opostos a nós, mas outros como nós e que estão conosco. Todavia, o autêntico ser-com-outros pode se degenerar em mero ser-entre-outros, e assim em inautenticidade.17
A degeneração pode ocorrer em qualquer momento temporal da vida, porque a cotidianidade é justamente o ser "entre" nascimento e morte.11 Na ansiedade de nos distinguirmos dos demais, tornamo-nos, porém, dependentes deles, não de alguém em particular, mas do outro em geral. Na cotidianidade, ninguém é si mesmo: nenhum em especial e todos juntos uns com os outros. Este ninguém, que somos nós mesmos, vivenciado na cotidianidade, é o impessoal.18
A inautenticidade dá-se no distanciamento do homem, como se fosse levado pelo destino. A descrição da vida cotidiana do homem é considerada como forma de existência inautêntica, constituída por três aspectos fundamentais: a facticidade, a existencialidade e a ruína.11
A facticidade consiste no fato de o homem estar jogado no mundo (conjunto de condições geográficas, históricas, sociais e econômicas em que cada pessoa está imersa) sem que sua vontade tenha escolhido.
A existencialidade, que é constituída pelos atos de cada indivíduo de apropriação das coisas do mundo, designa a existência interior e pessoal. O ser humano está sempre procurando algo além de si mesmo; seu verdadeiro ser consiste em objetivar aquilo que ainda não é. O homem seria, assim, um ser que se projeta para fora de si mesmo, mas jamais pode sair das fronteiras do mundo em que se encontra submerso. Trata-se de uma projeção no mundo, do mundo e com o mundo, de tal forma que o eu e o mundo são totalmente inseparáveis.
A ruína significa o desvio de cada indivíduo de seu projeto essencial, em favor das preocupações cotidianas, que o distraem e perturbam, confundindo-o com a massa coletiva. O eu individual seria sacrificado ao outro impessoal, que lhe é persistente e opressivo. O ser humano, em sua vida cotidiana, é promiscuamente público e se reduz à vida com os outros e para os outros, alienando-se totalmente da principal tarefa: tornar-se si-mesmo11.
Compreende-se, a partir das significações, que o ser mãe-acompanhante-de-filho-portador-de-doença-oncológica-que-foi-a-óbito se vê na facticidade. Isso significa que ela se encontra jogada no mundo sem escolha, tendo de enfrentar a doença de seu filho, bem como suas internações hospitalares determinadoras de novas rotinas estranhas a ela, de terapêuticas complexas e de exames diagnósticos.
Tudo isso a remete em um novo círculo social, juntamente com um filho seriamente doente e desenganado de tratamento, sem que realmente sua vontade aceite tal situação. A mãe não tem como não escolher a doença de seu filho. Nota-se que, na sua existencialidade, quer ter esperança na cura, mas demonstra dificuldade de aceitação com relação a tudo que diz respeito a isto e, quando a cura não ocorre, não tem condições de enfrentar a compreensão da perda/morte do seu filho.
Nesse novo círculo social, que a faz sofrer e a oprime, a mãe se desvia do seu projeto inicial e emerge no modo de ser da ruína, porque se detém nas preocupações cotidianas, que para ela se tornam ocupações. Busca um modo de não aceitar o recebimento da notícia de que seu filho não tem chance de tratamento e cura. Reafirma tal negação no desejo de que houvesse um jeito melhor de falar que não há mais o que possa ser feito, jeito este que nunca existirá como sendo considerado melhor. Continua mergulhada no mundo público da cotidianidade, alienando-se, aguardando, porém não desejando a morte de seu filho. Desse cotidiano não pode sair e nele se encontra presa.
Portanto, desvelou-se a impessoalidade do ser-mãe-aí-com no cotidiano assistencial, que mostra o ser-mãe-acompanhante em sua existência. O ser-mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito se reconhece sendo, mesmo que os profissionais de saúde e a instituição hospitalar ainda não a reconheçam como pessoa e cliente que necessita de cuidados durante o tratamento do seu filho e mesmo depois que ele foi a óbito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância da participação da mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito -por-doença-oncológica foi primordial para captar suas subjetividades, expressas nas entrevistas pelas significações do seu vivido. Assim, foi possível compreender a necessidade de inclusão do ser-mãe-acompanhante no cotidiano assistencial da Enfermagem Oncológica como contribuição na perspectiva de mudanças do paradigma dominante na área de saúde.
Os resultados desta investigação permitiram compreender que, na busca pela novidade, própria de tudo que se refere ao diagnóstico, tratamento e prognóstico da doença que acometeu seu filho, a mãe fica perdida na impessoalidade que norteia a postura da equipe de saúde na qual é vista como todos e ninguém. A informação e o conhecimento acerca do câncer não a permitem sair dessa impessoalidade, porque, penetrando no pessoal, com as conotações particulares de tristeza, mal-estar, dúvidas, medos e temores que estão sendo experienciados, surge a ameaça iminente do não-ser de seus filhos.
Por isso, faz-se necessário que os profissionais de saúde sejam empáticos, mediante o ser-em e o ser-com, ou seja, envolvam-se, participem e compartilhem com mães. No ambiente hospitalar, destaca-se que a enfermeira e sua equipe podem aliar os conhecimentos e as habilidades técnicas à solicitude, permeada de sensibilidade e disponibilidade de estar mais próximas das dificuldades, ansiedades e temores vividos pela mãe, identificando a necessidade de intervenção de outros profissionais de saúde.
O ser-mãe não acredita na morte do filho, porque, pensando a morte através do mundo de todos, jamais pode imaginar que esta um dia possa se concretizar no seu ente querido. Assim, esse modo de ser é reflexo de uma tradição advinda de um convívio social no qual a morte, por si só, causa espanto, fuga e medo. Sente necessidade de informações gerais sobre o câncer e seu tratamento, numa expressão de curiosidade, buscando reaver a individualidade de seu filho e de si mesma, mas ainda não é cuidada como pessoa e sujeito de possibilidades, ser-aí. É vista como mãe, como todas as mães, fato que reforça sua impessoalidade no cotidiano assistencial.
As enfermeiras e os membros da equipe de saúde podem investir esforços para ajudar a mãe na situação crítica do compartilhamento do processo de morte da criança. O tornar-se próximo na relação entre enfermeira e mãe é mediado pela empatia. No ato de ser-com e escutar, é preciso ser capaz de abafar o ruído do falatório dispersivo e infundado em que estamos imersos no cotidiano. A atitude de abertura da enfermagem para escutar a mãe, em um encontro empático e de intersubjetividade, possibilita dizer algo ao outro (mãe) e a si (enfermeira), contribuindo para um aprendizado de apoio e de cuidado compartilhado.
O que ocorre é determinado como movimento existencial, nem é definitivo nem acontece com a totalidade das mães, pois, uma vez estabelecida, a relação de empatia não significa que se deu de uma vez para sempre. Pertence à essência do ser dar-se e esconder-se, pois o desvelamento é inseparável de um velamento. Portanto, esse cuidado solícito precisa ser um movimento de abertura permanente.
Deste estudo pode-se compreender, mais claramente, como é profunda a teia de sentimentos que essas mães vivenciam e as tensões que suportam no dia-a-dia de uma instituição assistencial de tratamento oncológico de crianças. Foi possível perceber como pedem socorro e como a estrutura da organização hospitalar necessita ser modificada.
Os significados e os sentidos desvelados valorizam o saber ontológico no cuidado às crianças portadoras de doença oncológica e suas mães-acompanhantes e indicam a necessidade de se desenvolver uma assistência de Enfermagem que contemple as vivências e necessidades do ser-mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito -por-doença-oncológica, para além da rotina de tratamento da criança.
A Sistematização da Assistência de Enfermagem pode se enriquecer deste conhecimento, apropriando-se de modos e maneiras para promover e incentivar essa escuta à mãe mediante a atribuição de diagnósticos de Enfermagem. Esses diagnósticos, futuramente adaptados, favorecerão intervenções cuidativas singulares advindas da compreensão do significado de ser-mãe-acompanhante-de-filho-que-foi-a-óbito-por-doença-oncológica.
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Recebido em 29/04/2009
Reapresentado em 24/08/2009
Aprovado em 02/09/2009