Volume 13, Número 4, Out/Dez - 2009
PESQUISA
Transplante cardíaco infantil: perspectivas e sentimentos maternos
Heart transplant in children: maternal perspectives and feelings
Trasplante cardiaco infantil: perspectivas y sentimientos maternos
Kiarelle Lourenço Penaforte I; Samila Torquato Araújo II; Antonia do Carmo Soares Campos III; Karla Maria Carneiro Rolim IV; Francisca Lígia Martins dos Santos V
I Enfermeira do Hospital de Messejana-CE. Especialista em Enfermagem do Trabalho. Professora do Curso Técnico de Enfermagem São Camilo de Léllis CE. Brasil. E-mail: kiarelle_21@hotmail.com,
II Mestranda em Saúde Pública do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Enfermagem do Trabalho. Preceptora do Núcleo Multiprofissional para Estudos, Atenção e Educação Permanente em Diabetes, Obesidade, Hipertensão Arterial e Aterosclerose (Núcleo EM-DIA). Brasil. E-mail: samila_torquato@hotmail.com,
III Enfermeira da Unidade Neonatal da Maternidade Escola Assis Chateaubriand-(MEAC). Doutora em Enfermagem. Professora do Curso de Enfermagem da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pesquisadora e vice-líder do Grupo Saúde Coletiva (UNIFOR/CNPq). Brasil. E-mail: toniacampos@unifor.br,
IV Enfermeira da Unidade Neonatal da Maternidade Escola Assis Chateaubriand-(MEAC). Doutora em Enfermagem. Professora do Curso de Enfermagem da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) Pesquisadora do Grupo Saúde Coletiva (UNIFOR/CNPq). Brasil. E-mail: karlarolim@unifor.br,
V Enfermeira do Hospital de Messejana-CE. Mestre em Enfermagem. Professora do Curso de Enfermagem da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Brasil. E-mail: ligia@unifor.br
RESUMO
Objetiva-se descrever as perspectivas maternas e sentimentos despertados pelo transplante cardíaco infantil. Estudo descritivo com abordagem qualitativa, desenvolvido no Hospital do Coração, de Messejana, em Fortaleza-CE, no período de agosto a novembro de 2007. Os sujeitos foram sete mães de crianças transplantadas. Utilizaram-se como técnicas a entrevista semiestruturada e a análise dos prontuários. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo, em três etapas, segundo Bardin, organizados, analisados e interpretados à luz da literatura pertinente, vivência das pesquisadoras e experiência das entrevistadas. Da análise das falas, emergiram as unidades temáticas: necessidade do transplante; fonte de apoio; sentimentos externados pelas mães; a doação e perspectivas. Conclui-se que a doação é um momento de felicidade vivenciada por todas as mães, tratando-se da solução para vida de seus filhos, e a presença autêntica do enfermeiro nesta ocasião torna-se ainda mais essencial, pois humanizar faz parte do cuidar da enfermagem.
Palavras-chave: Transplante do Coração. Emoções. Enfermagem.
ABSTRACT
It aims to describe the maternal perspectives and feelings face to the heart transplant in their children. Descriptive study with a qualitative approach developed in the Heart Hospital, in Messejana, Fortaleza-CE, from August through November, 2007. The subjects were seven mothers of children who had a transplant. It was used as technique the semi-structured interview and medical records analysis. The data were submitted to content analysis, in three stages according to Bardin, being organized, analyzed and interpreted according to the pertinent literature, the researchers' and the interviewees' experience. Out of the speeches analyzed, the following themes emerged: necessity of transplant; source of support; feelings expressed by mothers; the donation and perspectives. It concludes that the donation is a moment of happiness experienced by all mothers, being a solution for the lives of their children, and the nurse's authentic presence on this occasion becomes even more essential, as humanizing is part of the Nursing care.
Keywords: Heart transplant. Emotions. Nursing.
RESUMEN
El objetivo fue describir las perspectivas maternas y los sentimientos provocados por el trasplante cardiaco infantil. Estudio descriptivo con abordaje cualitativo, desarrollado en el Hospital del Corazón, de Messejana, en Fortaleza-CE, en el período de agosto a noviembre del 2007. Los sujetos del estudio fueron siete madres de niños con transplante. Se utilizó como técnica la entrevista semiestructurada y el análisis de los registros médicos. Los datos fueron sometidos al análisis del contenido, en tres etapas, según Bardin, siendo organizados, analizados e interpretados a la luz de la bibliografía pertinente, de la vivencia de las investigadoras y de la experiencia de las entrevistadas. Del análisis del discurso, surgieron las unidades temáticas la necesidad del trasplante; las fuente de ayuda; los sentimientos expresados por las madres; la donación y sus perspectivas. Se concluyó que la donación es un momento de felicidad vivido por todas las madres, por tratarse de la solución para la vida de sus hijos, y la presencia verdadera del enfermero en esta situación, se vuelve todavía más esencial, pues humanizar forma parte del proceso de cuidado de enfermería.
Palabras clave: Transplante de corazón. Emociones. Enfermería.
INTRODUÇÃO
Transplante é a remoção ou isolamento parcial de uma parte do corpo e seu implante no corpo da mesma pessoa ou de outra. É um procedimento terapêutico bem estabelecido e que apresenta progressos quanto aos seus resultados, em decorrência do aprimoramento da técnica cirúrgica, de novos medicamentos imunossupressores, de métodos mais eficazes da conservação de órgãos e da melhor compreensão e controle de fenômenos imunológicos.
O transplante de órgãos e tecidos requer uma infraestrutura de apoio bastante complexa, o que o torna um recurso muito dispendioso e de alcance muito restrito, embora em expansão nos países em desenvolvimento.1 O método consiste na substituição do coração doente por coração proveniente de doador em morte encefálica.2
O transplante de coração é um dos grandes avanços da Medicina no século XX. Receber um novo coração é retornar à vida. A realidade do transplante em crianças é desesperadora, pois crianças têm menor probabilidade de sobrevivência na fila de espera (50%), em comparação com 70% de adultos. Um dos motivos da dificuldade do transplante de coração é explicado por Miguel Barbero, diretor da Unidade Cirúrgica Pediátrica do Incor: "O doador da criança só pode ser aquele com peso igual ou até três vezes mais que o receptor"3.
O progresso da Medicina não diminui o impacto psicológico que a indicação de um transplante provoca no paciente, que tem dificuldade para aceitar e se adaptar a uma mudança tão radical no corpo.4 Com efeito, o papel da família, importante em qualquer estádio da vida, torna-se particularmente relevante no acompanhamento à criança, no que diz respeito ao surgimento, ao ato de lidar e nas perspectivas de um transplante cardíaco infantil. O transplante em crianças e adolescentes depende, em grande parte, dos pais, em especial, da mãe. Os pais, de alguma forma, também são pacientes porque lhes cabe a decisão da cirurgia, sem descartar o grau de autonomia da criança ou adolescente em expressar seu desejo. A capacidade dos pais de se responsabilizar pelo tratamento e de lidar com o estresse psicológico e social inerentes ao transplante, em suas várias fases, é alvo de interesse da equipe de saúde.
Cada situação familiar é singular, e cada família interpreta e responde à doença de uma forma própria. Diante destas questões, deve haver um acompanhamento em todas as fases do transplante cardíaco para auxiliar as famílias, em especial as mães, em suas dúvidas, revoltas, indagações e inquietações. Esta, contudo, é uma realidade ainda limitada, na qual, muitas vezes, equipes multidisciplinares direcionam os cuidados especificamente à criança. Pais e filhos vivem uma circunstância de regressão emocional intensa, e a mãe interpreta os acontecimentos. Se a situação a ela parece irreparável, a criança compreenderá o momento como tal. Dessa forma, a criança responde aos conflitos de acordo com sua idade e com a magnitude destes.4
A atuação do enfermeiro insere-se em todo o processo do transplante, e este segue etapas, como a avaliação para ser aceito como um potencial receptor, a espera de um órgão satisfatório de um doador, a cirurgia e o período de recuperação pós-cirúrgica, além dos ajustes, a longo prazo, do pós-transplante. Dessa forma, o cuidado ao paciente acontece na perspectiva de estar junto, no planejamento de ações, na orientação e no estabelecimento de vínculo com a criança e a família. Portanto, consideramos que o suporte profissional, em particular o do enfermeiro, está voltado aos cuidados básicos de Enfermagem, ao envolvimento emocional e às ações educativas, com o intuito de auxiliá-los no conjunto saúde/doença/cuidado.
Enfocar a conjunção de problemas apresentados pelo transplante é uma tarefa complexa para ser tratada de forma parcial e isolada, pois o percurso, desde o diagnóstico da patologia até a indicação desta terapêutica, pode ser curto ou não, mas quase sempre é árduo. Questionamo-nos, então, sobre a importância da presença dos componentes familiares, em especial da mãe, no apoio à criança que vivencia o processo do transplante.
Objetivo
Descrever as perspectivas maternas e sentimentos despertados pelo transplante cardíaco infantil.
PERCURSO METODOLÓGICO
Optamos por uma abordagem metodológica capaz de possibilitar nossa inserção no cotidiano do mundo singular da mãe que vivencia com o filho o decurso do transplante cardíaco. Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa, realizado no Hospital do Coração, de Messejana, instituição pública e referência em transplante cardíaco, em Fortaleza-Ceará. Fizeram parte da pesquisa sete mães de crianças transplantadas. Todas as crianças permaneciam em acompanhamento ambulatorial no referido hospital. O número de participantes foi definido a partir da soma de transplantes cardíacos infantis realizados até o momento da pesquisa. O estudo estendeu-se de agosto a novembro de 2007, período em que tivemos a oportunidade de conviver com as mães e crianças durante as consultas de rotina. Utilizamos como instrumento de coleta de dados a análise dos prontuários e uma entrevista semiestruturada, contendo perguntas abertas e fechadas sobre: dados sociodemográficos e perspectivas maternas antes e após o transplante, além dos sentimentos despertados. A abordagem ocorreu durante a consulta ambulatorial e na residência das participantes. Na ocasião, as mães foram convidadas a serem partes no estudo, bem como foram prestados todos os esclarecimentos acerca do modo pelo qual a pesquisa seria conduzida.
O estudo atendeu às normas que regulamentam a pesquisa com seres humanos, consoante à Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde,5 e foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital do Coração sob o protocolo nº435/07.
As falas das participantes foram transcritas na íntegra, sendo posteriormente submetidas à análise de conteúdo, em três etapas, segundo Bardin.6 Em atendimento, portanto, às etapas propostas na pré-análise, realizamos a leitura geral de todo o material, denominada "flutuante", para podermos ter melhor compreensão, o que nos permitiu a análise posterior. Em seguida, na exploração do material, realizamos leituras exaustivas, porém necessárias, estudando profundamente, buscando a análise, em termos de operações de codificação, desconto ou enumeração. Com base na compreensão e síntese dos resultados, foram constituídas unidades temáticas. Na fase de tratamento e interpretação, os dados foram organizados, analisados e interpretados à luz da literatura pertinente, vivência das pesquisadoras e experiência das entrevistadas.
De acordo com o Quadro 1, e como podemos observar, a faixa etária das participantes está compreendida entre 30 e 51 anos. São, portanto, mulheres relativamente jovens e em plena vida ativa. Em relação ao estado civil, observamos que cinco mães são casadas, sendo uma solteira e outra viúva. Quanto ao grau de instrução, uma participante não é alfabetizada, uma concluiu o ensino fundamental, duas têm ensino fundamental incompleto, duas cursaram apenas parte do ensino médio e apenas uma possui diploma de curso superior. No que concerne à ocupação principal, destaca-se a atuação no lar, com um total de quatro mães. As demais são: autônoma, fonoaudióloga e agricultora.
A maioria das mães reside em Fortaleza. Avaliando a renda familiar aproximada, observamos que as famílias se encontram, em sua maioria, em classe baixa. Verificamos também que a religião abrange a maioria católica, com apenas uma protestante, sendo a religião considerada por todas as mães como essencial no enfrentamento da doença do filho.
A religião, portanto, passa a ter seu potencial vinculado à recuperação. Com a religião, a tendência não é evitar o sofrimento, mas saber como enfrentá-lo, como diminuir a dor física e pessoal em face das derrotas do mundo. O significado que a dimensão religiosa tem na vida do ser humano quando este se encontra enfermo é essencial, uma vez que a busca pela religião é real em sua vida nesse momento de sofrimento.7 Neste sentido, ao buscarmos entender essa relação de crença/saúde na vida das pessoas, acreditamos contribuir para o entendimento e crescimento dos profissionais na área da saúde, principalmente nós, enfermeiros, ao desenvolvermos um cuidado que observe a face espiritual do ser humano em estado de enfermidade.
Em relação às crianças transplantadas, observamos que a maioria é do sexo masculino, constituindo um total de cinco. Encontram-se na faixa etária entre seis e treze anos.
Identificamos as doenças de base de cada criança como o fator principal para indicação do transplante. Compreendemos que as principais doenças que acometeram cada uma delas foram a miocardiopatia dilatada, miocardiopatia secundária, disfunção ventricular secundária, ventrículo único e endomiocardiofibrose.
De acordo com o Quadro 2, a idade da realização do transplante compreende a faixa etária de dois a onze anos. Portanto, são crianças que muito cedo começaram a enfrentar a realidade de uma patologia crônica e grave, passando, assim, por inúmeras internações até chegar ao diagnóstico da necessidade do transplante. Reconhecemos que o percurso, desde o diagnóstico da doença até a indicação desta terapêutica, pode ser longo ou curto, mas quase sempre árduo.
Detectamos, por meio das entrevistas, que o tempo de espera dessas crianças pelo transplante cardíaco decorreu no intervalo de quatro dias a um ano e seis meses. Podemos considerar esse lapso de espera relativamente pequeno se considerarmos as longas filas de espera por um transplante e o número de pessoas que os aguardam.
Segundo o autor8, só em 2006, 18.516 transplantes foram realizados no Brasil, de acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), sendo 4.668 transplantes de órgãos (rim, coração, fígado, pulmão, pâncreas e intestino) e 13.848 transplantes de tecidos (córnea, medula óssea, ossos, entre outros). Ainda existe, entretanto, uma quantidade enorme de pessoas em lista de espera, tornando a fila muito longa, e muitos, na expectativa, não suportam e morrem, sendo que mais de 60 mil pessoas ainda aguardam uma oportunidade de receber órgãos.
·Desvelando o ser mãe de uma criança que recebeu um "novo coração"
Concluída a trajetória junto às mães, quando buscamos, com suporte em cada situação vivenciada, compreender o significado do ser-mãe da criança transplantada, passamos agora a refletir e analisar sobre esses momentos e relações dialógicas sob a óptica do conhecimento científico. Do fenômeno observado e das falas analisadas, emergiram as seguintes unidades temáticas.
A necessidade do transplante
A doença, em especial a crônica e de natureza grave, apresenta-se como um caminho longo e difícil a ser percorrido pelo doente e sua família. Então, ante a complexidade que o evento requer, é necessária a compreensão de seu impacto. Os momentos permeados por medo, incerteza e insegurança trazem dúvidas com relação ao sucesso do tratamento, o receio de surgirem as complicações e a dualidade entre a vida e a morte. Nesta perspectiva, a família vivencia o contexto de incerteza.9
A possibilidade do transplante surge como alternativa para a situação diária de viver com uma doença crônica potencialmente fatal, mas, quando ele ocorre, traz esperanças de um futuro permeado por indagações, as quais estão relacionadas ao fato de terem que encarar um procedimento relativamente novo e, juntamente, vem o receio do desconhecido. As mães ficam assustadas com o prognóstico e com a quantidade de decisões a tomar.
No transcurso desta trajetória, identificamos relatos vivenciados pelas mães em momentos marcantes:
O transplante é o último recurso da medicina, é sim ou não. Já sabia que não era cura, mas uma melhoria na qualidade de vida. Eu não poderia negar. (Esperança)
Uma porta que Deus abriu... que minha filha teria uma nova vida. (Amor)
Tinha que arriscar... era viver ou morrer. (Carinho)
No momento da descoberta da necessidade do transplante, as mães mesclam sentimentos de medo de que o estado de saúde da criança piore, o temor da morte, a perda do controle da situação e as dificuldades financeiras. É o que mostram os depoimentos a seguir.
Senti alegria porque podia ser uma solução, mas medo porque podia perder.
Meu filho dizia: Mãe não quero ir, não quero morrer. (Tristeza)
Fiquei apavorada, mas acreditava que ia conseguir. (Alegria)
Pra mim o mundo tinha acabado. O transplante era um bicho de sete cabeças. (Paixão)
Fiquei emocionada, mas pensei que ele não fosse resistir. (Ilusão)
É fácil notar nas falas o misto de emoção e resistência com relação ao transplante. É nessa perspectiva, contudo, que o enfermeiro é mais atuante, pois fornece o suporte que a mãe e o filho precisam, desde o diagnóstico de necessidade do transplante até o acompanhamento da criança, antes e, em especial, após a cirurgia.
Fonte de apoio
As famílias de pacientes submetidos ao transplante cardíaco vivem em constante estado de incerteza, em razão dos riscos, em potencial, de infecções, hospitalização prolongada, procedimentos médicos invasivos e possibilidade de óbito. Para enfrentar a doença e seu tratamento, elas recorrem à espiritualidade, à família, aos amigos e, em alguns momentos, aos próprios profissionais que os acompanham, buscando forças para cuidar da criança e para não se sentirem sozinhas na luta pela vida (Figura 1).
Senhor que seja a tua vontade e não a minha, tenho certeza que você dará a vitória a ela. E que seja a hora agora, pois ela já está muito inchada. (Amor)
Durante as entrevistas, solicitamos às mães que falassem a respeito das fontes de apoio para encarar essa nova realidade do transplante. As mães relataram mais de uma forma de suporte, sendo a fé a de maior importância, com 33% (7); em seguida, o apoio familiar, com 28% (6). Para nossa surpresa, o respaldo profissional foi citado por muitas mães, já que este não estava sendo abordado no questionamento, atingindo 22% (5). Por último, encontra-se a ajuda dos amigos, com 17% (3).
Com nosso estudo, reconhecemos que vivenciar o transplante requer desmedida disponibilidade das mães em auxiliar seus filhos nesse processo. Embora elas se encontrem sensibilizadas em decorrência desta realidade, verifica-se que a fé é um apoio de enorme valia, correspondendo a um fator determinante no sucesso do acompanhamento da criança, pois é com esteio na fé que elas encontram forças para continuar na batalha pela vida do seu filho.
Destacamos a moção de que, em relação ao tema do qual tratamos, o papel que a família desempenha é essencial, sendo a rede de apoio familiar um dos principais suportes, antes e depois do transplante. Sempre que possível, a família deve ser participativa e comparecer às consultas, pois se torna um fator importante para que o paciente e sua mãe possam compartilhar a ansiedade, a angústia e o medo que tal situação enseja.
Como mencionado pelas mães de algumas crianças, o apoio dos profissionais que os acompanham também é por demais importante, pois, segundo o autor10, em casos de transplantes pediátricos, é fundamental um tratamento multiprofissional holístico, em que não se trate somente a doença, mas também a criança e seu contexto familiar, englobando aspectos físicos, psicológicos e sociais, com atenção especial a tudo o que possa conduzir à vulnerabilidade do seu desenvolvimento.
Em última instância, como já mencionado, encontra-se o amparo dos amigos que, essencial em qualquer fase da vida, torna-se particularmente importante neste contexto.
Sentimentos externados pelas mães
A intensidade e a complexidade envolvidas no transplante cardíaco em seus vários níveis produzem profundos efeitos psicológicos no paciente, na família e na equipe profissional. Ignorar esta realidade e reduzir os problemas desta intervenção aos seus aspectos puramente técnicos pode trazer consequências catastróficas para o paciente e seus membros familiares e ameaçar a sobrevivência da equipe.
A perspectiva das mães e de seus filhos, quando entram em contato com o ambiente hospitalar, é marcada por sentimentos de estranheza e perplexidade. Afinal, eles estão fora de seu território familiar e atravessarão momentos de intenso sofrimento físico e emocional. Tais situações podem prolongar ou abreviar a vida de seus filhos nesse novo e desconhecido ambiente. Os pais presenciam, também, o filho manipulado por instrumentos e procedimentos invasivos, comandados por pessoas portadoras de estranhos códigos e todo um aparato técnico não assimilável do ponto de vista das mães e do pequeno paciente, do qual se espera que se submeta docilmente às intervenções.
Os pacientes e suas famílias presenciam alguns problemas singulares ao enfrentar o transplante, decorrentes do próprio estresse a que estão sujeitos. São descritas na literatura várias alterações psicológicas e psiquiátricas, como ansiedade, depressão, irritabilidade, desorientação, perda do controle, medo de morrer e perda da motivação. Eles começam a enfrentar a dor, o desfiguramento, a dependência, o isolamento, a separação e a morte.9
Solicitamos às mães que falassem a respeito dos sentimentos despertados pelo transplante, podendo relatar mais de um sentimento, o que é observado na Figura 2.
Uma vez expressos os sentimentos despertados pelas mães, verifica-se que a ansiedade foi referida por seis participantes, equiparando-se com a esperança. Em seguida, tem-se o medo, que abrange quatro das participantes, enquanto a raiva não foi mencionada por nenhuma das mães.
Diversas etapas foram percorridas neste caminho - o diagnóstico da patologia, a sintomatologia, as renúncias, as incertezas - que implicam uma série de importantes experiências vividas pelos cuidadores dos candidatos ao transplante. Para compreender esta perspectiva, é necessário, no primeiro momento, deixar de lado os saberes técnicos a respeito da doença, do tratamento e de suas consequências. Esses saberes, sistematizados pela ciência, são fundamentais para o embasamento da prática profissional da equipe de saúde; contudo, também podem contribuir para que o profissional tenha uma perspectiva mais distanciada do paciente, focalizando sua atenção sobre a enfermidade em detrimento da pessoa do sujeito doente.
A presença de uma patologia grave, com piora da qualidade de vida, associada à dor crônica e a sentimentos de desesperança, são fatores de risco tanto para o paciente como para a família. A possibilidade de cura por meio do transplante infunde esperança no paciente e na família, amenizando os sentimentos dolorosos provocados pelo impacto do diagnóstico.
A doação
Doação é definida como o conjunto de ações e procedimentos que logra transformar um potencial doador em doador efetivo. O potencial doador é o paciente com diagnóstico de morte encefálica, no qual tenham sido descartadas contraindicações clínicas que representem riscos aos receptores dos órgãos. Após confirmação do diagnóstico de morte encefálica, normalmente um momento bastante difícil para a família, é que a de doação de órgãos propriamente dita tem início. Nessa ocasião, os coordenadores, na maioria enfermeiros, que trabalham nas organizações de procura de órgãos (OPOs), fazem a avaliação do potencial doador e, se viável, realizam a entrevista familiar quanto à doação. A doação de órgãos poderia ser grandemente facilitada se fosse priorizada e garantida boa qualidade de comunicação entre os profissionais e a família do doador.11
A carência de doadores de órgãos é ainda um grande obstáculo para a efetivação de transplantes no Brasil. Mesmo nos casos em que o órgão pode ser obtido de um doador vivo, a quantidade de transplantes é pequena diante da demanda de pacientes que esperam pela cirurgia. A falta de informação e o preconceito também limitam o número de doações obtidas de pacientes com morte cerebral. Com a conscientização efetiva da população, o número de doações pode aumentar de forma significativa. Para muitos pacientes, o transplante de órgãos é a única forma de salvar suas vidas.12
Essas vidas dependem, única e exclusivamente, do fato de a família do paciente com morte encefálica comprovada autorizar a doação, um gesto que pode transformar a dor da morte em continuidade da vida.
Quando a mãe do doador encontra com a minha filha, coloca a mão no coração dela e sente pulsar o coração do seu filho. (Amor)
Nesse universo existe outra realidade que é a do transplante pediátrico, pois, se para o adulto, a espera por um doador é difícil, imagine-se quando o paciente é uma criança. O número de doadores em potencial reduz significativamente as chances da efetivação do transplante. O doador da criança só pode ser aquele com peso igual ou até três vezes mais do que o do receptor e o grupo sanguíneo também deve obedecer à compatibilidade do sistema ABO. A perda de um órgão, o fato de vencer a morte, de ter seu coração retirado e de retornar à vida recebendo outro órgão, de depender da morte de outra pessoa para ter a vida, são aspectos marcantes, tanto para as crianças como para seus pais.
Doar órgãos é um ato de amor e solidariedade. Quando um transplante é bem-sucedido, uma vida é salva, e com ele resgata-se também a saúde física e psicológica de toda a família envolvida com o paciente transplantado. Dessa maneira, as famílias dos receptores expressam uma gama de sentimentos e emoções.
Podemos identificar, por meio do contato com as mães, que doação é um assunto muito delicado, causando sensibilização, pois remete a um dos momentos mais significativos do transplante, em que a morte e a vida se cruzam, pois, só nesse episódio, as mães compreendem que para seus filhos sobreviverem, é preciso que outras mães chorem a ausência dos seus. Portanto só quem vivencia esse evento pode aquilatar:
Uma esperança. Não que eu não tinha fé, mas se era difícil para criança, imagina para adulto. Quando vi a criança morta... que iria doar o coração para minha filha... foi que caí em si e entendi que para minha filha sobreviver alguém tinha que morrer. (Esperança)
Foi a sensação melhor do mundo, não dá nem para explicar, até hoje sinto. Quando vejo ele correndo, brincando, me emociono. (Paixão)
Meu filho chorava e dizia: Mãe eu não quero mais ir. Então eu falei: Chore não, que eu vou ficar todo tempo com você, não vou lhe abandonar, só volto com você. Então ele disse: Então eu vou querer esse coração, assim vou poder correr. (Carinho)
Perspectivas
Reconhecemos que cada etapa do transplante é marcada por barreiras e superações, porquanto as mães e seus filhos enfrentam obstáculos constantemente. São crianças que vivem concretamente a ameaça de morte, enquanto aguardam um doador compatível, e mesmo as que sobrevivem a essa espera e chegam ao transplante enfrentam situações significativas do ponto de vista emocional.
A família mescla sentimentos de euforia e esperança com ansiedade e sensações de vulnerabilidade, principalmente nos episódios de rejeição e infecção. A necessidade de hospitalizações interfere na rotina diária da família, causa problemas na escolaridade e prejudica o desenvolvimento da vida social. É comum a insegurança em relação à habilidade para cuidar da criança após a alta hospitalar, devido à grande responsabilidade a propósito da medicação, higiene e observação da criança.13
O futuro destas crianças é marcado por incertezas, pois existe uma infinidade de cuidados que devem ser tomados. As famílias procuram manter um estilo de vida muito próximo do que viviam antes da experiência da doença/transplante, tentando levar uma "vida normal", com a intenção de conviverem com a situação e se adaptarem a ela. Os dados obtidos mediante as entrevistas mostram-nos que as mães querem que os filhos tenham uma nova vida e que possam viver como uma criança normal.
Que ela seja feliz, que passe tudo isso e que ela entenda tudo o que passou. Ver minha filha ter uma vida normal... frequentar escola, aniversário... (Esperança)
Espero que o meu filho fique recuperado e que eu volte a viver. (Tristeza)
Espero que ele volte a estudar e que viva muito... do jeito que Deus quiser. (Ilusão)
Quando ele completou um ano de transplante, fiz seu aniversário para comemorar sua segunda vida. (Carinho)
Como podemos observar pelas falas, algumas mães temem o futuro, pois o medo de que todo o processo já vivido se repita aflige imensamente o âmbito familiar.
Ah o futuro... todo dia eu olho para ela, mas não gosto de falar sobre esse assunto... tenho medo. Já tive muitas perdas... mãe, pai, marido... mas não suportaria perder uma filha. Depois do transplante eu vejo a vontade grande que ela tem de viver. O transplante foi uma nova vida para nós.(Amor)
O ato de uma pessoa submeter-se a um transplante enseja uma série de transformações e inquietações acerca da concretização dessa terapêutica, em que a estabilidade não é uma certeza e o temor do amanhã se torna iminente a cada dia. A experiência com o transplante nos proporcionou identificar, por meio da proximidade com as mães, o fato de que estas expressam continuamente suas angústias e anseios a respeito do futuro de seus filhos, alegando que o transplante não é a cura, mas apenas uma possibilidade de sobrevivência, afirmando que o tempo de vida de seus filhos é curto. Desse modo, corroboramos o pensamento dos pesquisadores14 que advogam a necessidade de buscar a compreensão de cada mãe, repensando as orientações para que efetivamente possamos assumir os cuidados de enfermagem à díade mãe-filho.
Fiquei muito abalada quando descobri que o problema era coração, porque sei que a esperança é muito pouca. (Carinho)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A existência de uma doença grave ocasiona profundas transformações nas vidas das crianças e suas famílias, ocasionando, assim, momentos que desencadeiam expectativas de naturezas diferentes. O trabalho com as famílias é fundamental nesses casos, pois também sofrem com os efeitos da doença de seus filhos, e é necessário um adequado apoio por parte dos profissionais de saúde, para que estes possam saber manejar o estresse da situação e dar conforto para a criança doente/transplantada.
O transplante em crianças é um procedimento bastante complexo, necessitando do enfermeiro em todas as suas etapas. Portanto, destacamos a moção de que sua atuação vai muito além da Enfermagem em si, pois perpassa o cuidado, ao lidar com os sentimentos das mães que vivenciam todo o transplante ao lado de seus filhos. Reconhecemos que cada situação familiar é singular, e que cada família interpreta o transplante de forma própria e, assim, procura, por meio da fé e de seu entorno familiar, o apoio e o conforto para a superação. Sentimentos de ansiedade, medo e esperanças são mesclados durante essa trajetória de luta pela vida, e, muitas vezes, o desconhecimento desta terapêutica intensifica ainda mais estes sentimentos, dificultando sua aceitação.
Os resultados desta pesquisa provavelmente contribuirão para o aprimoramento do atendimento a esta clientela, bem como proporcionarão para todos os profissionais a melhor atuação, não se restringindo os cuidados apenas à criança, mas também à mãe no seu contexto familiar.
A partir das vivências maternas demonstradas, poderemos ampliar a assistência não só dos enfermeiros como também dos demais profissionais envolvidos no processo de cuidar.
REFERÊNCIAS
1. Cintra V, Sanna MC. Transformações na administração em enfermagem no suporte aos transplantes no Brasil. Rev Bras Enferm 2005 jan/fev;58(1):78-81.
2. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HCFMUSP [homepage na Internet]. Dicionário médico para o público: cardiologia clínica e cirúrgica. 1997. [citado 19 abr 2007] Disponível em: http://www.hcnet.usp.br/dicionario/card_cli_cirur.htm.
3. 50% de chance de um novo coração. Jornal O Estado de São Paulo 2006. [citado 21 abr 2007]; [aprox 2 telas]. Disponível em: http://txt.estado.com.br/editorias/2006/03/27/ger75152.xml.
4. Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo - SOCESP [homepage na Internet]. São Paulo: Aspectos emocionais do transplante cardíaco em. 2006.[citado 21 abr 2007];[aprox 2 telas]. Disponível em: http://www.socesp.org.br/espaco_leigo/transplante_criancas.asp.
5. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa-CONEP. Resolução nº 196/96. Dispõe sobre as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília(DF); 1996.
6. Bardin L. Análise de conteúdo. 4ª. ed. Lisboa: Ed 70; 2008.
7. Correa DAM. A importância da religião na vida do ser humano doente. Cienc Cuid Saude 2006;5(1):8.
8. Ferraz NB. Fila da esperança. Saúde Pública. [citado 4 nov 2007];[aprox.3 telas]. Disponível em: http://www.saudeplena.com.br/noticias/index_html?opcao=07-0807-03.
9. Anders JC, Lima RAG, Rocha SMM. Experiência de pais e outros familiares no cuidado à criança e ao adolescente após o transplante de medula óssea. Rev Bras Enferm 2005 jul/ago;58(4):416-21.
10. Castro EK, Jiménez BM. O transplante de órgãos pediátrico: papel do psicólogo infantil. Pediatr Mod 2004 jan;40(6):266-69.
11.Santos MJ, Massarollo MCKB. Processo de doação de órgãos: percepção de familiares de doadores cadáveres. Rev Latino-am Enfermagem 2003 abr;13(3):382-87.
12. Massarollo MCKB, Kurcgant P. O vivencial dos enfermeiros no programa de transplante de fígado de um hospital público. Rev Latino-am Enfermagem 2000 ago;8(4):66-72.
13. Azeka E, Loures DR, Jatene MB, Favarato MES. Trasplante cardíaco em crianças. Arq Bras Cardiol 1999 set/out;73(sup 5):6-10.
14. Rodrigues FLS, Silveira IP,Campos ACS. Percepções maternas sobre o neonato em uso de fototerapia. Esc Anna Nery Rev Enferm 2007 mar;11(1):86-91.
Recebido em 12/03/2009
Reapresentado em 07/08/2009
Aprovado em 15/09/2009