Volume 13, Número 3, Jul/Set - 2009
PESQUISA
Programas de saúde materno-infantil em Moçambique: marcos evolutivos e a inserção da enfermagem
Programs of maternal and infant health in Mozambique: gradual landmarks and the insertion of nursing
Programas de atención de salud materno-infantil en Mozambique: marcos evolutivos e inserción de la enfermería
Maria Acácia Ernesto Lourenço I; Maria Antonieta Rubio Tyrrell II
I Doutoranda da Escola de Enfermagem Anna Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista da CAPES. Docente do Instituto de Ciências de Saúde de Maputo (ICSM) e do Instituto Superior de Ciências de Saúde (ISCISA), Maputo-Moçambique. E-mail: acanestolou@yahoo.com.br,
II Doutora em Enfermagem Professora. Titular do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil. Diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Responsável pela Disciplina Políticas e Problemática de Saúde da Mulher e Orientadora. Brasil. E-mail: tyrrell2004@hotmail.com
RESUMO
Pesquisa centrada nas políticas públicas do governo moçambicano para o setor da saúde, com foco voltado para programas de assistência à saúde materno-infantil. Tem o propósito de apresentar contextos básicos para a reflexão sobre a filosofia da implantação e implementação dos programas e a inserção da Enfermagem, mostrando seus marcos evolutivos. Constatou-se que, na década 70, o Sistema Nacional de Saúde adotou o Programa de Proteção Materno-Infantil, que na década de 80 ficou concebido como Programa de Saúde Materno-Infantil e, posteriormente, na década 90, ficou inserido no Programa Nacional Integrado de Saúde Materno-Infantil e Planejamento Familiar, Programa Alargado de Vacinação, Saúde Escolar e do Adolescente, incluindo Saúde Sexual e Reprodutiva. A inserção da Enfermagem foi evidenciada na implementação das ações assistenciais. Os marcos evolutivos foram: a introdução dos cursos específicos de Enfermagem em saúde materno-infantil do nível básico ao superior e abrangência dos serviços do Programa Nacional Integrado.
Palavras-chaves: Assistência à Saúde. Saúde Materno-Infantil. Enfermagem.
ABSTRACT
For the interest to know about the public Policies of Mozambican government to the Health sector, this research put much emphasis on the process of implantation and implementation of assistance programs to maternal health looking at reflection about the philosophy of including nursing through ever-changing world or marked changes. Established in the 1970s, the National Health System came up with a maternal health protection program which in the 1980s was drawn into Maternal Health Program. This, in the 1990s was included in the National integrated program of maternal health and family planning, integrating a broad vaccination program, school health and adolescent sexual reproductive health. The inclusion of nursing in the implementation of integrated program became as the evidence through action assistances. The evolutional signs were the introduction of specific courses of Maternal and Infant Health Nursing from basic to superior levels, including the service of National Integrated Program.
Keywords: Delivery of Health Care. Maternal and Infant Health. Nursing
RESUMEN
Pesquisa Centrada en las políticas públicas del gobierno Mozambicano para el setor salud, con foco en los Programas de Asistencia en Salud Materno-infantil, con el propósito de presentar contextos básicos para la reflexión acerca de la filosofia de implantación e implementación de los programas mostrando sus marcos evolutivos e de la inserción de la Enfermería. Se constató que en la década 70, el Sistema Nacional de Salud adoptó el Programa de Protección Materno Infantil, que en la década de 80 se transformó en Programa de Salud Materno-infantil y posteriormente en la década de 90 fue inserido en el Programa Nacional Integrado de Salud Materno- Infantil y Planificación Familia, Programas Ampliado de Vacunación, Salud Escolar y del Adolescente incluyendo la salud Sexual y Reproductiva. La inserción de la Enfermería fue evidenciada en la implantación por medio de acciones asistenciales. Los marcos evolutivos marcan la introducion del los Cursos Específicos de Efermería en Salud Materno-infantil de nível básico al superior y de la expansion de los serviços.
Palabras Claves: Prestación de Atención de Salud. Salud Materno-Infantil. Enfermería
INTRODUÇÃO
Neste artigo são apresentados os programas de assistência à saúde materno-infantil adotados pelo Governo Moçambicano, pelo Sistema Nacional de Saúde, e são descritos contextos básicos que possam proporcionar uma reflexão precisa sobre a filosofia governamental, na evolução das características dos programas e da inserção da Enfermagem.
O estudo foi sustentado à luz da abordagem qualitativa centrada no método de análise documental, tendo como fontes primárias documentos legais obtidos em Instituições de nível central nomeadamente Ministério da Saúde de Moçambique (MISAU), Ministério de Mulher e Ação Sociais de Moçambique e Fórum de Mulher. Na perspectiva de apresentar uma visão concreta da evolução contextual do Programa de Saúde Materno-Infantil, fazem-se as suas descrição e análise por década (70, 80, 90) enfatizando as principais características de sua implementação em Moçambique Independente, bem como da inserção da Enfermagem nesses Programas.
CONTEXTO SOCIAL DA SITUAÇÃO DA MULHER MOÇAMBICANA
No contexto internacional, o período de 1975 a 1985 foi concebido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como "Década da Mulher", representada como um grande acontecimento político-social. Constituíram marcos preponderantes desse período a definição de 1975 como "Ano Internacional da Mulher" pela declaração da ONU1; a Primeira Conferência Mundial da Mulher em 1975, seguida pelo Primeiro Encontro de Mulheres Feministas, onde se aprovou a discussão sobre o conceito gênero - igualdade na sociedade2.
No contexto africano, concretamente na África Austral, a abordagem das questões relacionadas à situação da mulher, ou seja à integração e incorporação da mulher nos programas políticos nacionais e regionais, começou a tomar dimensões consideráveis após a Conferência Mundial sobre a Mulher, que teve lugar em Beijing, China em 1995.
Esta conferência constituiu alavanca para abordagem de questões de gênero, sobretudo para os governantes dos países da África Austral. A partir dessa Conferência, o Conselho de Ministros da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) optou por elaborar uma série de recomendações face à situação da mulher na região da África Austral.
Os governos da África Austral participantes da conferência de Beijing determinaram avançar com as recomendações da Declaração de Beijing, entre elas a promoção da igualdade e desenvolvimento e paz para a mulher no interesse da humanidade. Reafirmaram principalmente o compromisso pela implementação de:
Igualdade e direitos inerentes à dignidade humana da mulher e do homem conforme a carta da Nações Unidas à Declaração Universal dos Direitos Humanos com ênfase para a comunicação sobre a eliminação de todas formas de descriminação contra a mulher bem como a violência contra mulher e criança.3:116
Na declaração dos chefes de estado ou governo dos países constituintes da Sociedade Africana de Desenvolvimento da Comunidade (SADC), em setembro de 1995, priorizou-se a questão da situação da mulher nos programas de ação da região e nas iniciativas de edificação da comunidade.
Apesar desses compromissos declarados pelo governo, a realidade da mulher na África Austral se retrata pela grande vulnerabilidade, marginalidade político-sócio-cultural, e ela não goza ainda das mesmas condições de acesso aos serviços e recursos que os homens. Fatores como o analfabetismo, limitação a acesso às zonas urbanas, a crença e conservação de alguns tabus e hábitos culturais, dentre outros, fazem com que as mulheres estejam mais concentradas nas zonas rurais, onde as possibilidades ou facilidades aos serviços são escassas, o que as torna as primeiras vítimas dos efeitos negativos dos programas de ajustamento econômico. A minoria que aparentemente vence essa barreira por vezes permanece concentrada nas chamadas "profissões femininas" ou ascendem apenas para posições intermédias de direção.
A situação da mulher moçambicana é parte da realidade da mulher da África Austral. Os costumes característicos constituídos em nível familiar e cultural determinam a socialização de homens e mulheres na sociedade. Tanto nas formas mais alargadas das famílias, nas monogâmicas ou poligâmicas, nas das zonas rurais ou urbanas, mesmo nas de sistema de linhagem matrilinear, as mulheres ocupam, de modo geral, as posições subalternas. Sofrem discriminação de acordo com a idade, nível de escolaridade, poder e outros fatores, como ser "primeira mulher" em um casamento poligâmico.
Em relação ao governo moçambicano, o reconhecimento do papel da mulher na reconstrução do país foi demonstrado ainda durante o governo de transição, pela sua relevante participação na mobilização e organização da população, na produção coletiva, na transformação da sociedade contra concepções e práticas coloniais nas zonas libertadas.4 No entanto, nenhuma lei clara e objetiva favorecer a situação da mulher. Assim sendo, inspirada pelos movimentos feministas internacionais, a mulher moçambicana mostrou-se decidida na continuação da luta pela sua emancipação. Este ideal foi construído desde a formação da Organização da Mulher Moçambicana (OMM), nos últimos anos da luta de libertação nacional (1973). Esta decisão foi fortalecida pela II Conferência Nacional da OMM em 1976, que recomendou o incremento da mulher em todas atividades da consolidação da independência4. Nesta época, as suas atividades se resumiam essencialmente na participação massiva de trabalho voluntário, demonstrando um espírito da consciência patriótica e cívica da mulher moçambicana. Um outro aspecto não menos importante foi o engajamento da mulher no processo de cooperativização, traduzida pela criação de cooperativas agrárias, artesanais, de confecção de vestuários e outros.
A prática social mostra que, na estrutura familiar, a mulher moçambicana ocupa um papel importante como educadora das novas gerações. Entre "os chefes de agregados familiares no setor informal segundo o sexo, 52% correspondem aos agregados familiares chefiados por mulheres"5:25.
Estudos multicêntricos realizados pelo Centro de Estudos Africanos e Fórum Mulher em Moçambique revelam que, desde a metade da década de 90, a situação da mulher tem mostrado uma tendência de melhoria. Isto porque o governo tem revelado interesse de integrar a mulher em todos os setores inerentes ao desenvolvimento do país e à sua promoção. Este fato é justificado pela criação de um Ministério da Mulher, em 1998. Este Ministério, resultante das eleições multipartidárias, ocupa-se da situação da mulher e da família, assim como da coordenação de ação social e atenção à população vulnerável.
O governo monopartidário tinha como princípio a definição de cotas para a percentagem de participação de mulheres nos órgãos do poder, na então Assembleia Popular. Agora, a partir do ano 2000, Moçambique figura como um dos países da África Austral que ocupa uma das posições de destaque na escala mundial, com "28,6% de representatividade, no parlamento, por mulheres"5:78. Contudo, esta representatividade, de uma forma geral, ainda não repercutiu positivamente na vida social da mulher. Esta presença considerada "significativa" teve como base a estratégia governamental que consiste na inclusão de maior número de mulheres na lista de candidatos aos cargos políticos e de direção para os diversos setores da economia nacional. Mas a discriminação da mulher ainda se faz sentir, e a sua prevalência se deve a fatores como limitação de acesso educacional formal, violência doméstica, e muitas outras formas de discriminação de cunho sociocultural que privilegiam o caráter machista, do homem moçambicano, concebido socioculturalmente como um fenômeno normal.
A lei constitucional nega um tratamento discriminatório da mulher moçambicana, mas a prática social concede tal tratamento. Assim, a mulher continua apostando na luta pela sua emancipação e para que haja prática social não discriminatória que corrobore o texto constitucional.
PROGRAMAS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE DA MULHER EM MOÇAMBIQUE
Logo após a independência, a política governamental para o setor de saúde foi apostando na progressão dos modelos de assistência à saúde da população. Colocou no primeiro plano os Cuidados Primários de Saúde, definindo os grupos mulher e criança como prioritários. Para fazer face à essa agenda governamental, o Sistema Nacional de Saúde foi adotando diferentes estratégias e programas de assistência à saúde da mulheres e da criança.
Entre as estratégias usadas e os programas implantados e implementados para a assistência à saúde da mulher e da criança, os principais marcos evolutivos apontam principalmente para a: a) progressão dos níveis de formação do pessoal da Enfermagem em Saúde Materno-Infantil; b) abrangência das ações do Programa Nacional Integral de Saúde Materno-Infantil/Planejamento Familiar Programa Alargado de Vacinações e Saúde Escolar e de Adolescente; e c) sensibilidade governamental no incentivo e garantia de educação formal à jovem/mulher. Para melhor compreensão desses marcos evolutivos, apresentamos a descrição por década, começando por década 70, perpassando a de 80 e abordando a de 90.
O início da década 70 correspondeu o Governo de transição. Logo após a independência nacional em 1975, foram várias as dificuldades enfrentadas pelo Governo da Ex-República Popular de Moçambique, como consequência da pobreza de recursos financeiros e humanos qualificados herdados do governo colonial. Mas, dentro das estratégias das políticas públicas, os grupos da mulher e da criança foram definidos como os grupos mais vulneráveis e alvos das ações dos Serviços de Saúde Materno-Infantil e do Programa Alargado de Vacinações. Estes grupos-alvo representavam uma grande parte da população moçambicana, que se estimava em 16 milhões de habitantes. "O grupo mulher e criança correspondia a 40% da população total, sendo 17% de crianças e 23% de mulheres em idade fértil,"6 isto é, mulheres na faixa etária de 15 aos 45 anos.
Neste contexto, foi adotado o Programa de Proteção Materno-Infantil (PPMI), que tinha como objetivo principal reduzir a mortalidade materna e infantil. Para a satisfação desse objetivo, as ações desse programa se concentravam exclusivamente na assistência à saúde da mulher apenas no ciclo gravídico, parto e puerpério imediato, e da criança, no período neonatal.
A inserção da Enfermagem no programa ocorreu a partir das parteiras e parteiras auxiliares, que cobriam as ações assistências inerentes à consulta pré-natal, admissão de parturiente, acompanhamento da evolução do trabalho do parto, assistência ao parto, puerpério imediato e a assistência ao recém-nascido. A vacinação da gestante, assim como da criança, era realizada pelos agentes da medicina preventiva.
A formação dos profissionais da área de Enfermagem, assim como de outra área de saúde, exceto a Medicina, era limitada (formavam-se apenas quadros de nível básico) em função da elevada taxa de analfabetismo, que se estimava em 90% do total da população. Este índice elevado foi condicionado pela filosofia da educação do regime colonial, que colocava barreiras para o acesso à escola formal aos nativos não assimilados7. Os poucos nativos que tiveram acesso à educação formal no tempo colonial o fizeram por meio das Escolas Missionárias (católicas romanas e protestantes) cujo acesso era apenas permitido aos praticantes dessas religiões, pois a escolarização nessas Instituições tinha como objetivo conquistar mais "pessoas crentes" que pudessem disseminar o ensino do catecismo e apoiar as atividades religiosas, sobretudo na interpretação da bíblia. Outro grupo nativo que se beneficiara do acesso de educação formal foi o de assimilados, que, pela regra do processo de assimilação ditada pela legislação da época colonial, tinham que renunciar às suas práticas socioculturais para aderirem a modelos culturais da metrópole.8 Mesmo assim, continuavam as limitações à escolaridade formal, estudavam até o nível básico (quarta classe/série), poucos conseguiam prosseguir além da quarta classe. A maioria era encaminhada para cursos técnicos profissionalizantes, das escolas de artes e ofícios, o que não lhes possibilitava continuar para o ensino superior.
No contexto social, apesar de a mulher ter mostrado sua valiosa contribuição durante a luta de libertação nacional, mesmo com criação do seu primeiro movimento em 1973 (Organização da Mulher Moçambicana), a visão que se tinha do papel da mulher se resumia apenas pela dimensão biológica, tendo como principal papel a procriação (ser mãe), a condição de dona de casa limitava-se às competências de cuidados domésticos e obrigação de cuidar do marido. Este fato era vivenciado por toda mulher moçambicana independentemente da camada social mesmo em sociedades matrilineares onde a mulher era privada de sua autonomia e de gozar os seus direitos de cidadania.
Porém os desafios da mulher na luta pela sua emancipação foram se delineando a partir da II Conferência da OMM realizada em 1976, que recomendou o incremento da mulher em todas atividades da consolidação da independência.4 Quanto às suas atividades laborais, resumiram-se essencialmente no engajamento da participação massiva no trabalho voluntário, como indicador da consciência patriótica e cívica da mulher moçambicana. Participava essencialmente no processo de cooperativização traduzida pela criação de cooperativas agrárias, artesanais, de confecção de vestuários e outros, como já referido anteriormente.
Nesta época, a adesão aos Programas de Saúde pela comunidade, em particular aos da área preventiva, como era o caso de Proteção Materno-Infantil, não se fazia sentir quanto aos benefícios. Porém a política governamental, por meio do setor de saúde, envidava esforços na implementação das estratégias que garantissem a preservação e melhoria da assistência à saúde da mulher e da criança.
As estratégias educativas governamentais se resumiam basicamente à formação do pessoal, envolvimento de todo pessoal da saúde na disseminação das informações sobre os programas de assistência e sua importância. O envolvimento da própria comunidade, pelas organizações das massas populares, entre eles a OMM, os lideres comunitários e entidade vocacionada à atividade de informação, foi um ponto que contribuiu positivamente. Assim, a população foi tomando conhecimento e aderindo à assistência de forma gradual, pois os hábitos e costumes culturais constituíam fatores a serem considerados para a implementação dos novos modelos de assistência proporcionados a estes grupos-alvo (mulher e criança).
A década de 80 foi caracterizada pelos primeiros passos que marcam a evolução tanto dos Programas de Assistência à Saúde Materno-Infantil como da responsabilidade da Enfermagem na garantia dessa assistência.
Esta década contou com o desafio governamental direcionado à melhoria da condição de saúde da mulher e da criança. O anterior Programa de Proteção Materno-Infantil era concebido de forma avançada como Programa de Saúde Materno Infantil, com objetivos não só de reduzir a mortalidade materna e infantil, mas também de abranger a prevenção da morbilidade; ou seja, os objetivos se ampliaram tendo-se fixado a redução da morbimortalidade materna infantil e a perinatal. A taxa da mortalidade materna, assim como a infantil, continuou elevada; a estimativa era de 139/1.000 nascidos vivos para taxa da mortalidade infantil. As principais causas se sumarizavam em doenças por malária, infecções respiratórias agudas, desnutrição doenças diarreicas e sarampo. A mortalidade materna correspondia a 600/100.000 nascidos vivos, por causas relacionadas a sepse e hemorragias pós-parto, ruptura uterina, eclampsia, complicações por aborto, anemia grave e doenças inflamatórias pélvicas (DIP), geralmente por consequências de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs)6. O Programa de Saúde Materno-Infantil, em 1984, ampliou a assistência à saúde da mulher para além do ciclo gravídico, parto e puerpério imediato, incluindo a consulta pós-parto e a de planejamento familiar; ampliou-se a assistência à especificidade de adoecer da população feminina.
Como estratégia do governo para a implementação do PSMI, introduziu-se, pela primeira vez, a formação específica de profissionais da área de Enfermagem de nível básico (Enfermeiras de Saúde Materno-Infantil), com um perfil profissional que pudesse atender às pretensões do Programa.
A inserção da Enfermagem se tornou evidente pela integração e atuação das primeiras Enfermeiras de Saúde Materno-Infantil, que iniciaram suas funções em 1º de março de 1984. Competia a essas Enfermeiras prestar assistência à mulher no pré-natal; admissão de parturientes e acompanhamento na evolução do trabalho de parto; assistência ao parto e puerpério; consulta de pós-parto e de planejamento familiar, imunização da gestante e criança onde não havia este tipo de atendimento. Competia realizar a consulta de puercultura (desenvolvimento e controle de estado nutricional da criança) e triagem de consulta de pediatria. Simultaneamente, supervisionavam as ações do Programa de Saúde Materno-Infantil a nível das Direções Provinciais da Saúde (DPS), assim como das Direções Distritais, geralmente coadjuvada com as ações do médico gineco-obstétrico e/ou o responsável provincial e/ou distrital da Medicina Preventiva. Também, estas enfermeiras respondiam pela formação contínua das parteiras e parteiras elementares, assim como pelo cadastramento e formação de parteiras tradicionais.
No contexto sociocultural e político, registraram-se mudanças pouco significativas quanto à saúde da mulher. Os resultados da luta pela emancipação da mulher começavam a se pronunciar. De um lado, os hábitos socioculturais e econômicos continuavam implicando a condição desfavorável para a mulher. De outro lado, as mulheres estavam majoritariamente empregadas no setor agrícola e comércio informal, o que não dissociava a relação da mulher com os afazeres domésticos e a exclusão da escolaridade formal. A mulher continuava privada da decisão autônoma de sua condição feminina. Mesmo com a disponibilidade dos métodos anticoncepcionais de forma gratuita, com prioridade para as mulheres de alto risco obstétrico (ARO), a adesão das usuárias, com seus direitos, era quase nula; as poucas mulheres que aderiam aos programas tinham sua decisão limitada, pois preservavam a norma cultural na qual o marido é o sujeito que devia decidir por ela, postura que caracterizou a submissão da mulher ao poder machista, ou seja do homem sobre a mulher.
Mesmo assim, com a intensificação da informação sobre os programas de assistência à saúde da mulher e da criança e os seus benefícios, a adesão aos programas começou a registrar parâmetros satisfatórios, quando comparado com os anos anteriores, bem como de adesão às tendências do crescimento populacional.
Da década de 90 em diante, a Assistência à Saúde Materno-Infantil é inserida no Programa Nacional Integrado de Saúde Materno-Infantil/Planejamento Familiar (SMI/PF) Programa Alargado de Vacinações (PAV) e Saúde Escolar e de Adolescente (SEA). O objetivo geral desse Programa ficou centrado na redução da:
morbimortalidade materna, infantil e juvenil assim como de crianças em idade escolar e adolescentes, promovendo as práticas necessárias para uma vida saudável, através de intervenções integradas preventivas e curativas, a serem desenvolvidas desde a comunidade até aos níveis de referência do Serviço de Saúde, dirigidas especialmente para as doenças e as situações que mais contribuem para a morbimortalidade e que prejudiquem o desenvolvimento individual e social, priorizando os indivíduos e grupos mais vulneráveis.6:9
Nessa década, a coordenação das atividades de Saúde Materno-Infantil se separou em dois componentes: a Materna e a Infantil. A Materna assume ações inerentes à saúde da mulher e mulher adolescente, e o componente Infantil, que além da assistência à criança dos 0 aos 5 anos, inclui a criança na idade escolar, adolescente e jovem, enfatiza ações de saúde escolar, entre elas as atividades de educação em saúde voltadas para imunizações, saúde oral, saúde mental e saúde sexual e reprodutiva, com enfoque nas Infecções de Transmissão Sexual (ITS), incluindo HIV/AIDS.
Esta mudança programática por área do Programa de Saúde Materno-Infantil desencadeou-se com base nos resultados da Conferência da População e Desenvolvimento, que teve lugar no Cairo em 1994, onde foi "relacionada a saúde reprodutiva e sexual com o desenvolvimento dos povos e das nações".9:7
A inserção de Enfermagem nesses programas continua a ser representada pela enfermeira de saúde-infantil e pelas parteiras elementares, e são também integradas nesta época as enfermeiras licenciadas e especializadas em Enfermagem Obstétrica e uma mestre em Enfermagem na área de saúde da mulher.
Nesta perspectiva, as atribuições dessa classe profissional coerentes com o Sistema Nacional de Saúde se expandiram no sentido de responder a necessidade de cumprimento das diretrizes e ações programáticas dos componentes de Saúde Sexual e Reprodutiva. Entre os componentes de Saúde Reprodutiva, destacam-se:
a) Componentes da Maternidade Segura: cuidados pré-natais; atenção ao parto; cuidados obstétricos essenciais; cuidados perinatais e neonatais; cuidados pós-parto e aleitamento materno; b) Informação, educação, comunicação, aconselhamento em saúde reprodutiva e serviços de planejamento familiar; c) Prevenção e tratamento da infertilidade e disfunções sexuais de ambos, (Homem e Mulher); d) Prevenção e tratamento de complicações do aborto; e) Garantia de aborto seguro; f) Prevenção e tratamento de infecções do aparelho reprodutor, especialmente as infecções sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV e SIDA g) Promoção da Maturação Sexual Saudável desde pré-adolescência e uma vida sexual saudável e responsável ao longo da vida com equidade de gênero; h) Eliminação de práticas negativas e nocivas, tais como a mutilação genital feminina, casamentos prematuros e violência doméstica sexual contra mulher; i) Tratamento das condições não infecciosas do sistema reprodutor, tais como fístula genital, carcinoma do colo, complicações da mutilação genital feminina e problemas de saúde associados à menopausa.9:7-8
Nessa magnitude de ações, o marco de destaque dessa década foi o da formação de profissionais de Enfermagem em Saúde Materno-Infantil de nível médio, inicialmente no curso de promoção, posteriormente cursos iniciais em paralelo com os promocionais. Este avanço culminou com o início do Curso Superior em Enfermagem e Enfermagem em Saúde Materna em 2004, ambos oferecidos pelo Instituto Superior de Ciências de Saúde, uma instituição pública com uma política de caráter politécnica, voltada para formação do pessoal da área de saúde, de acordo com as necessidades reais da população moçambicana.
A condição social da mulher começou a ganhar novos horizontes à luz da Conferência Mundial sobre a Mulher em Beijing-China, em setembro de 1995. Na elaboração das atividades desenvolvidas no contexto da plataforma de Ação de Beijing, o governo moçambicano, assim como de outros Países de África Austral, priorizou projetos de investigação sobre o desemprego feminino, analisando as suas causas, implementou diversos projetos de cursos de curta e/ou longa duração; concessão de créditos às populações de zonas rurais com prioridade as mulheres; projetos de educação e apoio a jovens/mulheres do ensino superior, com concessão de bolsas de estudo, tudo com objetivos de melhorar as condições da mulher moçambicana e incentivar, principalmente nas mulheres jovens, o espírito de trabalho, de autoestima e de confiança, e combater a prostituição e drogas, assim como as desigualdades sociais acentuadas entre a população de zonas urbanas e rurais.
A abordagem de questões de gênero tomava relevância na agenda do governo. O Diploma Ministerial 44/97 de 20 de junho reconhecia formalmente o grupo operativo para o avanço da mulher, uma unidade central de coordenação de políticas dentro do Governo Moçambicano, cuja principal tarefa era apoiar a integração do gênero a nível do governo5. Eram realizados vários estudos/investigações, a maioria pelo Núcleo de Estudos da Mulher no Centro de Estudos Africanos por meio do seu Departamento de Estudos da Mulher e Gênero (DEMEG) oficializado em maio de 1999. Os estudos ora referidos abordam questões sobre as relações sociais mulher/homem, no contexto da economia política do país, enfatizando aspectos do gênero na realidade moçambicana. Isto reforçou a temática do gênero e possibilitou a ampliação do interesse de alguns moçambicanos de participarem na área de gênero e desenvolvimento. Neste contexto, há evidências do reconhecimento de integração da mulher nos órgãos de poder. Desde as eleições multipartidárias que marcaram o início do processo democrático no país, a percentagem de mulheres era estimada em 31,2% em relação ao número total dos deputados na Assembleia da República10. Este aumento do número de mulheres que assumiam cargos governamentais, como primeira ministra, ministras e vice-ministras, assim como governadoras provinciais e administradoras distritais, pode revelar um esforço não só governamental, mas também o esforço e a luta das mulheres pela sua integração em todas as instâncias sociais e esferas de poder governamental.
Apesar de ainda persistirem alguns fatores condicionantes socioculturais que contribuem negativamente para a adesão da mulher ao Programa de Assistência à Saúde da Mulher e da Criança, notam-se grandes avanços não apenas na cobertura, mas também na melhoria da qualidade dos serviços oferecidos, partindo do nível de formação e de conhecimento dos profissionais, da abrangência da assistência, da distribuição da rede sanitária e de outros fatores contribuintes, entre eles a complementaridade interinstitucional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Moçambique é um país jovem, com apenas 33 anos de independência, proclamada em 25 de junho de 1975. No governo de transição, o Estado adotou políticas e diretrizes, orientadas para superação das dificuldades herdadas do governo do regime colonial caracterizado principalmente por fraca economia e pobreza dos recursos humanos qualificados e dos serviços de saúde necessários à realidade da população moçambicana.
Como se pode ver no resumo sobre a evolução dos programas nas Tabelas I e II, a trajetória dos Programas de Assistência à Saúde Materna e Infantil, adotados pela política pública governamental para o setor da saúde por meio do Sistema Nacional de Saúde, assim como a inserção da Enfermagem registraram marcos evolutivos a considerar: os Programas de Assistência à Saúde da Mulher ao longo das três décadas foram se adequando à realidade do desenvolvimento socioeconômico e político do País, sem se distanciar das diretrizes internacionais preconizadas para a Assistência à Saúde Materno-Infantil das nações.
Os anos 70 se caracterizaram por uma assistência com enfoque protetor preconizado pelo Programa de Proteção Materno-Infantil, em que a Enfermagem se inseria por meio das ações realizadas pela parteira, que prestava assistência às mulheres apenas no ciclo gravídico, parto, puerpério e na assistência ao recém-nascido até o período neonatal. Nessa década, apesar de a mulher ter mostrado a sua capacidade e participação da luta para conquista da independência nacional, mesmo com a Organização da Mulher Moçambicana (OMM) em 1973, a sua imagem social se concebia apenas no papel biológico de procriação e vida submissa à do homem.
Nos anos 80, a prestação dos cuidados de Saúde Materno-Infantil se ampliou. As ações se expandiram para além da consulta pré-natal, assistência ao parto e puerpério; foram incluídas as consultas de pós-parto e de planejamento familiar, no âmbito de cumprimento do novo Programa de Saúde Materno-Infantil, que também contemplava a assistência à criança dos 0 aos 4 anos, no que diz respeito à consulta de puericultura e triagem de consulta de pediatria. A Enfermagem assume um papel importantíssimo na garantia e sustentação da implementação das ações preconizadas por esse Programa, pelas enfermeiras de saúde materno-infantil do nível básico, parteiras e parteiras elementares; no contexto social, a mulher intensifica as ações programadas na década anterior pela OMM em prol da sua emancipação. Começa a notar-se a inserção da mulher no mercado de trabalho e no poder legislativo, porém com muitas limitações pela sua condição social feminina de dependência do marido e por possuir nível de escolaridade baixo.
Já nos anos 90 em diante, se evidenciou um passo gigantesco na história da população feminina moçambicana em quase todos os âmbitos sociais. A assistência à saúde da mulher é dada de maneira integral. Na Enfermagem moçambicana, houve uma evolução ascendente na formação profissional com a inserção das primeiras enfermeiras licenciadas e especializadas em Enfermagem Obstétrica: uma em 1996, seis em 2001 e 2002 e, em 2003, a primeira Enfermeira com o título de Mestre em Enfermagem, na área de Saúde da Mulher, todas formadas por escolas brasileiras de Enfermagem. Em 2004, com a abertura do Instituto Superior de Ciências de Saúde (ISCISA), Moçambique iniciou a formação do pessoal de nível superior em Enfermagem e Enfermagem em Saúde da mulher*.
A assistência à saúde da mulher passa a responder pontualmente às exigências do Programa Nacional Integrado de Saúde Materno-Infantil/Planejamento Familiar Programa Alargado de Vacinação - Saúde Escolar e do Adolescente, incluindo também o componente de saúde sexual e reprodutiva assim como as vertentes da maternidade segura e cuidados obstétricos essenciais. A agenda governamental enfatiza a abordagem do gênero e propícia ampliação na participação da mulher no poder legislativo.
No entanto,a questão da classe feminina ainda é vista, tanto no contexto social como político, de forma discriminatória. Apesar de a Constituição da República, de um lado, consagrar os mesmos direitos para homens e mulheres trabalhadoras e a lei constitucional defender o tratamento não discriminatório da mulher, de outro lado, a prática social e a legislação ordinária demonstram contradições ainda merecedoras, a rigor, de pesquisas que demonstrem evidências e permitam avançar nas conquistas das mulheres na sua emancipação.
Acredita-se que ainda existam traços evidentes da discriminação da mulher seja no sentido negativo ou no positivo. Ora vejamos: na estrutura legal e proteção dos direitos humanos na sua convenção, Moçambique adotou e ratificou a convenção das Nações Unidas sobre a eliminação de todas formas de descriminação contra mulher em 1993, tendo entrado em vigor em maio de 199710. Apesar desse avanço na legislação, existe ainda ambiguidade. Por exemplo, a Constituição proíbe a discriminação contra a mulher na base do sexo; o artigo 9 sobre a lei de nacionalidade dá direitos iguais à mulher no que tange à nacionalidade dos filhos, porém, quando se trata de casamentos, a mulher estrangeira que contrai matrimônio com um moçambicano pode aderir a nacionalidade moçambicana, enquanto o mesmo direito não é conferido ao estrangeiro que contrai matrimônio com uma mulher moçambicana.
Se formos aplicar uma crítica severa, reconheceríamos como uma discriminação positiva o fato da criação do Ministério da Mulher, pois, no nosso ponto de vista, essa ideia preserva a situação de discriminação feminina, colocando a mulher no auge da vulnerabilidade, o que nos leva a corroborar os seguintes dizeres:
(...) a criação do Ministério da Mulher e Ação Social que se ocupa da população vulnerável, mulher, e da família, esta decisão contraria a perspectiva de gênero que o próprio governo diz assumir, já que a questão da mulher é inserida num Ministério que se ocupa dos grupos vulneráveis e por outro lado, a mulher é vista em relação com a família, retirando ao homem a responsabilidade pelas tarefas de zelo familiar4:77.
Na opinião pessoal, a questão prioritária não reside no fato da criação de uma instituição que aborde questões da mulher, mas sim em promover ações alusivas à inclusão da mulher e/ou atividades que contribuam para o desenvolvimento da mulher e do país no geral, tendo em conta a perspectiva do gênero com a inclusão do homem.
REFERÊNCIAS
1. Tyrrell MA, Carvalho V. Programa Nacional de Saúde Materno Infantil: impacto político-social e inserção de enfermagem. [tese de doutorado] Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ; 1993.
2. Martins CA. O Programa de Assistência à Saúde da Mulher-PAISM em Goiânia: (des) institucionalização da consulta de enfermagem no pré-natal. [tese de doutorado] Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ ; 1999.
3. 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher. Beijing, China set 4-15 o 1995 in Silva T, Andrade X. Para além da desigualdades: a mulher moçambicana. Maputo(MZ): CEA; 2000.
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5. Silva T,& Andrade X. Para além da desigualdades: a mulher moçambicana Maputo (MZ): CEA; 2000.
6. Ministério da Saúde (BR). Direção Nacional de Saúde. Programa Nacional Integrado de SMI/PF-PAV-SEA. Maputo (MZ): MISAU; 1997.
7. Lourenço MA. Representações socioculturais e designação metacognitiva em aprendizagem bilingue (tchuabo e português); implicações para o ensino fundamental em Moçambique. [tese de doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto de Psicologia/ UFRJ; 2005.
8. Cabaço JL. Políticas de indentidade no Moçambique colonial. São Paulo(SP): Brasiliense; 1986.
9. Osman N, et al. Manual de cuidados obstétricos essenciais. Maputo(MZ): MISAU-Norad-UNIFPA-Columbia University; 2002.
10. Relatório nacional sobre a convenção para eliminação de todas as formas de discriminação contra mulher. Maputo (MZ); 2003.
Recebido em 13/08/2008
Reapresentado em 29/04/2009
Aprovado em 02/05/2009
ANEXO