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CAPES

Volume 13, Número 3, Jul/Set - 2009

PESQUISA

 

Realidade vivenciada e atividades educativas com prostitutas: subsídios para a prática de enfermagema

 

Reality experienced and educational activities with prostitutes: basis for the nursing practice

 

Realidad vivida y actividades educativas con prostitutas: subsidios para la práctica de la enfermería en su proceso de vivir

 

 

Ana Débora Assis Moura I; Ana Karina Bezerra Pinheiro II; Maria Grasiela Teixeira Barroso III

I Enfermeira. Mestre em Enfermagem em Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora da Faculdade Integrada da Grande Fortaleza (FGF). Brasil. E-mail: anadeboraam@hotmail.com.,
II Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora de Graduação e Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC). Brasil. E-mail: anakarinaufc@hotmail.com,
III Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Emérita da Universidade Federal do Ceará. Docente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFC. Brasil. E-mail: grasiela@ufc.br

 

 


RESUMO

As prostitutas não deixam de estar relacionadas às doenças sexualmente transmissíveis (DST), pois o sexo faz parte do seu dia-a-dia, como profissão. Este estudo objetiva descrever as condições de vida e saúde das prostitutas e analisar o trabalho educativo realizado pela Associação das Prostitutas do Ceará (APROCE) quanto à prevenção das DST/AIDS. Do tipo descritivo, com abordagem qualitativa. A coleta de dados foi realizada de novembro de 2006 a janeiro de 2007, acompanhando as educadoras sociais da APROCE em algumas zonas de prostituição de Fortaleza. Observou-se que as prostitutas vivem em precárias condições socioeconômicas, não têm assistência à saúde adequada e que, apesar de relatarem usar o preservativo em todas as relações sexuais, a realidade é bem diferente. Conclui-se que as estratégias de Educação em Saúde utilizadas pela APROCE estimulam, de certa forma, a mudança de comportamento, pois repassam informações sobre DST/AIDS e entregam frequentemente o preservativo para as prostitutas.

Palavras-chave: Prostituição. Doenças Sexualmente Transmissíveis. Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Educação em Saúde. Prevenção Primária.


ABSTRACT

The prostitutes are related to sexually transmitted diseases (STDs), because the sex is part of their daily, as a profession. This study aims to describe the living and health conditions of prostitutes and analyze the educational work carried out by the Association of Prostitutes of Ceara (APROCE) about the prevention of STDs and AIDS. A descriptive type, with a qualitative approach, the data collection was realized from November 2006 up to January 2007, following the social educators of APROCE in some areas of prostitution in Fortaleza. It was observed that the prostitutes living in precarious socioeconomic conditions, with a lack of adequate health care and although they have reported that they use condoms in all sexual relations, the reality is different. Therefore, the strategies for Health Education used by APROCE stimulates, somehow, the behavior's change, it passes information on STD / AIDS and often delivers the condoms to prostitutes.

Keywords: Prostitution. Sexually Transmitted Diseases. Acquired Immunodeficiency Syndrome. Health Education. Primary Prevention.


RESUMEN

Las prostitutas no dejan de estar generalmente relacionadas a las enfermedades sexualmente transmisibles (EST), pues para la prostituta, el sexo - como profesión es parte de su cotidiano. Ese estudio tiene como objetivo describir las condiciones de vida y de salud de las prostitutas y analizar el trabajo educativo de prevención de EST/SIDA realizado por la Asociación de Prostitutas de Ceará (APROCE). Estudio de tipo descriptivo, com abordaje cualitativo. La recolección de datos fue realizada de noviembre de 2006 a enero de 2007, acompañando a las educadoras sociales de la APROCE a algunas zonas de prostitución de Fortaleza. Se observó que las prostitutas viven en condiciones socioeconómicas precárias, y que no cuentan con la asistencia de salud adecuada; a pesar de relatar que usan el preservativo en todas sus relaciones, la realidad es muy diferente. Se concluye que las estratégias de educación en salud utilizadas por la APROCE estimulan, de cierta forma, el cambio de comportamiento, pues pasan informaciones sobre EST/SIDA y entregan frecuentemente preservativos a las prostitutas.

Palabras clave: Prostitución. Enfermedades de Transmisión Sexual. Síndrome de inmunodeficiencia adquirida. Educación para la Salud. Prevención Primaria.


 

 

INTRODUÇÃO

As doenças sexualmente transmissíveis (DST) são consideradas um risco ocupacional para as prostitutas, pois estas devem utilizar na sua prática profissional o preservativo como instrumento de proteção individual.

Sabe-se atualmente que o preservativo é considerado um dos métodos mais eficazes na prevenção das DST/AIDS, desde que seja utilizado em todas as relações sexuais e de forma adequada. Só que, para que a prostituta e o cliente utilizem o preservativo, são necessários conhecimentos sobre sua importância, técnica de utilização e de abordagem de seus clientes. A Educação em Saúde é a estratégia mais eficiente na prevenção das DST/AIDS, pois somente ela traz mudança de comportamentos, valores e atitudes.

Estudos revelam que as prostitutas não usam o preservativo em todas as relações sexuais e com determinados parceiros, por esses homens não aceitarem o uso do preservativo e pagarem mais pelo "programa", ou por serem parceiros fixos e não acharem necessário seu uso; dessa forma, todos os envolvidos nesse ciclo (prostituta, parceiro, outras parceiras desses homens) se tornam cada vez mais vulneráveis a contrair uma doença transmitida pelo sexo, entre elas a AIDS1.

Anteriormente, ao se falar em comportamento de risco, o indivíduo era responsabilizado por sua exposição ao HIV. Com o conceito de situação de risco, levou-se em consideração o momento da ação, mas manteve-se centrada a responsabilidade do indivíduo, uma vez que caberia a ele gerenciar esse risco, identificando e evitando as situações2.

Do fim do século XIX até o início deste século, a prostituição estava diretamente relacionada às doenças venéreas, ao ponto de não se poder contar a história dessas doenças sem se falar em prostituição, assim como não se falava em AIDS sem se falar em homossexualidade. Na era da AIDS, dentro de uma perspectiva de saúde coletiva, surge uma outra concepção de doença, não se destacando alguns indivíduos, e sim a sociedade como um todo3.

O conceito de vulnerabilidade traz uma percepção ampliada e reflexiva, identificando as razões da transmissão que vão desde as suscetibilidades orgânicas à maneira como são estruturados os programas de saúde, passando por aspectos comportamentais, culturais, econômicos e políticos4.

Apesar dessa nova perspectiva, as prostitutas não deixam de ser relacionadas às DST, pois o sexo faz parte do seu dia-a-dia, como profissão, tornando essas mulheres mais expostas se não se prevenirem adequadamente, em razão dos seus múltiplos parceiros.

Portanto, as DST ainda estão associadas às mulheres que têm diversos parceiros, dificultando a percepção do risco e da situação de vulnerabilidade a que estão submetidas5.

As infecções de transmissão sexual ainda são grave problema de saúde pública, pois cerca de 12 milhões de pessoas contraem uma DST por ano. Como a notificação não é compulsória e como cerca de 70% das pessoas com alguma DST buscam tratamento em farmácias, são notificados apenas 200 mil casos por ano no Brasil. No Ceará, foram notificados 255 casos no ano de 20046.

Com relação à AIDS, em 2003, foram notificados 32.247 casos novos de AIDS no Brasil, com uma taxa de 18,2 casos por 100.000 habitantes. Entre 1980 e 2004, foram registrados 362.364 casos no País. Observou-se o crescimento constante em mulheres, cuja maior taxa de incidência ocorreu em 2003, com 14 casos por 100 mil mulheres. A mortalidade por AIDS foi 2% maior em 2003 do que em 2002, com 11.276 óbitos. A taxa de mortalidade permaneceu estável, com 6,4 óbitos por 100.000 habitantes e com 8,8 óbitos por 100.000 homens, mas manteve a tendência crescente entre as mulheres nas regiões Sul, Norte e Nordeste do País6.

Esse crescimento se verifica principalmente entre a população feminina, negra e com menor escolaridade. Pesquisa recente do Ministério da Saúde revela que o Estado prevalente em portadores da doença é o Rio Grande do Sul, com 31,3 casos por 100 mil habitantes; houve aumento da taxa entre homens de mais de 50 anos e entre as mulheres de mais de 30 anos; entre os adolescentes, detectou-se discreta queda; após os dados sobre cor começarem a ser colhidos nas pesquisas, percebeu-se aumento do número de casos em mulheres de cores negra e parda7.

Com este aumento substancial do número de casos de AIDS no país, principalmente em mulheres, o foco das intervenções estatais passou a contemplar todos os indivíduos considerados vulneráveis, não mais os grupos de risco, porém verifica-se que, apesar das tentativas em todo o mundo para a prevenção desta doença nas regiões mais pobres do planeta, miséria e prostituição são palavras praticamente sinônimas.

Partindo do interesse da prevenção das DST/AIDS com as prostitutas de Fortaleza, surgiu, há 18 anos, a Associação das Prostitutas do Ceará (APROCE). A Associação realiza um trabalho educativo com suas associadas em zonas de prostituição, abrangendo o centro da cidade, a orla marítima e dois bairros periféricos. A APROCE é formalmente constituída por sua presidente e 12 educadoras sociais (ES), prostitutas e ex-prostitutas, contando com 3.200 associadas em 35 municípios do Estado do Ceará. O projeto "Educação pela Sedução", desenvolvido pela APROCE e acompanhado pela pesquisadora, tem como objetivo principal orientar as prostitutas quanto às medidas de prevenção, visando mudanças de comportamento e contribuindo para a redução da transmissibilidade do HIV. As atividades realizadas são: a atuação de educadoras capacitadas, a distribuição de preservativos, o aconselhamento e encaminhamento aos serviços de saúde, a realização de oficinas de sexo seguro, a apresentação de peça educativa e a produção de material informativo8.

Após vivenciarmos experiências educativas junto à APROCE e conhecermos um pouco da realidade em que trabalham algumas prostitutas, sentimos a necessidade da realização do presente estudo, com o objetivo de descrever as condições de vida e saúde das prostitutas e analisar o trabalho educativo realizado pela Associação das Prostitutas do Ceará (APROCE) no que se refere à prevenção das DST e AIDS.

 

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo do tipo descritivo, com abordagem qualitativa, que tem por finalidade observar, descrever e documentar os aspectos da situação. A pesquisa qualitativa indica que os conhecimentos sobre os indivíduos somente são possíveis com a descrição da experiência humana, tal como é vivida e definida por seus próprios agentes9.

A coleta de dados foi realizada de novembro de 2006 a janeiro de 2007, no turno da tarde, com frequência de três visitas por semana, totalizando uma média de 20 visitas. Realizamos visitas às zonas de prostituição e acompanhamos as educadoras sociais (ES) nas suas atividades para observar como estava sendo realizado todo o processo educativo, com anotações no diário de campo, documentando e descrevendo as informações referentes às características dos ambientes das zonas de prostituição, às entrevistas informais com as prostitutas e aos relatos das atividades educativas desenvolvidas em cada local.

As áreas de prostituição visitadas foram: a Praça da Estação; a Praça do Passeio Público; a Praça José de Alencar; os bares/prostíbulos do centro da cidade, do Farol do Mucuripe, da Barra do Ceará e da Avenida Perimetral, todos localizados na cidade de Fortaleza, Ceará. Após a coleta dos dados, estes foram apresentados de forma descritiva, dos quais emergiram duas categorias: condições de vida e saúde das prostitutas de Fortaleza e atividades educativas desenvolvidas pela APROCE.

Os dados foram analisados segundo a Teoria Crítica, que tem a proposta de se posicionar criticamente diante da sociedade contra os sistemas de dominação do homem, dos quais este não tem como escapar. A Teoria Crítica não é uma unidade, e sim, na sua essência, o fruto da mudança diante da proposta de libertação do homem pelo saber10.

Os aspectos éticos foram fortemente respeitados neste estudo, e o projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (COMEPE) da Universidade Federal do Ceará (UFC), tendo sua aprovação sob o protocolo de nº228/06; os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando sua participação voluntária na pesquisa; foram explicados os objetivos do estudo a todos os sujeitos, garantindo o sigilo e o anonimato, no intuito de preservá-los em sua identidade e privacidade. Deixamos claro como as informações seriam utilizadas e, por fim, respeitamos a autonomia dos sujeitos, pois foram deixados à vontade para desistir da pesquisa no momento que lhes conviesse, ao longo de suas etapas, para recusar-se a dar qualquer informação e para solicitar esclarecimentos acerca dos objetivos da pesquisa. Estes tiveram a oportunidade de comprovar a beneficência e a não maleficência que permearam todo o processo, assim como a justiça e a equidade. O estudo é parte integrante do projeto de pesquisa intitulado "Educação em Saúde com prostitutas na prevenção das DST/AIDS: reflexões à luz de Paulo Freire".

 

RESULTADOS

Durante a coleta de dados, participamos semanalmente das reuniões com a presidente e as educadoras sociais da APROCE. Essas reuniões ocorreram para programar as atividades da semana e avaliar as tarefas executadas.

No período pesquisado, a APROCE envolveu-se com diversas atividades: realizou, em parceria com alunos e professores do curso de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC), campanha de prevenção do câncer ginecológico para as prostitutas associadas; coletou dados para uma pesquisa da Prefeitura Municipal de Fortaleza; realizou atividades educativas nas principais zonas de prostituição da cidade e colaborou com a promoção do Dia D da Saúde para as prostitutas.

Condições de vida e saúde das prostitutas de Fortaleza

No Passeio Público, as prostitutas eram mais reconhecíveis, pois ficavam sentadas nos bancos da praça em grupinhos e vestiam-se de forma insinuante. Havia mulheres de todas as idades, de 17 a mais de 50 anos. Eram mulheres muito pobres e carentes, que, quando sentiam aproximação para conversar, contavam suas histórias de vida. Uma delas relatou problemas de saúde e até confessou história de DST e drogas anteriores. Essas mulheres apresentavam a aparência mal cuidada, provavelmente em virtude do uso exagerado de álcool, tabaco e da perda de sono.

Alguns homens também perambulavam pela praça. Uma ES relatou que alguns eram clientes e outros eram companheiros de prostitutas, que observavam o trabalho de sua mulher para depois exigir seu dinheiro. As prostitutas aproximavam-se das ES à procura de preservativos. Assim, as ES também conseguiam identificar as prostitutas novatas na área e fazer seu cadastro.

Visitamos também bares próximos ao Passeio Público. Esses bares são pontos de encontro entre as prostitutas e seus clientes, que passam um tempo no bar consumindo bebidas alcoólicas, acertam o valor do programa e vão para os motéis vizinhos; outros bares possuíam quartos nos fundos destinados à clientela.

Observamos que as prostitutas frequentadoras dessa praça têm baixas condições socioeconômicas, pois referiram sair de casa pela manhã e só retornar à noite, fazendo, muitas vezes, apenas um "programa" por dia e tendo renda mensal de, no máximo, um salário mínimo. Uma delas relatou que, mesmo apresentando algum problema de saúde, não podia comentar nem com suas colegas, nem com as ES, pois, de qualquer forma, precisava trabalhar para sustentar a família e não tinha nem tempo nem condições financeiras de procurar um serviço de saúde.

As mulheres pesquisadas consideram a prostituição como um trabalho fixo, embora com renda variável. Elas passam a maior parte do dia nas ruas, sendo que o número de "programas"/dia não evidencia que tenham um bom rendimento. Às vezes elas não conseguem realizar nenhum11.

Com relação à prevenção das DST/AIDS, a maioria das prostitutas relatava usar o preservativo com todos os clientes, mas as ES referiram que algumas pedem ajuda contando que estão com DST e que acabaram fazendo o "programa" sem preservativo, pois o cliente ofereceu mais dinheiro por ele. Também relataram não fazer uso do preservativo com o parceiro fixo (namorado ou companheiro). Em decorrência disso, deparamo-nos com relatos de várias prostitutas contando histórias vivenciadas de DST. Uma delas referiu já ter contraído sífilis, sendo a doença diagnosticada durante a gestação; outra prostituta, da mesma área, apresentava diagnóstico de condilomatose genital extensa sem tratamento. Várias outras referem inflamações ginecológicas diagnosticadas anteriormente, além de outros problemas de saúde.

O diagnóstico de DST causa, na maioria das vezes, um impacto negativo e afeta seriamente os aspectos emocionais da mulher, podendo gerar, inclusive, riscos de vida, pois leva as pessoas a apresentarem quadros depressivos e sentimentos negativos5. Ainda mais se esse fato repercutir no lado financeiro dessa mulher, pois muitas delas são impossibilitadas de exercer a profissão no caso de uma DST presente.

Foi identificada a existência de mulheres casadas, que saem às tardes para o centro da cidade para realizar "programas" sem o conhecimento da família, e de algumas prostitutas grávidas de clientes desconhecidos. Aconteceram relatos de que, algumas vezes, o preservativo se rompe, e, se acontecer uma gravidez, não dá para se identificar quem é o pai da criança. Outras referiam receber os preservativos regularmente da Associação, mas não os utilizavam com todos os clientes, somente com os estrangeiros e clientes novos, desconhecidos; quando o cliente era antigo, conhecido, não o usavam. Por isso, utilizavam como método contraceptivo o anticoncepcional oral ou injetável.

Algumas mulheres referiram iniciar a vida na prostituição muito cedo, ainda na adolescência (13, 14 anos), fazer uso de bebidas alcoólicas frequentemente, já ter feito uso de maconha, cola e anfetaminas e já ter contraído DST anteriormente.

A promiscuidade feminina e o uso de drogas são questões suficientemente importantes para conduzir ao acometimento por DST ou mesmo HIV, acarretando uma sensação de sentimentos morais12. Os usuários de drogas são marginalizados, em razão, principalmente, da criminalização da droga, que os induz a conviver na clandestinidade, tornando-os vítimas da corrupção, do roubo, da violência física e da própria lei, levando muitos à marginalidade e morte precoces. Portanto, o clima persecutório, interiorizado pelo usuário, dificulta a adoção de práticas na prevenção das DST/AIDS13.

As prostitutas mostraram-se, em geral, receptivas e com muita vontade de serem ouvidas, de contarem histórias das suas vidas ou até mesmo de colegas prostituídas. Em uma das visitas à Praça da Estação, uma prostituta, vendedora de cafezinho, relatou a morte, por overdose, de uma prostituta encontrada no Passeio Público. Percebemos e ouvimos muitos comentários, inclusive das ES, de que muitas mulheres se prostituem para manter o vício.

Algumas confessaram sua insatisfação com a profissão e afirmaram estar esperando iniciar cursos profissionalizantes oferecidos pela APROCE (costureira, cabeleireira, entre outros), pois o que mais desejavam era sair da prostituição.

Durante as visitas ao Farol do Mucuripe, percebeu-se que as prostitutas daquela região são mais jovens que as do centro da cidade, algumas com filhos pequenos. Verificamos, no entanto, que todas são mulheres muito pobres e mal cuidadas, sendo que a realidade da prostituição de Fortaleza é diversa, mas as histórias de vida, marcadas por pobreza, exclusão social e falta de alternativas profissionais, são semelhantes.

Observamos também que muitas prostitutas têm relacionamento homo e bissexuais, sendo outras mulheres suas parceiras fixas (muitas vezes as duas são prostitutas). As mulheres proporcionam serviços sexuais principalmente a clientes masculinos, mas algumas vezes também a outras mulheres14.

Quanto aos bares da Barra do Ceará, percebemos que quase todos têm uma área reservada para boate e alguns quartos, por isso são designados também como cabarés ou bordéis. A maioria das prostitutas mora nesses locais, algumas com filhos. Os bares, assim como no Farol, encontravam-se vizinhos ou próximos uns dos outros e, à tarde, já estavam cheios de clientes, principalmente os da beira-mar, com muitos rapazes e estrangeiros. O ambiente era animado, com música alta, onde as pessoas conversavam alto, dançavam ao lado das mesas e as prostitutas ofereciam-se aos clientes.

As prostitutas eram jovens, com boa aparência, algumas adolescentes à procura de dinheiro ou, muitas vezes, de um homem rico que as tirassem da pobreza em que vivem. As adolescentes iniciam na prostituição com idade entre 12 e 14 anos, iludidas com promessas de casamento com estrangeiros, as quais as induzem a aceitar serem levadas para fora do País, principalmente para a Alemanha, onde são destinadas à prostituição.11

A prostituição, nessa região, é uma atividade extremamente rentável e de incessante demanda, principalmente quando os clientes são turistas, se comparadas às poucas opções lícitas disponíveis aos adolescentes da periferia.15 Nessa zona de prostituição, coletamos depoimento de uma prostituta, proprietária de um prostíbulo, que comentava a vida miserável e as poucas condições de trabalho das profissionais de Fortaleza.

Constatamos uma realidade diferente durante visita a uma casa de massagem localizada no centro da cidade. A casa era dúplex, aparentemente comum, limpa e arrumada; havia quartos no térreo e no primeiro andar; o dono da casa era um rapaz, que mantinha um relacionamento homossexual; além destes, residiam na casa mais seis prostitutas. Estas eram jovens, com no máximo 30 anos, bonitas e com aparência bem-cuidada. Na lateral da casa, havia o carro de um cliente, demonstrando que os clientes frequentadores eram homens de classe média alta. Observamos que as prostitutas desse local eram reservadas e não estavam dispostas a conversar.

No que se refere às condições de saúde das mulheres estudadas, verificamos que as mesmas iniciaram a vida sexual precocemente (em geral, no mesmo ano da menarca); a maioria já havia engravidado e tinha filhos vivos.

Quando interrogadas sobre a ocorrência de aborto, percebemos que muitas prostitutas já haviam vivenciado tal intercorrência.

Ao indagarmos sobre atividades preventivas, embora apresentassem fatores de risco para doenças crônicas e transmissíveis (tabagismo, uso de bebidas alcoólicas, nutrição alterada, multiplicidade de parceiros, multiparidade, entre outros), as mulheres referiram não realizar exames de rotina e somente procuram serviços de saúde quando apresentam alguma queixa.

Atividades educativas desenvolvidas pela APROCE

As educadoras sociais (ES) da APROCE, como já relatado anteriormente, são ex-prostitutas e prostitutas atuantes, que ingressaram na Associação como voluntárias (algumas desde a sua fundação) e recebem financeiramente uma ajuda de custo por meio de fontes financiadoras - como o Ministério da Saúde, a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará - do pagamento das sócias e de doações de sócios-beneméritos. As ES recebem treinamentos, muitas vezes do próprio Ministério da Saúde e de várias ONGs (organizações não governamentais).

Com relação ao trabalho das ES nas ruas de Fortaleza, iniciamos a observação acompanhando-as na divulgação de uma campanha promovida pela UFC. As ES identificavam para os alunos quem eram as prostitutas de cada local e, juntamente com eles, divulgavam a campanha. No primeiro dia, fomos ao centro da cidade (praças da Estação, José de Alencar e Passeio Público).

Verificamos que as ES conheciam as prostitutas que trabalham nesses locais, pois elas fazem um cadastro na Associação para controle do número de mulheres e distribuição de preservativos. Elas abordavam até as mulheres mais camufladas, como as vendedoras de lanche, cafezinho, vendedoras de loterias ou algumas apenas sentadas nos bancos da praça ou pontos de ônibus.

As ES referiram que os preservativos são entregues semanalmente, independentemente de haver ou não atividade educativa, e que, muitas vezes, mais importante do que qualquer iniciativa educacional era estar disponível para ouvi-las.

Ainda verificamos que as ES da APROCE também têm baixas condições socioeconômicas, necessitando trabalhar ainda na prostituição para sobreviver e ajudar no sustento das famílias, pois recebem da associação apenas ajuda de custo de R$ 250,00 mensais.

Acompanhamos as atividades educativas das ES (palestras realizadas com o auxílio de um álbum seriado). A palestra na Praça da Estação foi para um público de mais ou menos 10 mulheres e alguns curiosos e, na Praça José de Alencar, para mais ou menos 20 mulheres e também muitos curiosos.

As ES mostravam as fotos e faziam explicações sobre algumas DST. O conteúdo apresentado era acessível à compreensão das prostitutas. Um momento importante e agitado nas atividades educativas era quando as ES faziam demonstração de como se colocar o preservativo masculino, com um pênis de borracha, apresentando também técnica de utilização com a boca. Demonstravam habilidade e causavam, frequentemente, alvoroço no público. Para algumas prostitutas que tinham dúvidas, ensinavam a colocar o preservativo feminino também.

Percebemos uma grande aceitação do preservativo feminino por algumas prostitutas, e muitas até gostariam de receber um número maior de unidades, porém, como o preservativo feminino é caro se comparado ao masculino, a APROCE só fornecia duas unidades a cada prostituta. A aceitação do preservativo feminino é inversamente proporcional à idade.

O preservativo feminino pode ser um método de prevenção utilizado pelas mulheres e seus parceiros contra HIV/AIDS, oferecendo mais autonomia às mulheres para desempenhar um papel ativo na prevenção das DST/AIDS. Existe um paradoxo em promover o preservativo masculino como um método de proteção para as mulheres, pois nenhuma mulher pode usar o preservativo masculino, nem obrigar seu parceiro a usá-lo, se ele se recusar16. Assim, percebemos que novas estratégias de prevenção contra as DST/AIDS devem ser priorizadas levando em consideração as peculiaridades de cada grupo feminino.

No final da atividade educativa na Praça José de Alencar, uma ES falou um pouco sobre a AIDS, principalmente sobre sua transmissão. Iniciou sua fala, indagando: "Como se pega AIDS?" As respostas mais significativas foram: "Fazer sexo sem camisinha!"; " Chupar sem camisinha!"; "Usar seringa de outra pessoa!" As ES afirmaram que não oferecem todas as orientações de uma só vez, nem falam sobre todas as DST em dia único, são muitas informações, e elas não absorvem tudo.

Nos bares da Avenida Perimetral, bairro da periferia da Cidade de Fortaleza, as ES fizeram uma palestra, com auxílio de álbum seriado, para seis prostitutas que ali residiam. Uma das ES falou um pouco sobre AIDS e outras DST, demonstrando conhecimento sobre o assunto e esclarecendo dúvidas com segurança. Em seguida, visitamos vários bares e cabarés entregando somente os preservativos, pois era feito rodízio dos locais onde seriam realizadas as atividades educativas.

As ES trabalham em duplas; como elas têm níveis de escolaridade diferentes, acreditamos que, devido à presença da pesquisadora, tenham escolhido a ES mais esclarecida ou experiente para conduzir as atividades.

As atividades educativas orientam as prostitutas e sua clientela sobre aspectos relacionados à saúde sexual com o propósito de motivá-los a realizarem ações que promovam sua saúde. Essas atividades são particularmente importantes, pois, muitas vezes, as prostitutas não conhecem os serviços de saúde disponíveis.

Para manter boa saúde sexual, as prostitutas necessitariam saber sobre os diferentes tipos de sexo, como negociar com os clientes o uso do preservativo, como obter preservativos, lubrificantes e cuidados de saúde. As informações sobre saúde devem ir além da prevenção das DST, necessitando-se incluir outros aspectos, como o aborto, outras formas de contracepção, hepatites, prevenção ao uso de drogas, outras doenças transmissíveis e saúde materna. Também são relevantes informações acerca de problemas legais, autodefesa, administração de finanças e outros problemas profissionais e pessoais14.

Na casa de massagem, as ES realizaram palestra sobre DST, recorreram ao auxílio de um álbum seriado, que estimulou a curiosidade e a discussão sobre a temática. Ao concluir, as ES entregaram os preservativos. Percebemos que, na casa de massagem, as prostitutas não quiseram se expor, talvez por orientação do proprietário do local.

Finalmente, acompanhamos as ES durante o dia D da Saúde para as prostitutas, com a promoção de exame ginecológico, vacinação contra hepatite B e tétano, coleta de sorologia para hepatites e HIV, VDRL e oficinas educativas sobre DST/AIDS. Observamos o trabalho das ES nas praças para mobilizar todas as prostitutas.

Verificamos, durante a pesquisa, que a abordagem utilizada pela Associação para as atividades educativas foi a exposição oral. Entretanto, acreditamos que a palestra não é a metodologia ideal para estimular mudança de comportamento, mas acaba se fazendo importante para as prostitutas, pois, além de as ES transmitirem informações, entregam o instrumento adequado na prevenção dessas doenças, que é o preservativo. Constatamos a necessidade da atenção da Enfermagem no sentido de capacitar melhor essas profissionais.

O enfermeiro deve ser o profissional responsável pela educação na atenção básica de saúde nos diferentes grupos sociais. Há de se ressaltar o seu papel de educador, atuando de forma dialógico-reflexiva e possibilitando aos educandos a oportunidade de tornarem-se sujeitos multiplicadores no processo de promoção da saúde.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, constatamos as críticas condições de vida e saúde das prostitutas de Fortaleza. Realidade difícil, com o constante consumo de bebidas alcoólicas, tabaco e outras drogas, além de noites mal dormidas, má alimentação, violência, má remuneração, omissão de seu trabalho, submissão a uma relação de riscos para melhor pagamento e histórias de DST.

Ao acompanhar o trabalho das ES, verificamos o reconhecimento do trabalho educativo da APROCE pelas prostitutas. As ES visitam as áreas de prostituição frequentemente, realizando palestras, oferecendo orientações, ensinando a usar o preservativo masculino e feminino, distribuindo os preservativos, identificando prostitutas em situação de risco, mobilizando as mulheres e identificando crianças e adolescentes em risco de prostituição.

Percebemos que as estratégias educativas utilizadas pela APROCE estimulam, de certa forma, a reflexão, a criticidade e a mudança de comportamento, pois repassam informações sobre DST/AIDS e entregam frequentemente o preservativo para as prostitutas.

Evidenciamos a necessidade da atuação de enfermeiros como educadores e orientadores no desempenho dessa associação. Assim, nenhuma ação de promoção da saúde das prostitutas avançará sem a participação do componente educativo que atinja a população das mulheres e de suas organizações sociais.

 

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16. Ankrah EM, Attika AS, Kalckmann S, et al. Adoção do preservativo feminino no Quênia e no Brasil: perspectivas de mulheres e homens- uma síntese. São Paulo (SP): Secretaria de Saúde do Estado; 1998.

 

 

NOTA

a Parte integrante da Dissertação de Mestrado intitulada: Educação em Saúde com prostitutas na prevenção das DST/Aids: reflexões à luz de Paulo Freire

 

Recebido em 20/06/2008
Reapresentado em 18/03/2009
Aprovado em 21/04/2009

 

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