Volume 13, Número 3, Jul/Set - 2009
PESQUISA
A música terapêutica como uma tecnologia aplicada ao cuidado e ao ensino de enfermagem
Therapeutic music as a technology applied to healthcare and to the nursing teaching
La música terapéutica como una tecnología aplicada al cuidado y a la enseñanza de la enfermería
Leila Brito Bergold I; Neide Aparecida Titonelli Alvim II
I Enfermeira. Mestre e Doutoranda em Enfermagem. Musicoterapeuta. Chefe do Setor de Musicoterapia do Hospital Central do Exército. Membro do Núcleo de Pesquisa de Fundamentos do Cuidado de Enfermagem (NUCLEARTE) da EEAN/UFRJ. Brasil. E-mail: leilabergold@terra.com.br,
II Profª Drª Adjunta do Departamento de Enfermagem Fundamental da EEAN/UFRJ. Coordenadora do Curso de Doutorado da Pós-Graduação e Pesquisa da EEAN. Pesquisadora do NUCLEARTE. Brasil. E-mail: titonelli@terra.com.br
RESUMO
A predominância das técnicas na assistência muitas vezes inviabiliza o estabelecimento de um cuidado expressivo que promova a humanização da prática assistencial. Este estudo abordou duas pesquisas que investigaram o uso da música como um recurso terapêutico aplicado ao cuidado e ao ensino de enfermagem: a visita musical e a dinâmica musical. Ancorou-se nas contribuições de Even Ruud sobre o contexto cultural relacionado à música e à saúde. Utilizou-se o Método Criativo-Sensível na produção de dados das duas pesquisas, realizadas respectivamente com clientes hospitalizados e enfermeiros. A visita musical constituiu-se como tecnologia para o cuidado expressivo, pois promoveu conforto, ludicidade, expressão emocional e integração entre os clientes e destes com o ambiente hospitalar. A dinâmica musical mobilizou a produção de subjetividades nos enfermeiros, que perceberam as possibilidades do uso criativo da música como um recurso tanto no âmbito do cuidado quanto no ensino de enfermagem.
Palavras-chave: Enfermagem. Musicoterapia. Tecnologia. Criatividade.
ABSTRACT
The dominance of technics in assistance many times makes it impracticable to establish an expressive healthcare that promotes the humanization of the assistance practice. This study has tackled two researches that investigated the use of music as a therapeutic resource applied to healthcare and nursing teaching: musical visitations and the musical dynamics. The paper was based on the contributions of Even Ruud on the cultural context related to music and healthcare. The Sensitive-Creative Methodology was used for the data production on both researches, carried out respectively with hospitalized clients and nurses. The music visitation has been constituted as a technology to the expressive healthcare, promoting comfort, lucidity, emotional expression and integration amongst clients and of those within the environment. The dynamic music has mobilized the production of subjectivities within the nurses, who discovered the possibilities of the creative use of music as a great resource in healthcare as well as in nursing teaching.
Keywords: Nursing. Music Therapy. Technology. Creativeness.
RESUMEN
El predominio de la técnica en los cuidados y asistencia muchas veces dificulta el establecimiento de un cuidado expresivo que promueva la humanización de la práctica asistencial. Este estudio abordó dos pesquisas que investigaron el uso de la música como un recurso terapéutico aplicado al cuidado y a la enseñanza de la enfermería: la visita musical y la dinámica musical. Se basó en las contribuciones de Even Ruud sobre el contexto cultural relacionado a la música y a la salud. Se utilizó el Método Creativo-Sensible en la producción de datos de las dos pesquisas, realizadas respectivamente con clientes hospitalizados y enfermeros. La visita musical se constituyó como una tecnología para el cuidado expresivo, al promover bienestar, entretenimiento, expresión emocional y la integración entre los pacientes con el ambiente de hospital. La dinámica musical movilizó la producción de subjetividades en los enfermeros, quienes percibieron las posibilidades del uso creativo de la música como un recurso tanto en el ámbito del cuidado, como en la enseñanza de la enfermería.
Palabras Claves: Enfermería. Musicoterapia. Tecnología. Creatividad.
INTRODUÇÃO
A necessidade de desenvolver tecnologias aplicadas ao cuidado de enfermagem que abranjam o cliente em sua integralidade tem estimulado cada vez mais o estudo de recursos e práticas desenvolvidas por outras disciplinas que possam contribuir de maneira efetiva com o nosso campo próprio de saber e de prática. Nesse estudo, o foco da discussão é a contribuição da musicoterapia ao desenvolvimento de tecnologias aplicadas ao cuidado e ao ensino de enfermagem, entendendo como tecnologia um conjunto de conhecimentos, especialmente princípios científicos, aplicados a determinado ramo de atividade.1
Cabe destacar que nas pesquisas aqui apresentadas utilizamos o termo música terapêutica para designar a música como um recurso tecnológico que pode ser utilizado por enfermeiros interessados em proporcionar conforto, prazer e segurança ao cliente, diferenciando do termo `musicoterapia' que é uma atividade profissional que necessita de uma formação específica. A música terapêutica vem sendo utilizada em pesquisas na área da enfermagem com a finalidade de sensibilizar os enfermeiros à sua aplicação tanto como estratégia de cuidado quanto de ensino aos clientes que estejam vivendo diferentes situações no âmbito do contexto hospitalar.2
Carraro aponta a possibilidade de humanização ligada à aplicação de tecnologias simples que muitas vezes não são valorizadas em detrimento das mais sofisticadas.3 A música pode ser considerada uma tecnologia simples se considerarmos que nossa cultura é muito musical. Podemos também apontar a música como uma tecnologia inovadora de cuidado se for organizada como uma atividade ao mesmo tempo sistemática e criativa, pois facilita a expressão de emoções, a comunicação interpessoal e a possibilidade de se focalizar aspectos saudáveis do cliente.
A importância de se discutir a implementação de recursos tecnológicos voltados para as relações humanas, e não somente para a constante busca do aprimoramento tecnológico exigido pelo paradigma biomédico, é que este, ao valorizar o funcionamento humano como máquina que necessita de ajustes específicos, via de regra, desqualifica outras abordagens voltadas à humanização das relações no atendimento à clientela. Formados no âmbito dessa ideologia, os enfermeiros muitas vezes não conseguem se aproximar de forma sensível das pessoas cuidadas, centrando-se muito no arsenal farmacológico e tecnologias de ponta, tendo dificuldade em ajudá-las a construir sentido nas situações desagregadoras próprias da existência humana, incluindo a experiência de adoecimento.4
A enfermagem e a musicoterapia possuem interfaces que se relacionam com a visão integral do cliente e a busca por promover uma assistência holística que atenda aos aspectos físicos, emocionais e sociais deste, estimulando que expresse seus desejos e subjetividades e que exerça seu direito de escolha. Dessa forma, temos desenvolvido estudos transdisciplinares que apontam novas formas de promover o cuidado integral sensível e criativo, que alie ambas as disciplinas.2
Esses estudos voltam-se também para os aspectos educacionais, visto que educar é cuidar. A formação do enfermeiro traz implicações psicoafetivas e histórico-existenciais para o cuidado, o que nos aponta a importância de o graduando despertar para a complexidade que é cuidar do ser humano em sua integralidade. As dimensões humanas e afetivas necessitam do aspecto relacional; desse modo, não se pode desprezar o uso de outras tecnologias para além das convencionalmente adotadas pelo paradigma dominante, o biomédico.4
Assim, não devemos centrar o ensino de enfermagem no pragmatismo que afirma ser a aplicação do conhecimento científico a única resposta para os problemas do ser humano, e sim pressupor que o saber/fazer da enfermagem também se encontra na esfera da subjetividade, se desenvolvendo por meio da intuição, da razão, de pensamentos, sentimentos e emoções.5 Dessa forma, o desenvolvimento da dinâmica musical tem por finalidade estimular a percepção de si e dos outros diante da singularidade de cada um, ao mesmo tempo em que permite que se descubram as conexões existentes no grupo, ampliando a capacidade de compreender o contexto complexo em que estão inseridas as relações humanas.
REFERENCIAL TEÓRICO
Este estudo se baseia nos aspectos teóricos desenvolvidos por Even Ruud, musicoterapeuta norueguês que desenvolveu pesquisas sobre o contexto cultural e social que envolve a música e a percepção da forma pela qual a sociedade e a cultura podem se organizar para promover saúde. Reflete também sobre os aspectos interpessoais da identidade relacionados ao contexto cultural em que essa identidade se forma, o que influencia grandemente a nossa forma de apreciarmos e utilizarmos a música.6
A importância da música para o ser humano reside no fato de ela ser inerente à própria constituição humana, havendo registros muito antigos de sua presença em praticamente todas as culturas, inclusive as mais primitivas.7 Desde a Antiguidade, a música é utilizada como um recurso terapêutico de acordo com o conhecimento de sua influência no homem e a evolução das concepções de cada época sobre o que é saúde, doença e cura. Nightingale já cogitava a utilização da música como recurso terapêutico desde o início da enfermagem como profissão.8 No Brasil, alguns estudos apresentam uma diversidade de práticas desenvolvidas com a utilização da música como um recurso terapêutico direcionado a diferentes clientes e finalidades.2
Para desenvolver tecnologias criativas de cuidado que incluam a música terapêutica, é fundamental reconhecer que sua influência sobre o ser humano é ampla e diversificada, abrangendo aspectos físicos, cognitivos, emocionais e sociais. Os estímulos musicais podem alterar a respiração, circulação sanguínea, digestão, oxigenação e dinamismo nervoso e humoral. Também estimulam a energia muscular, reduzem a fadiga e favorecem o tônus muscular. Podem aumentar a atenção e estimular a memória, baixar o limiar da dor e se constituir como um importante recurso contra o medo e a ansiedade.9
É importante destacar a conexão complexa existente entre a experiência psicológica da música e as reações corporais concomitantes ao se cogitar a inserção da música na prática assistencial. A abrangência e a complexidade da sua influência sobre o ser humano inviabiliza a utilização de uma fórmula musical no seu desenvolvimento como tecnologia aplicada ao cuidado de enfermagem. A música é percebida e expressada de maneira subjetiva, relacionada à individualidade de cada um e à cultura em que cada indivíduo está imerso. O significado que as pessoas extraem da música e os valores que lhe atribuem não são previsíveis,6 e isso deve ser levado em consideração ao se desenvolverem tecnologias aplicadas ao cuidado de enfermagem que incluam a música como recurso terapêutico.
A música nos ajuda a organizar, a pontuar a vida em sequência para lembrar fases da vida e a época em que ocorreram. Os aspectos que ligam a música à identidade musical do sujeito, relacionados à sua própria história pessoal, podem ser categorizados em espaço pessoal, espaço social, espaço tempo/lugar e espaço transpessoal. O espaço pessoal engloba a consciência emocional e corporal, espaço privado e crenças básicas. O espaço social é relacionado ao grupo de pertencimento, gênero, valores e comunidade. Tempo/lugar abrange rituais diários, celebrações, fases da vida, nacionalidade, etc. O transpessoal é conectado a experiências religiosas, rituais de transição, de natureza, o sentido de "ser maior".6
Ruud também aponta que a comunicação através da música, ao se cantar ou tocar uma canção, é uma maneira de definir, diferenciar, pesquisar e apontar nuances da vida interior, ou trazer à baila áreas até então não pesquisadas nesse contexto,10 o que nos aponta a música como um importante recurso para a percepção de si e dos outros em contextos reflexivos grupais.
CAMINHO METODOLÓGICO
Duas pesquisas foram realizadas para investigar as estratégias musicais desenvolvidas para promover o cuidado expressivo. A primeira foi desenvolvida com o intuito de investigar a `visita musical', atividade desenvolvida para promover a humanização hospitalar a clientes internados no Hospital Central do Exército, na cidade do Rio de Janeiro.2
A segunda foi desenvolvida junto a enfermeiros estudantes de uma disciplina de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro e tinha por finalidade aplicar uma dinâmica musical como forma de sensibilização de enfermeiros à utilização da música na prática e no ensino de enfermagem.11
Ambas as pesquisas utilizaram o Método Criativo e Sensível (MCS), e a produção de dados se deu a partir do desenvolvimento de uma Dinâmica de Criatividade e Sensibilidade (DCS) denominada "Corpo-Musical". Optamos pela pesquisa qualitativa por meio do MCS, método de pesquisa com grupos, coerente com as temáticas tratadas por valorizar a criatividade e a sensibilidade. O MCS evita a dicotomia entre razão e emoção, o que facilita o compartilhamento de experiências e saberes individuais que contribuem para a construção do conhecimento a partir da crítica reflexiva grupal. O sujeito, por ser ao mesmo tempo um ser pessoal e social, manifesta sua subjetividade no coletivo, na intersubjetividade. 12
As dinâmicas "Corpo-Musical", desenvolvidas a partir da dinâmica "Corpo-Saber" aplicada por Alvim,13 puderam evidenciar a concepção dos sujeitos da pesquisa acerca da influência da música sobre eles, focalizando-a em alguma parte do corpo para auxiliar a expressão da subjetividade de cada participante envolvido na experiência musical. As dinâmicas seguiram cinco etapas: apresentação dos participantes e esclarecimentos; relaxamento para focalizar a atenção no tema; orientações para colagem de etiquetas adesivas em silhueta humana previamente desenhada, apontando qual parte do corpo fora influenciada e de que forma; produção artística individual e apresentação dessa produção seguida de discussão.
A pesquisa com os clientes hospitalizados, realizada em um hospital militar da cidade do Rio de Janeiro, com 14 sujeitos de ambos os sexos e idades variadas, teve por objetivo descrever e discutir as concepções de clientes sobre as visitas musicais das quais já haviam participado. Na etapa do relaxamento foi utilizada uma música para que os sujeitos se concentrassem no que sentiram durante essas visitas.
A pesquisa realizada com enfermeiros contou com 11 sujeitos de ambos os sexos e idades variadas, alunos de uma disciplina de pós-graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ. Nesta, o relaxamento foi baseado no controle da respiração e foram utilizadas músicas diferentes como estímulo à produção artística, visando discutir a aplicabilidade de uma DCS como forma de sensibilização do enfermeiro para a utilização da música na prática do educar e do cuidar.
As pesquisas foram submetidas ao Comitê de Ética em Pesquisa da EEAN/HESFA, da UFRJ, como requisito para o desenvolvimento de uma dissertação de mestrado.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Visita musical como tecnologia aplicada ao cuidado de enfermagem ao cliente hospitalizado
A atividade consiste na visita de uma equipe de músicos coordenados por uma enfermeira/musicoterapeuta a clientes hospitalizados em um hospital de grande porte. Estes escolhem uma música, que é cantada e acompanhada por instrumentos musicais (flauta, violão e cavaquinho). A efetividade das visitas musicais enquanto estratégia para o cuidado expressivo não está centrada somente na possibilidade do contato com a música, mas no encontro que ocorre entre o cliente e a enfermeira, no `momento do cuidado'. 14 O cliente é concebido como sujeito, sendo considerada sua capacidade de questionar, de refletir, de reivindicar seus direitos e suas necessidades, como ocorre no contexto das visitas musicais.
A escolha da música pelos clientes nessas visitas estimulou-os a lembrar de fatos que faziam parte de sua narrativa de vida, pois a música está vinculada a eventos cotidianos e importantes da vida de cada um. A evocação dessas lembranças, relacionadas à escolha musical, remeteu a situações de superação que transmitem ao ouvinte a sensação de força que os auxiliou no enfrentamento da situação de hospitalização que promove angústia pela vivência do adoecimento e pela ruptura do seu cotidiano.
Durante as discussões grupais nas DCS, os sujeitos associaram as experiências musicais ocorridas no âmbito dessas visitas, em sua maioria, ao espaço pessoal e social, mas alguns também apontaram a importância das músicas religiosas para auxiliar no enfrentamento das situações negativas relacionadas à hospitalização, ou seja, ao espaço transpessoal. Ao promover o conforto espiritual, a música pode ser um importante subsídio na busca de alternativas que contemplem a pessoa na sua integridade. Mesmo que os clientes não participassem ativamente de alguma denominação religiosa, ao escutarem músicas religiosas, se sentiram mais relaxados e confortados sobre os seus temores, ansiedades e incertezas.15
A audição de músicas relacionadas ao seu cotidiano trouxe aos participantes a lembrança de situações positivas enquanto os fazia esquecer das negativas. Esse deslocamento estimulou o `esquecimento' das situações que traziam ansiedade, relacionadas à internação hospitalar, promovendo bem-estar. Assim, a música colaborou para romper a rotina e deslocar percepção do cliente internado da doença para a saúde.
A visita musical promoveu a expressão de emoções, facilitando a comunicação e interação entre os participantes e reduzindo sentimentos considerados negativos como medo, raiva e tristeza. Este fato está em consonância com um dos fatores de cuidado, a expressão de sentimentos positivos ou negativos, pois melhora a percepção de si além de facilitar a compreensão do comportamento que é gerado a partir desses sentimentos, o que pode facilitar a comunicação e a interação entre o cliente e a enfermagem.14
Os participantes relataram sentir muito prazer e alegria durante as visitas musicais, mas é importante destacar que a emoção positiva só surge à medida que a música ouvida corresponda ao universo sonoro e/ou aos padrões estéticos do ouvinte.7 A emoção surgida promoveu também alívio, que se manifestou fisicamente, havendo inclusive relato de diminuição de dor. A música, além de relaxar e reduzir a ansiedade, também tem um efeito estimulante ao despertar a atenção, promover contato com o ambiente, aumentar o nível de energia, estimular atividade motora e elevar o humor,16 fato que é apontado pelos sujeitos quando se referem a iniciativas de alguns no sentido de começarem a se visitar mais e a estabelecer atividades lúdicas entre eles.
A visita musical estimulou a atividade lúdica que diminuiu a inatividade, servindo como linha de fuga diante das rotinas impostas pelo hospital, fatores geradores de ansiedade, sofrimento e depressão. O lúdico no cuidado configura-se como possibilidade restauradora da saúde do cliente, na medida em que facilita a interação, por meio do desenvolvimento intra e interpessoal, promovendo o processo de socialização e comunicação.17 Essa estratégia resultou em diminuição da solidão dos clientes ao promover a integração destes no ambiente de internação hospitalar, o que aponta a sua importância na construção de um ambiente de cuidado restaurador.
É importante destacar que a visita musical, ao atender às necessidades, expectativas e desejos dos clientes, valoriza o cuidado na sua dimensão expressiva. Dessa forma, apontamos sua importância para a humanização do ambiente hospitalar ao promover a interação dos clientes entre si e destes com a equipe de enfermagem. Consideramos, assim, a visita musical como uma tecnologia, pois é fundamentada em um conjunto de conhecimentos científicos oriundos da musicoterapia e da enfermagem e aplicadas como um recurso para o cuidado expressivo. Como tecnologia leve, utiliza atributos próprios da relação humana, fundamentais na construção de vínculo no espaço do cuidado. 18
Dinâmica Musical como tecnologia para sensibilizar a prática e o ensino da enfermagem
Conforme anunciado, na pesquisa realizada junto a enfermeiros, utilizando um estímulo musical, o objetivo foi sensibilizá-los quanto à possibilidade de utilização da música como uma tecnologia possível na assistência e no ensino enfermagem. Os participantes apontaram que as músicas tocadas provocaram diferentes reações no corpo, não só por terem sido de estilos distintos, mas porque cada um produziu respostas ligadas às singularidades dos sujeitos. A percepção da música está relacionada à individualidade e à inserção cultural de cada indivíduo, não sendo possível prever o significado e os valores atribuídos a ela.6
Os estímulos sonoros foram: uma música clássica (Cânon, de Pachelbel), um chorinho (Sorriso de Cristal, de Érika Rego) e um rock (Paranoid, de Ozzy Osborne e Tony Iommi).
Os resultados apontaram que a influência desta música clássica ocorreu em todo o corpo, sendo o relaxamento a sensação mais predominante. Apontaram também outras partes do corpo, interligando outros sentidos (olfato, gustação e tato) nessa percepção musical, revelando que percebemos a música como algo mais do que simples som. A música provoca percepção visual, atividade motora sensorial, processamento de informação abstrata e simbólica, além da expressão de diferentes emoções. Assim, se o objetivo é promover relaxamento, é necessário conhecer não somente o estilo musical do cliente, mas sua preferência no momento e no contexto do cuidado.
Quanto ao potencial da música para o ensino, os participantes apontaram o uso da música clássica para estudar, pois influencia a atenção, a memória, o desenvolvimento do pensamento lógico, a criatividade e a maturação intelectual, a percepção, emoção e racionalidade, e pode ser estimulada por uma experiência musical com o intuito de desenvolver a sensibilidade.9 Facilita ainda o desenvolvimento de habilidades de aprendizagem, nível de conhecimento, padrões e processos do pensamento, atitudes, estilo cognitivo de crenças e constructos.16 Isso aponta sua importância como recurso tecnológico para o ensino-aprendizagem do enfermeiro, tanto quanto em ação educativa junto ao cliente.
O chorinho promoveu descontração e prazer entre os participantes, estimulando-os a movimentos corporais e rítmicos. A movimentação corporal pode ser estimulada por músicas com predominância rítmica, que também incentivam a ludicidade entre as pessoas. A música ritmada pode ser um recurso utilizado tanto para o cuidado de enfermagem quanto para o autocuidado do cliente ou do enfermeiro, uma vez que promove o desejo de realizar movimentos, o bem-estar e o prazer de estar consigo mesmo e com o outro.
O rock promoveu reações bastante diversificadas nos enfermeiros, indo do incômodo ao prazer relacionado com experiências vivenciadas na época da adolescência. A música produz subjetividades e traz as pessoas aos diversos espaços da experiência musical já descritos: espaço pessoal, espaço social, espaço tempo/lugar e espaço transpessoal. Nessa vivência musical, os participantes demonstraram que as diferentes músicas trouxeram a singularidade de cada pessoa à tona, suas vivências pessoais, familiares e culturais, relacionadas aos espaços descritos, com exceção do transpessoal, que não ocorreu nesse contexto.
A experiência desenvolvida no contexto da dinâmica apontou aos participantes as possibilidades de relaxamento e ludicidade que as músicas podem proporcionar, mas também ressaltou o cuidado que devemos ter ao utilizar outras que possam evocar sentimentos negativos nos participantes. Evidenciou também que a influência da música ocorre na totalidade do corpo, e essa percepção, aliada à sensibilidade dos participantes quanto à importância da singularidade do sujeito expressa no seu gosto musical, ampliou a visão destes sobre a música como um recurso tanto para o cuidado quanto para situações relacionadas ao ensino/aprendizagem.
CONCLUSÃO
A visão transdisciplinar que permeou esses estudos pôde embasar a interface entre a musicoterapia e a enfermagem, dentro de uma concepção complexa de saúde e doença que inclui as relações sociais, as expressões emocionais e afetivas e as condições sócio-históricas e culturais dos indivíduos e grupos. A visita musical pode ser concebida como uma tecnologia voltada para o cuidado expressivo. O uso da música terapêutica como um recurso para o cuidado ao cliente hospitalizado potencializou sua restauração por meio do conforto, bem-estar, expressão das emoções e compartilhamento de experiências, além de promover sua autonomia pela sua escolha no momento do cuidado. Possibilitou também interação entre os clientes e destes com a equipe de saúde, promovendo a humanização hospitalar.
Outro destaque foi a utilização da dinâmica musical como tecnologia para sensibilizar os enfermeiros/alunos, mobilizando a produção de subjetividades e despertando aspectos criativos relacionados ao cuidado, assim como a percepção de si e do outro no espaço de compartilhamento grupal de experiências e conhecimentos, o que pode ser um importante recurso tanto no âmbito da prática como do ensino da enfermagem.
REFERÊNCIAS
1. Merhy EE, et al. Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologías em saúde: a informação e o dia a dia de um serviço, interrogando e gerindo trabalho em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Praxis en salud: um desafio para lo público. São Paulo(SP): Hucitec; 1997.p.113-50
2. Bergold LB. A visita musical como estratégia terapêutica no contexto hospitalar e seus nexos com a enfermagem fundamental [dissertação de mestrado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola de Enfermagem Anna Nery/ UFRJ; 2005.
3. Carraro TE. Tecnologia e humanização: da sua união às possibilidades de prevenção de infecções. Texto Contexto Enferm 2000 jan/abr;9(1):42-62.
4. Gomes AMT, Oliveira DC. A enfermagem entre os avanços tecnológicos e a inter-relação: representações do papel do enfermeiro. Rev Enferm UERJ 2008 abr/jun;16(2):156-61.
5. Santos I. Cuidando do educando: a sociopoética sensibilizando a formação do cuidador. Rev Enferm UERJ 2007 jan/mar;15(1):113-18.
6. Ruud E. Music therapy: improvisation, communication and culture. Barcelona (ES): Publisher; 1998. 204p.
7. Jourdain R. Música, cérebro e êxtase: como a música captura nossa imaginação. Rio de Janeiro (RJ): Objetiva; 1997.441 p.
8. Nightingale F. Notas sobre enfermagem: o que é e o que não é. São Paulo (SP): Cortez; 1989.
9. Sekeff ML. Da música, seus usos e recursos. São Paulo(SP): Ed UNESP; 2002. 172 p.
10. Ruud E. Música como um meio de comunicação. In: Ruud E, orgaizador. Música e saúde. São Paulo(SP): Summus; 1991.167-73.
11. Bergold L, Alvim N, Cabral I. O lugar da música no espaço do cuidado terapêutico: sensibilizando enfermeiros com a dinâmica musical. Texto Contexto Enferm 2006 abr/jun;15(2):262-69.
12. Cabral IE. O método criativo e sensível: alternativa de pesquisa na enfermagem. In: Gauthier JHM, Cabral IE, Santos I, Tavares CMM, organizadores. Pesquisa em enfermagem: novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro((RJ): Guanabara Koogan; 1998.p.177-203
13. Alvim NAT. Práticas e saberes sobre o uso de plantas medicinais na vida das enfermeiras: uma construção em espiral [tese de doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ; 1999.
14. Watson J. Watson's theory of transpersonal caring. In: Walker P, Neuman B, organizadores. Blueprint for use of nursing models: education, research, practice and administration. New York (USA): N & N Press; 1996.p.141-84.
15. Backes DS, Ddine SC, Oliveira CL, Backes MTS. Música: terapia complementar no processo de humanização de um CTI. Nurs 2003 nov;
66(6):35-42.16. Bruscia K. Definindo musicoterapia. Rio de Janeiro (RJ): Enelivros; 2000.312 p.
17. Beuter M. Expressões lúdicas no cuidado: elementos para pensar/fazer a arte da enfermagem. [tese de doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ; 2004.
18. Silva DC, Alvim NAT, Figueiredo, PA. Tecnologias leves em saúde e sua relação com o cuidado de enfermagem hospitalar. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2008 jun;12(2):291-98.
Recebido em 17/09/2008
Reapresentado em 01/04/2009
Aprovado em 10/06/2009