Volume 13, Número 3, Jul/Set - 2009
PESQUISA
Repercussões do acidente com perfurocortantes para a enfermagem: uma construção a partir do grupo focal
Repercussions of accident with perforating-cutting instruments for the nursing: a construction based on the focal group
Repercusiones para la enfermería de accidentes con materiales punzo cortantes: construcción a partir del grupo focal
Magda Ribeiro de Castro I; Sheila Nascimento Pereira de Farias II
I Enfermeira do Hospital de Jacarepaguá (RJ); Mestra em Enfermagem pela EEAN/UFRJ; Especialista em Enfermagem do Trabalho pela EEAN/UFRJ; Membro do Núcleo de Pesquisa em Enfermagem e Saúde do Trabalhador (NUPENST). Brasil. E-mail: magdarcastro@ig.com.br,
II Enfermeira; Doutora em Enfermagem; Professora do Departamento de Enfermagem em Saúde Pública da EEAN/UFRJ. Brasil. E-mail: sheilaguadagnini@yahoo.com.br
RESUMO
O estudo tem como objetivos conhecer as repercussões do acidente com perfurocortantes para o trabalhador de enfermagem e discutir essas repercussões. Metodologia: estudo descritivo, qualitativo, desenvolvido em um hospital público federal de grande porte (RJ), tendo a equipe de enfermagem como sujeito. Utilizou-se o grupo focal como técnica para coleta de dados e a análise temática. Resultados: depreendeu-se que as repercussões do acidente apresentam duas facetas: repercussões desfavoráveis à saúde do trabalhador, envolvendo sentimentos de medo, desespero, preocupação, vergonha, ansiedade e insegurança, e repercussões favoráveis à conduta profissional deste trabalhador, envolvendo a necessidade de redobrar o cuidado e atenção ao manipular materiais perfurocortantes. Conclusões: evidenciou-se que esse tipo de acidente repercute na subjetividade do trabalhador, tornando necessária a adoção de práticas de segurança ao manipular os perfurocortantes, tendo em vista seu elevado potencial para agravos à saúde tanto no campo físico como emocional do trabalhador de enfermagem.
Palavras-chave: Acidentes de Trabalho. Saúde do Trabalhador. Enfermagem.
ABSTRACT
This study aims to know the repercussions of perforating-cutting accidents for the nursing worker, and to discuss such repercussions. Methods: descriptive and qualitative study, developed in a federal public large hospital in Rio de Janeiro, whose subjects were the nursing staff. The focal group was the technique used for data collection and theme analysis. Results: the repercussions of the accidents comprise two aspects: unfavorable repercussions on the worker's health, involving feelings of fear, despair, preoccupation, shame, anxiety and insecurity; and favorable repercussions on the worker's professional performance, involving the need for more care and attention while handling perforating-cutting instruments. Conclusions: this type of accident impacts on the worker's subjectivity, and requires the adoption of safety practices in hadling perforating-cutting instruments, considering their high potential for health injuries, both physically and emotionally, for the nursing worker.
Keywords: Work accidents. Worker's health. Nursing.
RESUMEN
El presente estudio tiene como objetivos conocer las repercusiones para el profesional de enfermería de los accidentes con materiales punzo cortantes y discutir estas repercusiones. Metodología: estudio descriptivo, cualitativo, desarrollado en un hospital público federal de grande porte (RJ), donde el equipo de enfermería fue el sujeto de la pesquisa. Se utilizó el grupo focal como técnica para la colecta de los datos y análisis temático. Resultados: muestran que las repercusiones del accidente presentan dos facetas: repercusiones desfavorables a la salud del profesional, envolviendo sentimientos de miedo, desespero, preocupación, vergüenza, ansiedad e inseguridad y repercusiones favorables a la conducta profesional envolviendo la necesidad de redoblar el cuidado y atención al manipular materiales punzo cortantes. Conclusiones: Fue evidente que este tipo de accidentes repercute en la subjetividad del profesional, siendo necesaria la adopción de prácticas de seguridad al manipular los materiales punzo cortantes, al tener en consideración su alto potencial para causar daños a la salud tanto en el campo físico como emocional del profesional de enfermería.
Palabras clave: Accidentes de Trabajo. Salud del Trabajador. Enfermería.
INTRODUÇÃO
A temática "acidente de trabalho com material perfurocortante na equipe de enfermagem" tem sido amplamente abordada no meio científico por meio de diversos estudos desenvolvidos em distintos cenários e contextos laborais, denotando uma inquietação que pode estar associada a real e significativa ocorrência desse tipo de acidente envolvendo essa categoria profissional. A exemplo de estudos nesta vertente destaca-se o de Abreu e Mauro1 dentre outros.
Ressalta-se que, em termos legais, a expressão "acidente de trabalho" está definida por lei2 "como aquele que ocorrer pelo exercício do trabalho a serviço da empresa, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, ou perda, ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho".
Desse modo, equiparam-se ao acidente de trabalho: o acidente sofrido pelo empregado no local e no horário do trabalho (acidente típico), a doença proveniente de contaminação acidental no exercício de sua atividade, dentre outras situações envolvendo o contexto laboral. Exclui-se, portanto, desta equiparação, para fins desta lei, a doença degenerativa, a inerente a grupo etário e a que não acarreta incapacidade para o trabalho.
Tendo em vista a incidência de acidentes de trabalho com perfurocortantes na equipe de enfermagem, o presente estudo tem como objeto a repercussão desse acidente para o trabalhador de enfermagem e apresenta os objetivos: conhecer as repercussões do acidente com perfurocortantes para o trabalhador de enfermagem e discutir essas repercussões.
Dessa forma, o estudo torna-se relevante ao evidenciar na literatura científica poucos estudos nesta vertente, sugerindo lacunas de conhecimento no que se refere às repercussões desse tipo de acidente ocupacional para a saúde (física e mental) do trabalhador acometido por ele, além de contribuir com o conhecimento na área da Saúde do Trabalhador.
Acerca dos poucos estudos encontrados com este enfoque, destaca-se o que evidenciou que os trabalhadores acidentados passaram a ficar com medo da contaminação no trabalho, ansiedade, depressão e medo da morte na expectativa do resultado do teste anti-HIV, fantasias de contaminação, preocupação com a vida sexual passada, presente e futura, receio de reações negativas (críticas, discriminação) dos familiares, parceiro e colegas de trabalho, sentimentos de culpa pelo acidente, raiva do hospital e do sistema de saúde hostil.3:62
Dentre as repercussões evidenciadas, ressaltam-se as repercussões psicossociais pós-acidente, que envolvem tanto as relações profissionais quanto as familiares, além da associação do acidente com a aquisição de doenças como AIDS e hepatite, dentre outras de contaminação ocupacional, causando no trabalhador sentimentos de medo, raiva, ansiedade, preocupação e outros que afetam a sua saúde.
Para efeitos do presente estudo, entende-se que os sentimentos são expressos pela maneira como percebemos nossas reações ao mundo que nos circunda.4 Assim, os sentimentos estão relacionados diretamente ao sujeito, sendo permeados de subjetividade, já que o subjetivo é relativo ao sujeito5, associando-se, portanto, à sua esfera individual e pessoal.
METODOLOGIA
Estudo descritivo, de abordagem qualitativa, desenvolvido na clínica médica de um hospital público federal de grande porte, localizado no município do Rio de Janeiro, tendo a equipe de enfermagem como sujeito. Participaram do estudo 2 enfermeiras e 12 auxiliares de enfermagem, todos lotados no serviço diurno do setor mencionado, totalizando 14 sujeitos.
Utilizou-se como técnica para coleta de dados o grupo focal, apontado como uma técnica qualitativa que permite a interação entre as pessoas, propiciando reflexão e respostas mais ricas e ideias originais6. Além disso, pelo seu caráter interativo, o grupo focal permite que o indivíduo se reconheça como sujeito coletivo a partir das discussões em grupo, constituindo-se em uma interação social autêntica.7
Vale ressaltar que o grupo focal foi composto pela equipe de enfermagem de acordo com a adesão desta à proposta do estudo, atendendo aos seguintes critérios de inclusão: ser funcionário do hospital lotado no serviço diurno da Clínica Médica e aceitar participar espontaneamente deste após orientações e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Destaca-se que a coleta de dados ocorreu após apreciação e aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o número de protocolo de aprovação 106/07, como forma de assegurar os aspectos éticos preconizados na resolução em vigor8. Convém informar que o tratamento dos dados baseou-se na análise temática, sendo os resultados tratados, codificados e, em seguida, categorizados.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Depreendeu-se do estudo, de acordo com percepções e experiências dos participantes do grupo focal, que as repercussões do acidente com perfurocortantes apresentaram duas facetas categorizadas como: Repercussões desfavoráveis à saúde do trabalhador e Repercussões favoráveis à conduta profissional do trabalhador de enfermagem.
No que tange às repercussões desfavoráveis à saúde do trabalhador oriundas do acidente com perfurocortante, os sujeitos destacaram as seguintes expressões: "medo", "desespero", "preocupação", "vergonha", "incompetência", "incapacidade", "ansiedade", "insegurança", "expectativa", "pânico", "sensação ruim", "situação desagradável", "falta de habilidade técnica", "desgaste psicológico", "abalo emocional" e "angústia".
Nesse sentido, verifica-se que o acidente repercute, e muito, na saúde mental do trabalhador acidentado, envolvendo questões de foro íntimo e sentimentos, sendo estes compreendidos como ato ou efeito de sentir.9 Tal afirmação justifica-se tendo em vista que o acidente é "sentido" interiormente pelo indivíduo de forma singular. Assim, os sentimentos são compreendidos no estudo em tela, como elementos fortemente subjetivos do trabalhador de enfermagem.
Os sentimentos geralmente associam-se a conteúdos intelectuais, valores, representações, podendo apresentar-se nas esferas da tristeza, da alegria, da agressividade, da atração, dentre outras, constituindo basicamente um fenômeno mental.10 Tal concepção corrobora que os sentimentos estão permeados de conotação subjetiva, envolvendo essencialmente a dimensão psíquica do ser humano.
Desse modo, os depoimentos a seguir explicitam os sentimentos oriundos do trabalhador decorrentes da ocorrência do acidente de trabalho com material perfurocortante:
Acho que, a nível psicológico, seria mais o medo, você não sabe o que o paciente recém-chegado tem, não tem exames prontos, não tem exames complementares. Então, você se fura vem tudo a sua cabeça: Pronto, fiquei doente! Peguei a doença que ele tem. Imagina logo uma hepatite C, imagina logo uma Aids.... (Depoente 7)
... Fica com tanto medo de sofrer outro acidente... Tem esse lado que o (depoente 7) falou que é muito forte, que é o medo de se contaminar [...]... Você fica com muito mais medo de se furar. (Depoente 6)
Olha, no caso, eu nunca me acidentei... mas eu acredito que... essa situação do medo, parece até que chama, aí é que acontece mais ainda. Fica com muito cuidado, já vai pisando em ovos, e aí é que acontece mesmo... Às vezes o medo atrapalha muito. O medo de chegar perto do paciente porque o paciente é o nosso instrumento de trabalho... E se a gente tiver medo de chegar perto dele... tem que mudar de profissão. Não pode chegar aqui. (Depoente 22)
Então, o que a (depoente 6) falou é exatamente o que eu passei, a repercussão foi enorme, tive um medo muito grande, até chorei na hora... (Depoente 16)
Observa-se que o sentimento de medo esteve relacionado, em especial, à possibilidade de contaminação ocupacional e aquisição de alguma patologia, como hepatite ou AIDS, afetando o psicológico desse trabalhador. Além disso, o medo esteve associado à possibilidade da ocorrência de outro acidente; entretanto, também foi mencionado como fator propulsor do acidente, já que "atrapalha" o trabalhador, favorecendo maiores chances deste agravo.
Segundo a compreensão de Dalgalarrondo10, o medo é inerente aos animais superiores e ao homem, constituindo um estado de progressiva insegurança e angústia ante a impressão iminente de que sucederá algo que queríamos evitar. Assim, o medo funciona como um antecessor, uma preparação para enfrentar o perigo.11
Outro aspecto merecedor de atenção diz respeito ao medo do desconhecido, causado pela ignorância11, podendo estar associado, no presente estudo, ao desconhecimento da sorologia do paciente-fonte envolvido no acidente. Desse modo, considera-se que o medo é, sobretudo, uma vivência subjetiva12, sentido integralmente na intimidade do ser de modo particular.
No que concerne ao desconhecimento da sorologia do paciente, depreendeu-se que os profissionais destacaram o sentimento de desespero relacionado à falta de diagnóstico do paciente ou, ainda, pela confirmação de patologia de transmissão ocupacional, conforme os depoimentos abaixo:
... A meu ver, a pessoa entra em pânico, estado de extremo pavor porque a gente não sabe o que o paciente tem... A pessoa fica desesperada.... (Depoente 7)
Teve um caso lá... ele entrou em desespero total. Em 15 dias ele emagreceu 12 quilos e a paciente, ele descobriu que a paciente era HIV.... Ele entrou em desespero, ele chorava, ele contava isso pra todo mundo.... (Depoente 4)
[...] eu presenciei um acidente de uma amiga que entrou em total desespero!... (Depoente 12)
Tendo em vista tais depoimentos, verifica-se que o desespero presente na prática e na literatura científica é um sentimento comumente vivenciado pelos profissionais de enfermagem, causando-lhes instabilidade pessoal e profissional.4
Outro sentimento destacado foi o de preocupação, que esteve associado à incerteza do resultado de exames pós-acidente e à probabilidade de contaminação, acarretando um desgaste psicológico "gigantesco" para o trabalhador acidentado.
... Ter se contaminado com alguma doença deve causar logo uma...preocupação enquanto não sair o resultado, independente do paciente ter ou não alguma coisa já contactada.... (Depoente 20)
[...] a repercussão é enorme porque se for com...material do paciente aí a pessoa já vai carregar a preocupação de que pode ter se contaminado...isso acarreta um desgaste psicológico gigantesco.... (Depoente 13)
[...] por mais que você tenha solidariedade dos colegas isso não vai ser suficiente para poder impedir que você tenha esses sentimentos. Eu acho dessa forma...Aquela preocupação... (Depoente 12)
O sentimento de preocupação também esteve presente em outros estudos,3,4 surgindo no momento em que o profissional tem consciência da possibilidade de ter causado dano à sua saúde ou à do cliente decorrente do acidente e/ou do erro.
Observa-se, no contexto discutido, que a preocupação em função do acidente com perfurocortante associa-se a outros sentimentos, como medo e desespero, proporcionando ao trabalhador um desgaste psicológico envolvendo, sobremaneira, o emocional deste indivíduo. Tal desgaste está destacado no depoimento que segue:
Eu acho que isso mexe muito com o emocional, porque quando eu me acidentei, nossa! Abalou mais meu emocional do que meu físico.... (Depoente 21)
O sentimento de vergonha esteve atrelado à possibilidade de as pessoas acharem que o acidente se deu por incompetência do profissional, além de ter sido sentido por este indivíduo como incapacidade e incompetência.
Eu acho que... também tem certa vergonha, parece que é incompetência tua.... (Depoente 3)
...a sensação, como vocês falaram aí, é realmente a sensação de incapacidade é muito grande, sabe? De vergonha. Você não sabe se você comenta ou se você se cala por vergonha, não é?...É uma sensação muito estranha que você tem realmente de incapacidade. Eu até estou falando aqui porque é uma questão de grupo e grupo fechado, porque se não fosse isso eu não falaria porque a sensação ruim que eu tenho ia ficar dentro de mim. É uma sensação muito ruim..., de incompetência pura. (Depoente 4)
Observou-se que esse sentimento, também comum entre os trabalhadores de enfermagem,4 esteve associado principalmente à necessidade de revelar o incidente ou à possibilidade de outras pessoas do ambiente de trabalho ficarem cientes deste, o que pode denotar incompetência e incapacidade do profissional para a realização de dada tarefa laboral.
Nesse sentido, a vergonha é considerada um sentimento desagradável que degrada a imagem do profissional.4 Assim, o sujeito se vê exposto a situações vexatórias, a julgamentos e comentários maldosos sobre sua competência profissional.4
Outro depoimento destacou a incapacidade sentida por uma profissional recém-formada no curso técnico de enfermagem ao sofrer o acidente com perfurocortante. Todavia, essa incapacidade esteve relacionada à falta ou pouca experiência na área prática do cuidado de enfermagem.
.... Como é no caso do início, te dá muita incapacidade. Você acha: Ah, to errando tanto, furando tanto... Quer dizer, me senti incapaz. Falei: eu nunca vou aprender, nunca vou conseguir! É horrível!... Eu acho que é incapacidade mesmo. (Depoente 1)
A ansiedade foi enfatizada associada à espera do resultado e às chances de contaminação decorrentes do acidente com perfurocortantes envolvendo sangue e/ou outros fluidos biológicos do paciente.
Eu acho que dá logo ansiedade até provar o contrário... Ter se contaminado com alguma doença deve causar logo uma ansiedade...enquanto não sair o resultado, independente do paciente ter ou não alguma coisa já contactada.... (Depoente 20)
[...] por mais que você tenha solidariedade dos colegas isso não vai ser suficiente para poder impedir que você tenha esses sentimentos. Eu acho dessa forma... Aquela ansiedade.... (Depoente 12)
Ainda com relação à espera dos resultados de exames pós-acidente, evidenciou-se a expectativa do profissional, gerando uma angústia neste indivíduo, conforme os depoimentos:
[...] eu presenciei um acidente... aquela espera, aquela angústia, aquela expectativa,.... (Depoente 12)
[...] a expectativa de saber o resultado.... (Depoente 8)
Verificou-se que os motivos que levam à ansiedade ao trabalhador de enfermagem se associam aos que geram neste indivíduo os sentimentos de medo e desespero, além da preocupação e da expectativa originada pelo acidente com material perfurocortante.
Para efeitos deste estudo, a ansiedade é considerada uma característica biológica do ser humano, que antecede momentos de medo, perigo ou de tensão, apresentando-se por meio de inúmeros sinais, tais como: irritação, preocupação e tensão.13
Nesse sentido, a ansiedade é apontada como o sentimento mais citado pelos enfermeiros, capaz de gerar perda de confiança em suas habilidades e em sua prática.14 Acredita-se, contudo, que essa perda de confiança ocasione insegurança ao trabalhador durante a execução de sua tarefa profissional.
O sentimento de insegurança do trabalhador também foi mencionado pelo grupo como decorrente do acidente e como sentimento que emerge do profissional até que os resultados de exames estejam prontos.
Eu acho que gera insegurança, porque de repente o profissional que se considera muito capacitado pra fazer aquilo, um determinado procedimento, seja ele qual for, de repente, durante o procedimento, ele se acidentar... eu creio que a partir daí, ele vai se sentir mais inseguro. (Depoente 19)
[...] eu presenciei um acidente... Eu acho que... vai ficar com aquela insegurança,.... (Depoente 12)
Nesta perspectiva, acredita-se que a insegurança contribua para uma baixa autoestima, interferindo na autoconfiança do profissional e desencadeando ideias de subvalorização e não reconhecimento pelo grupo de trabalho, pois quando se está inseguro, falta confiança em si próprio.15 Assim, além de a insegurança promover prejuízo na autoconfiança profissional, esta atua desfavoravelmente na realização das atividades laborais.
Outros depoimentos foram considerados como repercussões desfavoráveis do acidente com perfurocortantes, mas não se enquadram em sentimentos dos trabalhadores, tendo em vista que dizem respeito à falta de habilidade técnica e destreza do profissional e à repercussão financeira quando o acidente gera afastamento das atividades laborais, conforme explicitado abaixo:
[...] a pessoa já pensa que você não tem habilidade, não tem técnica [...] porque eu vejo que quando acontece com colegas...é sempre isso que é cobrado. Como é que foi a técnica?...A repercussão é enorme... além de você ficar mal visto, como uma pessoa que não tem habilidade, que não tem destreza, que não tem técnica, que não usou a técnica correta, porque fez de uma maneira displicente... (Depoente 13)
... Exatamente o que eu passei, a repercussão foi enorme... Eu fiquei uma semana sem trabalhar [...] afastada... No meu outro emprego... foi uma repercussão ruim porque eu perdi muitos dias... Teve uma repercussão financeira, entendeu? (Depoente 16)
Por meio desses achados, evidenciou-se que o acidente com perfurocortantes afeta psicologicamente o trabalhador de enfermagem. Essa concepção é corroborada pelo estudo3 que menciona que os trabalhadores acidentados apresentaram medo da contaminação, ansiedade, expectativa do resultado do teste anti-HIV, preocupação com a vida sexual, dentre outros dados que confirmam o "impacto" psicológico causado pelo acidente em questão.
Todavia, ressalta-se que a repercussão do acidente ocorrerá de forma individual e singular, de acordo com a visão de mundo, a história de vida e as características individuais do profissional envolvido, delineando aspectos subjetivos, tais como os sentimentos envolvidos que serão "sentidos" de forma peculiar e própria a cada sujeito.
Entre esses sentimentos, destacam-se: medo, desespero, vergonha, incapacidade, incompetência, ansiedade, preocupação, insegurança e angústia todos consequências do acidente com perfurocortante, repercutindo no desgaste psíquico e emocional do trabalhador de enfermagem acidentado.
Entretanto, não se pode descartar que o acidente com perfurocortantes também interfere na esfera financeira, já que, diante da necessidade de afastamento do trabalhador de suas atividades profissionais, há uma "perda" econômica, em forma de benefícios, quando o mesmo está inserido no sistema privado de atenção à saúde.
No que tange às repercussões favoráveis à conduta profissional do trabalhador de enfermagem decorrentes do acidente com perfurocortante, os sujeitos do grupo focal destacaram a necessidade de redobrar o cuidado, ficar mais alerta, adotar uma postura mais precavida, ter mais cuidado e atenção ao manipular materiais perfurocortantes para não se machucar ou não sofrer outro (s) acidente (s).
...Lógico, você tem que redobrar o cuidado porque aquilo dali é perfurocortante, você pode se machucar, entendeu?. (Depoente 7)
... Quando eu me furei com a agulha... eu passei a tomar mais cuidado, não fico naquela: ah, não vai acontecer. Só uma vezinha não vai acontecer nada. Então, passei a ter mais cuidado, prestando atenção... Fico mais alerta... E aí eu passei a ter uma postura mais precavida. (Depoente 23)
[...] o acidente que aconteceu comigo.... aquilo ficou como alerta. Eu tenho que tomar cuidado, tomar muito mais cuidado. Não deixar isso acontecer de novo.... (Depoente 8)
Eu acho que... depois vamos dizer assim, a gente fica mais precavido, pra não se acidentar,...a gente toma muita atenção pra não se acidentar novamente.. Você fica mais atencioso nos procedimentos... Depois que passa, você vai fazer os exames todos, não deu nada graças a Deus, fica mais atencioso pra essas coisas, muito mais.... (Depoente 6)
Assim, foi possível depreender dos profissionais que já se acidentaram com perfurocortante a necessidade de maior atenção e precaução ao lidar com esses instrumentos, uma vez que eles, em geral, têm medo da (re)corrência de outros acidentes, além do medo da possibilidade da contaminação decorrente desse agravo.
No que tange à atenção, entende-se que esta pode ser definida como a direção da consciência, o estado de concentração da atividade mental sobre determinado objeto10, ou seja, é estar concentrado para a realização de dada tarefa. Essa concentração "ativa e intencional da consciência sobre um objeto" é denominada atenção voluntária10:71 e, nesse caso, está direcionada à atenção externa, considerada como aquela projetada para fora do mundo subjetivo do sujeito, voltada para o mundo exterior, geralmente de natureza mais sensorial, utilizando-se dos órgãos dos sentidos.
Dessa forma, entende-se que é essa atenção voluntária que a equipe de enfermagem deve dispor ao oferecer cuidado e assistência à sua clientela, pois cabe a essa equipe estar atenta e concentrada naquilo que está sendo desempenhado, a fim de ofertar uma assistência com menor possibilidade de eventos adversos para si e para o cliente.
Corroborando essa concepção, o estudo afirma que "as atividades de enfermagem, por si sós, exigem muita atenção, como, por exemplo, o preparo de medicações e a observação dos pacientes em estado grave, entre outras".16:112 Portanto, a atenção se faz necessária ao realizar as atividades de enfermagem, considerando que esta se trata primordialmente da assistência ao ser humano.
Além disso, torna-se imprescindível a atenção da equipe de enfermagem ao manipular materiais perfurocortantes, com vistas a evitar acidentes.17 Neste contexto, fazem-se necessárias a adoção de práticas seguras e a utilização de princípios de biossegurança, como a utilização das precauções padrão a serem usadas conforme o procedimento realizado, o uso de equipamentos de proteção individual (EPI), dentre outras medidas de proteção à saúde do trabalhador.
Vale ressaltar, ainda, que os trabalhadores de enfermagem que utilizam objetos perfurocortantes são os responsáveis pelo seu descarte como forma de atender à 32ª Norma Regulamentadora (NR 32) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que tem por finalidade estabelecer as diretrizes básicas para a implementação de medidas de proteção à segurança e à saúde dos trabalhadores dos serviços de saúde, bem como daqueles que exercem atividades de promoção e assistência à saúde em geral.18
Assim sendo, o cuidado redobrado na manipulação e descarte adequado de instrumentos perfurocortantes, além de proporcionar o cuidado com a saúde de todos os profissionais que dividem o mesmo espaço laboral, promove o cuidar de si, ou seja, o cuidado do trabalhador com sua própria saúde e segurança.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização deste estudo permitiu vislumbrar como o acidente de trabalho com perfurocortantes repercute na saúde, na conduta profissional e na situação econômica e financeira do trabalhador de enfermagem acidentado.
Ao realizar o grupo focal com a equipe de enfermagem, observou-se que essas repercussões dividiram-se em: desfavoráveis à saúde do trabalhador e favoráveis à conduta profissional do trabalhador de enfermagem.
No que concerne às repercussões desfavoráveis à saúde do trabalhador, evidenciou-se uma riqueza de sentimentos explanados pela equipe de enfermagem decorrentes do acidente com perfurocortantes, como o medo, desespero, preocupação, vergonha, ansiedade e insegurança, repercutindo na esfera psíquica e emocional do trabalhador acidentado.
Neste estudo, os sentimentos foram considerados como vivências altamente subjetivas, já que estes repercutirão na saúde física e mental, no comportamento e atitudes do sujeito de forma singular. Assim, as repercussões do acidente ocorrerão de acordo com a individualidade, essência e subjetividade do profissional acidentado.
Além dos sentimentos, outros achados foram englobados nesta categoria, como a falta de habilidade técnica propulsora do acidente com perfurocortante e a implicação financeira decorrente deste.
No que tange às repercussões favoráveis à conduta profissional do trabalhador de enfermagem, destacam-se a necessidade de implementar maior atenção, precaução e cuidado na manipulação de instrumentos perfurocortantes tão comuns no processo de trabalho desta equipe.
Neste sentido, torna-se imperioso adotar práticas de segurança ao manipulá-los, tendo em vista seu elevado potencial para agravos à saúde tanto no campo físico quanto psíquico e emocional do trabalhador de enfermagem.
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Recebido em 15/08/2008
Reapresentado em 12/04/2009
Aprovado em 02/06/2009