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CAPES

Volume 13, Número 3, Jul/Set - 2009

PESQUISA

 

Percepções de familiares sobre o portador de sofrimento psíquico institucionalizado

 

Family perceptions about the institutionalized psychic suffering patient

 

Percepciones de familiares sobre el portador de sufrimiento psíquico institucionalizado

 

 

Dulcian Medeiros de Azevedo I; Francisco Arnoldo Nunes de Miranda II; Mércia Maria de Paiva Gaudêncio III

I Enfermeiro. Mestre em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor Assistente I do Curso de Graduação em Enfermagem, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus do Seridó - Caicó. Brasil. E-mail: professordulcian@gmail.com,
II Enfermeiro. Doutor em Enfermagem Psiquiátrica (USP). Professor do Departamento de Enfermagem da UFRN. Brasil. E-mail: farnoldo@gmail.com,
III Enfermeira. Mestre em Saúde Coletiva pela UEPB. Professora Titular do Departamento de Enfermagem UEPB- Brasil. E-mail: merciagaudencio@bol.com.br

 

 


RESUMO

Objetivou-se investigar a percepção do sofrimento psíquico na visão familiar. Estudo descritivo, com abordagem qualitativa, realizado em junho de 2005 em um hospital psiquiátrico de médio porte. Entrevistaram-se 15 familiares que acompanhavam o tratamento e a assistência no hospital. As falas foram submetidas à análise de conteúdo, categoria temática. Nesse sentido, os familiares demonstraram conhecer as alterações comportamentais decorrentes do sofrimento psíquico e o seu período de instalação. Relataram ainda um percurso angustiante e difícil na procura por ajuda, afirmando não saber a quem ou o quê procurar, valendo-se, inicialmente, do auxílio mágico-religioso e, posteriormente, do conhecimento médico-científico. No âmbito da convivência familiar, os conflitos existem e reforçam o comprometimento nas relações interpessoais e vínculos sociais. Torna-se um desafio para os profissionais de saúde mental estabelecer vínculos terapêuticos com familiares de portadores de sofrimento psíquico, ensejando um redirecionamento das práticas assistenciais e, sobretudo, de educação em saúde.

Palavras-chave: Transtornos Mentais. Família. Enfermagem Psiquiátrica. Serviços de Saúde Mental.


ABSTRACT

The objective was to investigate the perception of mental suffering in the family vision. Descriptive study with a qualitative approach held in June 2005, in a midsize psychiatric hospital. It was interviewed 15 relatives who accompanied the treatment and assistance in hospital. The speeches were submitted to content analysis, in thematic categories. In that sense, the families have demonstrated the knowledge of behavioral changes resulted from mental suffering and its beginning time. Also reported a distressing and difficult journey when searching for help, saying they don't know to whom or what to look for, appealing, initially, to magical-religious aid, and subsequently, to medical and scientific knowledge. Within the family environment, the conflicts exist and reinforce the commitment in interpersonal relationships and social ties. It is a challenge for mental health professionals to establish therapeutic relationships with family members of individuals with psychological distress, providing a redirection of care practices, especially, in health education.

Keywords: Mental Disorders. Family. Psychiatric Nursing. Mental Health Services.


RESUMEN

El objetivo fue investigar la percepción del sufrimiento psíquico desde la visión de la familia. Estudio descriptivo con enfoque cualitativo, realizado en junio de 2005 en un hospital psiquiátrico de tamaño medio. Fueron entrevistados 15 familiares que acompañaban el tratamiento y la asistencia en el hospital. Los discursos fueron sometidos a análisis de contenido, la categoría temática. En este sentido, los familiares demostraron conocimiento de los cambios de comportamiento resultantes del sufrimiento psíquico y el tiempo que toma para instalarse.. Relataron un angustiante y difícil recorrido en busca de ayuda, explicando que desconocen quién yo qué buscar, recurriendo en primera instancia a auxilios mágico-religiosos y, en seguida, al conocimiento médico-científico. En el ámbito de la convivencia familiar, los conflictos existen y fortalecen el desgaste de las relaciones interpersonales y vínculos sociales. La implantación de relaciones terapéuticas con los familiares de personas con sufrimiento psíquico es un desafío para los profesionales de salud mental, lo que requiere de una reorientación de las prácticas asistenciales, especialmente en la educación para la salud.

Palabras- claves: Transtornos Mentales. Família. Enfermeria Psiquiátrica. Servicios de Salud Mental.


 

 

INTRODUÇÃO

A compreensão da loucura pela sociedade e pela ciência experimentou muitas transformações ao longo dos anos, com significados e interpretações diversas no imaginário social. Passou-se de uma era mágico-religiosa, com possessões demoníacas, à mercê do sobrenatural e dos castigos divinos, para a era moralista e higienista com o isolamento e tratamento em instituições asilares.

Neste contexto, à família restava a imputabilidade pelo sofrimento psíquico, ora culpada pelo desenvolvimento da doença no "louco", ora afastada para não adoecer, desencadeando o esquecimento, a segregação, o "descarte do louco" e a exclusão social, ambas em defesa da "ciência psiquiátrica".

Atualmente, a família circunscrita na Reforma Psiquiátrica assume uma posição inclusiva e propositiva por meio da reabilitação psicossocial e desinstitucionalização. Diferentemente de outrora, torna-se partícipe no tratamento e no acompanhamento do seu familiar doente, a partir de uma assistência aberta à comunidade, portanto substitutiva ao manicômio, contando com suporte da rede social e comunitária.

A inclusão da família no tratamento à saúde mental começou a ser discutida no âmbito político e entre os profissionais de saúde da área a partir da década de 1960, em alguns países europeus, e em 1980 no Brasil1.

A família é convocada a participar efetivamente do processo de reconstrução da dignidade do portador de sofrimento psíquico, ocupando lugar privilegiado nas discussões das políticas públicas em saúde mental diante da Reforma Psiquiátrica2. Ela representa o espaço indispensável à garantia da sobrevivência, desenvolvimento e proteção de seus membros, independente do arranjo familiar ou da forma como se estrutura. Cada família possui uma dinâmica de vida específica, dependente do processo de desenvolvimento sócio-econômico e do impacto da ação do Estado por meio de suas políticas econômicas, sociais e de saúde3.

Enquanto unidade, a família é, de um lado, vista como um sistema, e seus membros, como componentes deste, e ocorrem influências recíprocas; circunstancialmente, um ser, ao adoecer, reflete algum problema em todo o sistema familiar2. Por outro lado, em uma perspectiva psicossocial, valorizam-se as necessidades da família para compreendê-la e poder ajudá-la no enfrentamento cotidiano, reforçando o trinômio relacional: paciente-família-serviço.

Revalorizada a família, e, portanto, renegando sua condição tradicional de mera informante das manifestações psicopatológicas, ela representa o mais importante instrumento na "reabilitação do indivíduo em sofrimento psíquico; por isso, deve ser estabelecida uma parceria entre indivíduo, família e profissional, pois não se consegue cuidar do portador de transtorno mental sem cuidarmos da sua família"4:103.

Além da inclusão da família, passa-se a alocar esforços não mais na perspectiva individual do portador de sofrimento psíquico e da doença, mas na perspectiva da coletividade com ênfase nos relacionamentos afetivos, sociais e, em especial, familiares.

Assim, o profissional de saúde busca meios capazes de promover um processo comunicativo que permita ao usuário compreender toda a dimensão do problema de saúde e, a partir daí, desenvolver a compreensão sobre os esforços educativos e terapêuticos propostos para ele e seu eixo familiar, facilitando a reintegração na rede de relações sociais.

Objeto da inquietação dos autores, este estudo surgiu da experiência cotidiana em uma instituição hospitalar psiquiátrica de médio porte. Dúvidas e incertezas dos familiares e visitantes eram constantemente observadas, além da insuficiente orientação e desconhecimento sobre o sofrimento psíquico, carregado de preconceitos, estigmas e sofrimento.

Os hospitais psiquiátricos, em meio às propostas reformistas, vêm sofrendo mudanças a partir do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH/Psiquiatria). Em agosto de 2004, o Ministério da Saúde anunciou a decisão de intervir judicialmente nos hospitais psiquiátricos conveniadas ao SUS que estavam em desacordo com os instrumentos legais da avaliação, somando-se às proposições ministeriais de controle e regulação na prestação dos serviços em saúde mental e psiquiátricos, com garantia dos princípios da universalidade, equidade, integralidade, dentre outros5.

O Pacto pela Saúde, firmado entre as instâncias federal, estaduais e municipais em 2006, garante a construção da sustentabilidade do SUS, assim como da Reforma Psiquiátrica, circunscrevendo as dimensões econômica, social, cultural e tecnológica. Dessa estratégia, o Pacto pela Saúde Mental em desenvolvimento deverá assegurar a manutenção e ampliação progressiva do financiamento da rede extra-hospitalar, tendo como uma das metas o aumento dos 2,04% destinados à saúde mental em recursos totais gastos pelo SUS em 2006 para pelo menos 4,05% até fim de 2010, ainda longe do percentual mínimo de 5% proposto pela OMS5.

Diante do exposto, objetivou-se investigar a percepção do sofrimento psíquico na visão dos familiares de pacientes de um hospital psiquiátrico.

 

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Estudo descritivo, com abordagem qualitativa. Cabe ao pesquisador no estudo descritivo observar, descrever e documentar os aspectos de determinada situação ou fenômeno, sem se preocupar em estabelecer relações de causa e efeito6.

A pesquisa qualitativa parte do pressuposto de que o conhecimento dos indivíduos é possível a partir da experiência humana, tal como é vivida, trabalhando-se com um universo de significados, motivos, aspirações, valores e atitudes, ou seja, fenômenos que não podem ser quantificados 6.

Os dados foram coletados em junho de 2005 em um hospital psiquiátrico de médio porte, com capacidade para 120 leitos, localizado no município de Campina Grande-PB. A amostra foi constituída por 15 familiares que acompanhavam o tratamento e prestavam assistência aos parentes internos.

A aplicação da entrevista semiestruturada escolhida para este estudo como instrumento de pesquisa aconteceu após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba (Protocolo n° 0318.0.000.133-05). A entrevista foi realizada em sala reservada por ocasião do horário de visitas estabelecido pelo hospital, regularmente definido de segunda à sexta-feira no período vespertino, gravada em fita K-7 e transcrita na íntegra pelos pesquisadores.

Analisaram-se os dados obtidos a partir do procedimento de análise de conteúdo temática7. Todos os familiares participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme preconiza a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADO E DISCUSSÃO

A maioria dos entrevistados era do gênero feminino (87%), casados (67%), com idade superior a 48 anos (73%), variando entre 28 e 80 anos, com média de 52 anos, dos quais 80% não tinham o Ensino Médio. As mães (40%) foram as principais responsáveis pelo acompanhamento e assistência ao familiar interno, seguida dos irmãos (33%).

Mediante as manifestações discursivas apreendidas na entrevista, construíram-se seis categorias temáticas relacionadas à percepção do familiar acerca do sofrimento psíquico. Os sujeitos entrevistados foram identificados, no texto, com a letra "E" e sequencialmente numerados à medida que eram respondidas as perguntas, como por exemplo, E.1, E.2... E.15. Optou-se pelo uso das falas dos familiares na discussão de cada categoria temática, valorizando a simbologia e os significados diversos que os indivíduos trazem em seu modo de falar e interpretar o mundo à sua volta.

Categoria 1: O Surgimento do Sofrimento Psíquico

Os familiares destacaram a maneira como percebem o início do adoecimento psíquico, identificando-o e correlacionando-o cronologicamente à presença de sintomas em diferentes momentos da vida do portador, quer pelo acompanhamento, quer pela convivência no desenvolvimento da doença, compreendida entre 16 e 36 anos (40% dos familiares). Constitui-se per si em um dado significativo, pois pressupõe um modo de percepção singular que garante o ajustamento decorrente da doença no contexto social e familiar, exemplificado nos depoimentos a seguir:

(...) doença que dá de repente. Ele adoeceu de repente (E. 10).

(...) não falava (E. 1).

(...) não era de muita conversa (E. 11).

(...) lá pelos 14, 15 anos foi ficando diferente (E. 8).

Essa identificação é importante para que o familiar construa, segundo sua capacidade de entendimento e apercepção, formas de assimilação e enfrentamento da problemática, preferencialmente conduzida por apoio especializado de profissionais da área. Entretanto, este suporte terapêutico é adiado na maioria das vezes em virtude do estigma e do preconceito socialmente compartilhado, tendo em vista que há um membro "louco" na família, sendo postergada a procura por serviço médico até que ocorra um evento de maior magnitude que justifique tal decisão.

Sabe-se que, culturalmente, vários outros tipos de ajuda são oferecidos pelas famílias, seja na esfera religiosa (umbanda, espiritismo, evangélica, benzedeiras, candomblé) ou social, mediante contatos com vizinhos, conhecidos, amigos (simpatias, conselhos, consultas)8.

As falas, nas formas de subcategorias temáticas, também dizem respeito ao "comportamento social", "relacionamento interpessoal", "expressão de sentimento", "padrão de comunicação", suscitando a problemática emanada da elevada sobrecarga que o sofrimento psíquico exerce nos indivíduos, famílias e comunidade. Relacionam-se ao provimento de apoio físico e emocional dos seus entes, e o impacto negativo da estigmatização e da discriminação leva os familiares a conviver com perdas no campo do trabalho, da esfera econômica e das relações sociais9,10.

Categoria 2: A Descrição do Comportamento

Os familiares conhecem as manifestações comportamentais do doente, quer no momento de crise, quer no período de estabilidade do sofrimento psíquico, confirmada pela observação cotidiana e pela convivência com suas variações atitudinais, a seguir exemplificadas:

(...) parte para aquele estado de agressão (E. 4).

(...) diz que uma nega maluca fica mandando tirar a roupa (E. 7).

(...) ele conversa direitinho (E. 8).

(...) você jura como ele não tem doença (E. 13).

Reafirma-se a importância de o familiar reconhecer e assimilar as atitudes e comportamentos manifestos de seu parente doente, seja em surto, seja em estado remissivo. O profissional de saúde mental, enfermeiro ou não, deve orientar o familiar a partir da escuta ativa de sua história de vida, sobre sua trajetória de convivência com o sofrimento psíquico, entendendo que este mesmo familiar cuidador pode exibir problemas de saúde mental e necessidades de saúde tanto quanto o seu familiar interno na instituição.

Durante o desenvolvimento da pesquisa, observou-se a única forma de interação do familiar com a equipe multiprofissional do hospital, restrita aos momentos de visita ao doente e ao "atendimento" familiar realizado pelo serviço de assistência social, com vistas ao recebimento de vestes, material de higiene, dinheiro para compra de lanches, entre outros aspectos.

A problemática de saúde mental não assume o caráter de exclusividade para um dos membros familiares, pois diante de um evento significativo que engloba diversos fatores no eixo familiar, extrapolam-se a adequação, a percepção, o sentimento de ajuda e de informação, afetando a adaptação socioeconômica diante do adoecimento.

Ainda no contexto da convivência, as narrativas das histórias de vida dos familiares evidenciam também, de forma clara e incisiva, um universo de sobrecarga, sofrimento, dependência familiar, angústia, tristeza e insegurança10-12, como se vê nos depoimentos:

(...) eu estava agoniada (E. 3).

(...) eu fiquei perturbada (E. 5).

(...) fiquei com medo (E. 9).

Diante do novo e do estranho, a manifestação psicopatológica do sofrimento mental, os familiares experimentam uma situação adversa de medo, angústia e desespero, ao mesmo tempo em que devem desenvolver a capacidade de equilíbrio emocional para unir forças e garantir a procura por ajuda no início da crise.

Categoria 3: A Procura por Auxílio

A trajetória familiar na busca por auxílio para o problema de saúde do portador de sofrimento psíquico demonstra resquícios de um passado de ineficiência diante das políticas públicas em saúde mental. Este se refere ao acesso dos serviços, à informação sobre a promoção da saúde mental, à desmistificação da loucura construída ao longo dos tempos como sinônimo de periculosidade e ameaça à ordem social.

Historicamente, a representação e o conceito de doença têm estreita ligação com o estilo de pensamento dominante, coexistindo uma multiplicidade de abordagens, desde conceitos isolados de uma área específica de conhecimento até modelos plurais de abordagens13.

Observou-se, ainda, majoritariamente, que a condição desta procura representa uma tarefa "difícil" e "angustiante", evidenciada pela carência familiar por respostas para as suas inquietações diante do portador de sofrimento psíquico, com manifestações de efeitos ansiogênicos, defesas e medos. Os sentimentos e as emoções mobilizam todos os membros do núcleo familiar, pois existe certo desconhecimento em relação ao que fazer e como cuidar de seu familiar doente11,14.

(...) eu não sabia por onde começar (E. 1).

(...) só encontrei dificuldades (E. 5).

(...) a gente fica sem saber pra onde correr (E. 7).

(...) foi a coisa mais difícil do mundo (E. 14).

Os familiares se tornam inseguros quanto ao que a doença implica para o restante dos membros, e confusos acerca de quais seriam suas próprias atitudes, pois muitas vezes, dependendo da situação vivenciada, existem papéis previamente estabelecidos por cada membro. A instalação da doença ou o seu reaparecimento desarticula a dinâmica no núcleo familiar e "adoece" todo o sistema. Os próprios portadores se dirigem aos familiares retratando como é difícil e delicada a convivência com a família15.

Minoritariamente, a busca por ajuda foi considerada "fácil", amparada na tutela do manicômio, na figura do psiquiatra como detentor da ordem, na negação da família como colaboradora indispensável, no desenvolvimento de práticas assistenciais que moldam o comportamento do doente ao espaço mortificado do hospital. A preocupação com este achado gera uma reflexão para os profissionais de saúde mental, corroboradas nestes depoimentos:

(...) nós não encontramos dificuldades porque nós internamos (E. 1).

(...) aqui [no hospital] sempre foi fácil (E. 9).

(...) foi fácil, foi fácil (E.14).

A história da psiquiatria tem sido também a história das atitudes psiquiátricas em relação à família do paciente, especialmente por ocasião da internação, em que a família é grata à instituição por ser aliviada do problema e a instituição se autorreproduz também, graças a essa gratidão16. O processo de Reforma Psiquiátrica vivenciado objetiva quebrar esta "ideologia de troca", transformando a lógica do tratamento e das práticas profissionais, valorizando a família como um espaço de cuidados e as potencialidades do portador de sofrimento psíquico, além de desenvolver uma rede de serviços abertos na comunidade, transformando a percepção do sofrimento psíquico através do acesso à informação.

Categoria 4: As Formas de Ajuda Encontradas

A concepção "mágico-religiosa" emergiu do conjunto de falas dos sujeitos, relacionada ao convívio e conhecimentos adquiridos pelos familiares na vida cotidiana, por ser uma problemática conhecida e discutida nas conversas com vizinhos e amigos, nas tradições e experiências conjuntas, sob forte influência das crenças e religiões diversas, e na maioria das vezes apresentada como a primeira opção de ajuda:

(...) o povo dizia que era espírito, eram espíritos (E. 3).

(...) fizemos promessa, fizemos tanta coisa (E. 8).

(...) cada um dizia uma coisa: leve pra igreja, centro de terreiro (E. 9).

(...) já procurei igreja evangélica (E. 11).

(...) eu levei ele na rezadeira (E. 15).

Dessa opção de ajuda, percebe-se nos discursos uma flutuação explicativa, ora como forma nuclear da etiologia do sofrimento psíquico, ora como forma de ajuda possível e encontrada.

A concepção "médico-hospitalar", representada pelo conhecimento técnico-científico, destaca o paradigma da psiquiatria clássica, em que o familiar busca o saber médico nas figuras do psiquiatra e do manicômio para suprir suas necessidades, por ver esgotada a ajuda diante do sofrimento psíquico na rede de relações sociais e comunitárias:

"(...) melhor ajuda que encontrei é aqui [hospital]" (E. 2).

"(...) solução só foi o médico" (E. 6).

"(...) a gente procura internar" (E. 8).

"(...) procurei médico pra ele ficar tomando remédio" (E. 13).

Os achados refletem a transição entre os modelos assistenciais em saúde mental, na maioria das vezes tendo por única alternativa a hospitalização. Aí, talvez, repousem as razões e os motivos pelos quais os familiares se sentem confortados e seguros com a internação.

A estrutura dos serviços de saúde mental e, sobretudo, as práticas assistenciais, vêm se modificando diante das perspectivas reformistas de enfrentamento desta problemática. Os serviços substitutivos compreendem uma rede de serviços de saúde mental articulados na lógica da integralidade, territorialização, referência e contrarreferência, representados pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), pelas Residências Terapêuticas, pelos Lares Abrigados, Centros de Convivência e Cultura, Serviços de Emergência em Psiquiatria, Hospitais-Dia, Ambulatórios em Saúde Mental e Leitos Psiquiátricos em Hospitais Gerais.

Categoria 5: A Colaboração Familiar no Cuidado ao Portador de Sofrimento Psíquico

Nesta categoria observaram-se o distanciamento e as dificuldades dos demais familiares no manejo e cuidados ofertados ao familiar com sofrimento psíquico, destacando-se a ajuda isolada dos irmãos e a incipiente colaboração do genitor. Dessa forma, as falas suscitam também as escolhas, as rejeições, as negociações e os embates na convivência com o portador de sofrimento psíquico:

"(...) tem um irmão que dá café no portão, mas não deixa entrar" (E.2).

"(...) a irmã já não tem paciência" (E. 7).

"(...) minha mãe tá velhinha, mas ajuda" (E. 12).

"(...) ela [irmã] só chega lá para deixar a feira e pronto" (E. 15).

Nas razões apontadas pelos familiares entrevistados na colaboração e não colaboração dos outros membros da família, destaca-se o "aconselhamento", permitindo inferir que os familiares de maneira positiva procuram, por meio do diálogo, auxiliar o portador de sofrimento psíquico:

"(...) a gente procura conversar" (E. 7).

"(...) dá conselho a ele [doente]" (E. 9).

Em um sentido complementar, "compreensão" e "preocupação" demonstram uma dimensão real do sofrimento psíquico, revelando como está sendo compreendido e aceito, mesmo que encerre um misto de inquietação e concordância:

"(...) todos os familiares entendem" (E. 2).

"(...) `tudim' [os familiares] fica aperreado" (E. 9).

"(...) o irmão é quem mais se preocupa" (E. 13).

No que tange às razões da não colaboração, infere-se a existência do estranhamento e da vizinhança, de certo modo justificadoras, entre "problemas psíquicos" e de "rejeição", somando-se a outras preocupações, atribulações e problemas que os familiares já possuem, tornando-os quase impossibilitados de fornecer apoio quando eles próprios necessitam de cuidados.

De certa maneira, o não entendimento e conhecimento do sofrimento psíquico dizem respeito ao tratamento manicomial, o qual durante muito tempo alimentou esta rejeição e exclusão, pois inúmeras vezes o doente era "depositado" e esquecido na instituição, colaborando inclusive para a instalação do processo de cronificação e mortificação subjetiva. Reitera-se a importância da inclusão de toda a família no tratamento do doente, com a abertura para os espaços comunitários onde vive e coabita todo o eixo familiar.

As intervenções familiares são fundamentais, pois trazem à tona o papel das ações educativas, de prevenção, promoção e reabilitação da saúde mental, existindo várias formas de interação entre a família e o profissional de saúde, por intermédio dos grupos terapêuticos, do acolhimento e atendimento individual, além das visitas domiciliares17.

Categoria 6: A Ocorrência de Conflitos Familiares

Na fala dos familiares, reafirmou-se a ocorrência de conflitos desencadeados pelo sofrimento psíquico de um de seus membros e da sobrecarga emocional, econômica e social que este fenômeno encerra.

Possivelmente esta ocorrência associa-se à não aceitação da doença, aos encargos socioeconômicos, à sobrecarga emocional e afetiva, às negociações dentro e fora do eixo familiar e na comunidade, o que caracteriza uma quebra na harmonia e sustentabilidade das relações familiares, interferindo na assistência e cuidados ao doente, exemplificados a seguir:

"(...) porque ele [doente] quer bater na gente" (E. 6);

"(...) o irmão não aceitava, chegaram a se agarrar (E. 8).

"(...) existe a aceitação da doença em parte, né!" (E. 9);

"(...) eles [familiares] ignoravam e não querem aceitar a doença" (E. 10);

"(...) tem hora que não dá... aí causa discussão" (E. 14);

Concorda-se que o grau de sofrimento mental do indivíduo pode ter relação com as experiências vivenciadas no contexto familiar, especialmente no que se refere aos sucessos ou decepções de suas projeções18. Portanto, as hostilidades, comentários críticos e o intenso envolvimento pessoal podem estar relacionados ao desenvolvimento de novas crises ou reagudização de sintomas, recomendando-se a diminuição destes fatores na busca da redução dos conflitos que permeiam o interior da vida familiar12.

Dentre as razões apontadas para a ocorrência do conflito familiar, os familiares trazem à tona a "não aceitação da doença", as "limitações do cuidador" e a "culpabilização familiar":

"(...) tem que ter uma pessoa sempre tomando conta, né?" (E. 2).

"(...) eu [familiar] não posso mais viajar" (E. 8).

"(...) as irmãs fica dizendo que ele está assim por minha causa" (E. 11).

"(...) porque a gente fica meio preso ao doente" (E. 15).

O cuidado e a assistência ao portador de sofrimento psíquico desencadeiam nos cuidadores uma dependência de resolutividade de problemas oriunda da doença bastante acentuada, quando o familiar organiza parte de sua vida em torno das vivências da doença11.

Por este rearranjo é que se reitera a necessidade de encontrar ou reformular estratégias que envolvam o familiar no acompanhamento e participação no tratamento do doente, reconhecendo-o como um ator imprescindível e, portanto, capaz de redesenhar caminhos conjuntamente com a equipe de saúde mental.

Dessa conjugação, a família necessita trabalhar também seus conflitos em situações que privilegiem a sua fala, escuta e escolha, pois só assim encontrará caminhos para diminuir as sobrecargas e melhorar as estratégias de enfrentamento que o cuidar impõe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente vive-se um momento de desafios favoráveis à implementação de mudanças que vão desde as práticas assistências em saúde mental, perpassando a reorganização da rede de serviços, aos conteúdos curriculares no âmbito da saúde, mediante processos pactuados inter e transdisciplinarmente, particularmente na enfermagem. Entretanto, não se pode negar as dificuldades no desenvolvimento de estratégias participativas e de corresponsabilização do cuidador familiar.

Reconsideram-se ainda as diversidades e os ajustamentos vivenciados de natureza multifacetada e singular para a sustentabilidade de cada relacionamento familiar e social. O familiar cuidador quando estimulado, neste caso pela pesquisa, relata e lamenta os percalços em procurar, avaliar e encaminhar o doente ao serviço especializado e conduzi-lo às negociações com o profissional de saúde. Além disso, lida com situações extremas de negociação e crise, remetendo a dificuldades de toda natureza, frequentemente geradoras de conflitos intra e extrafamiliares pautados em incertezas, inverdades e sofrimento.

O fato de os familiares reconhecerem bem a flutuação dos comportamentos por vezes insustentáveis durante o curso do sofrimento psíquico, por sua sintomatologia e instabilidade, representa fator positivo se esta experiência vivenciada for reconduzida a um instrumento capaz de facilitar a participação no tratamento e nos cuidados domiciliares.

Buscar estratégias que proporcionem uma melhora na qualidade de vida e promoção de saúde do núcleo familiar e do meio social do doente representa metas a serem alcançadas pelos profissionais de saúde, sobretudo desmistificando-se o sofrimento psíquico do imaginário familiar e social por meio da educação em saúde.

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Recebido em 26/07/2008

Reapresentado em 06/02/2009

Aprovado em 10/04/2009

 

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