Volume 12, Número 4, Out/Dez - 2008
PESQUISA
Perfil da mortalidade materna por aborto no Paraná: 2003-2005
Characteristics of maternal mortality by abortion in Parana: 2003-2005
Perfil de la mortalidad materna, por aborto en el Paraná: 2003-2005
Kleyde Ventura de Souza I; Maria Rita de Cássia Barreto de AlmeidaII; Vânia Muniz Nequer SoaresIII
I Doutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ. Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR. Curitiba/PR. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Articulando Processos de Educação, Cuidado e Gerenciamento em Enfermagem GECEG, do Curso de Enfermagem da PUCPR. E-mail: kleyde.souza@pucpr.br
IIMestre em Assistência de Enfermagem pela UFPR. Professora Assistente da Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR. Enfermeira da SMS - Curitiba. E-mail: mariarita.cassia@gmail.com
IIIMestre em Saúde do Adulto pela UFSC. Professora Assistente da Universidade Tuiuti do Paraná. Enfermeira da SESA/PR. E-mail: vaniam@onda.com.br
RESUMO
Estudo descritivo cujo objetivo foi identificar o perfil das mulheres que tiveram como causa de morte o aborto, no Estado do Paraná, no período entre 2003 e 2005, com destaque para aspectos sociodemográficos, reprodutivos e relacionados à assistência prestada. Os dados foram obtidos a partir dos estudos de série de casos de óbitos maternos elaborados pelo Comitê Estadual de Prevenção da Mortalidade Materna/Paraná. Foram analisados 17 casos. Os resultados apontaram que 88% dos óbitos poderiam ter sido evitados. O aborto seguido de infecção (59%) foi a causa básica de maior concentração entre as mortes. As mulheres jovens, casadas, com baixo status socioeconômico e reprodutivo foram as mais atingidas. Reafirma-se a importância do acesso a bens sociais, da redução das desigualdades sociais e da educação em saúde voltada para o planejamento reprodutivo de qualidade.
Palavras-chave: Mortalidade Materna. Aborto. Saúde da Mulher. Saúde Sexual e Reprodutiva. Direitos Sexuais e Reprodutivos.
ABSTRACT
A descriptive study whose objective was to identify the characteristics of women who died while having an abortion in the state of Parana between 2003 and 2005, outlining the sociodemographical, reproductive aspects and to the care received. The data was obtained from case series of maternal mortality by the State Committee of Maternal Death Prevention/Parana. There were seventeen cases analyzed and the figures showed 88% of them could have been avoided. The abortion cases followed by infection (59%) were the basic cause of the major concentration of avoidable mortalities. Young married women with a low socio-economic status and fertility were the most affected. This way, it reaffirms the importance of access to social welfare and to health education towards a qualified reproductive planning.
Keywords: Maternal mortality. Abortion. Woman health. Sexual and reproductive health. Sexual and reproductive rights
RESUMEN
Estudio descriptivo cuyo objetivo fue identificar las características de las mujeres que tuvieron como causa de muerte el aborto en el estado de Paraná en el período entre 2003 a 2005, con destaque para aspectos sociodemográficos, reproductivos y al cuidado que recibieron. Los datos fueron obtenidos con la serie de casos de óbitos maternos elaborados por el Comité Estadual de Prevención de la Mortalidad Materna/Paraná. Fueron analizados 17 casos. Los resultados mostraron que 88% de los óbitos podrían haber sido evitados. El aborto seguido de infección (59%) fue a causa básica de mayor concentración, entre las muertes evitables. Las mujeres jóvenes, casadas; con bajo status socioeconómico y reproductivo fueron las más alcanzadas. Se reafirma la importancia del acceso a bienes sociales y a la educación sanitaria hacia un planeamiento reproductivo calificado.
Palabras-claves: Mortalidad materna. Aborto. Salud de la mujer. Salud sexual y reproductiva. Derechos sexuales y reproductivos
INTRODUÇÃO
Ao contemporizarmos a história mundial, percebemos grandes mudanças em seu contexto: a globalização, os avanços da informática, da cibernética, da robótica, enfim, os importantes progressos da ciência e da tecnologia. O mundo mudou; a humanidade, no entanto, tem encontrado limitações para resolver inúmeros problemas da sociedade em geral.
Nesse contexto, pontua-se, em especial, a morte de milhões de mulheres que tiveram/têm suas vidas ceifadas prematuramente pela mortalidade materna problema de grande dimensão mundial, particularmente nos países em desenvolvimento, como o caso do Brasil. Essas mortes, que ocorrem de maneira brusca e inesperada, modificam sentenciosamente a organização, o espaço e as relações de um grupo social e da sociedade como um todo1, de forma mais pujante nas sociedades em que ainda se atribuem às mulheres os cuidados com as crianças, os idosos, os doentes e suas famílias1.
A Morte Materna (MM) é definida, segundo a Classificação Internacional de Doenças - CID, na sua 10a Revisão2, como a morte que ocorre durante a gestação, num período de até 42 dias após seu final, independentemente do seu local ou duração, devido a qualquer causa relacionada ou agravada pela gravidez ou, ainda, por medidas tomadas em relação a ela, excluindo-se os fatores acidentais ou incidentais.
As causas de morte materna são múltiplas. Dentre elas, destacam-se as complicações no início da gestação, os problemas que se agravam nesse período, as complicações ou manejos inadequados durante o parto, bem como a interrupção voluntária de uma gravidez indesejada, como nos casos de abortos provocados.
No que se refere ao aborto, estudos em nível mundial apontam os variados motivos que têm levado as mulheres à interrupção de uma gestação: número de filhos considerado suficiente; o desejo de postergar e/ou aprazar um intervalo maior entre o nascimento dos filhos; situações como a juventude e/ou a pobreza; estados conjugais instáveis e/ou indesejados; opção pessoal, entre outras 3.
Nos países desenvolvidos, onde usualmente a prática do abortamento é legal e as mulheres têm acesso aos serviços de saúde qualificados, a mortalidade por aborto induzido é baixa, variando de 0,2 a 1,2 mortes/100.000 abortos. Entretanto, nas regiões em desenvolvimento, onde geralmente o aborto é ilegal ou bastante restrito, a mortalidade por aborto é centenas de vezes maior que nos países desenvolvidos, tendo em média 330 mortes/100.000 abortos 4.
O abortamento é definido como a interrupção, voluntária ou não, de uma gestação até a sua vigésima semana ou com concepto pesando menos de 500 gramas. Pode ser classificado em: quanto à idade gestacional precoce ou tardio; quanto ao tipo espontâneo ou provocado/induzido; quanto ao grau de eliminação completo ou incompleto; quanto à situação clínica evitável ou inevitável 5.
Estudo sobre a magnitude do aborto no Brasil demonstrou uma diminuição de internações por abortamento no Sistema Único de Saúde (SUS), entre os anos de 1992 e 2005. Do estudo, pôde-se inferir também uma redução no número de abortos realizados de forma insegura. No entanto, as estatísticas mostram-se lastimáveis para 2005, o abalançamento apontou para a ocorrência de mais de um milhão de abortamentos inseguros, portanto cifras altas e perigosas, além de contundentes no que se refere às diferenças entre as regiões brasileiras e do ponto de vista racial: risco duas vezes maior para as mulheres que habitam no Nordeste e Centro-Oeste em relação à Região Sul, e triplicado para as mulheres negras, quando comparada às brancas 4.
Resultados de um relatório recentemente, produzido com base em publicações dos últimos 20 anos sobre o perfil das mulheres que se submeteram ao aborto em nosso país, indicam maior ocorrência em jovens com idade entre 20 e 29 anos (51 a 82%), nas que se declararam católicas (51 a 82%), unidas maritalmente (70%) e com pelo menos um filho (70,8 a 90,5%). Em síntese, observou-se o predomínio de mulheres jovens, trabalhadoras, católicas, usuárias de métodos contraceptivos, as quais abortaram com o uso de misoprostol. Essa situação indica a intrínseca associação entre gestações não-planejadas e possível prática de aborto, fruto talvez da reconhecida assistência ineficaz no que tange ao planejamento reprodutivo, agravada pelas desigualdades sociais e de gênero6.
Nos últimos anos, assiste-se uma discussão acirrada sobre a descriminalização do aborto em nosso país, marcadamente nos campos político e religioso. Todavia, o abortamento continua a configurar-se como uma das principais causas de mortalidade materna. No Brasil, em 2005, a Razão de Mortalidade Materna (RMM) correspondeu a 54,3 por 100.000 nascidos vivos. O abortamento foi responsável por 11,4% do total dessas mortes, sem que tivesse havido uma mensuração confiável quanto ao fato de o aborto ter sido ou não provocado, visto que nem sempre essa informação se encontrava assinalada nos prontuários médicos, e a família também não sabia informar7.
Considerando-se a importância de enfrentamento das contradições que cercam essa mazela social, sua magnitude e repercussões, este estudo teve como objetivo descrever o perfil das mulheres que tiveram como causa de morte o aborto no Estado do Paraná no período entre 2003 a 2005, com destaque para aspectos sociodemográficos, reprodutivos e relacionados à assistência prestada.
MÉTODO
Estudo descritivo, de corte transversal acerca dos 17 óbitos maternos decorrentes de aborto, ocorridos no Paraná entre os anos de 2003 a 2005. Os dados foram obtidos dos estudos da última série de casos divulgada pelo Comitê Estadual de Prevenção da Mortalidade Materna (CEPMM/PR), com base na investigação dos óbitos maternos realizada por este Comitê.
Tais estudos têm sido explorados, discutidos e analisados em câmaras técnicas multiprofissionais e interinstitucionais. Após essas avaliações, os dados são dispostos em um instrumento que serve de roteiro para estudos de caso. Esse instrumento é constituído por dados sociodemográficos, dos antecedentes clínico-obstétricos e fatores de risco; de atenção obstétrica (com ênfase no atendimento hospitalar); relatos de familiares; dados da necropsia e a causa registrada na declaração de óbito (D.O.); ainda, a classificação do óbito; a causa básica, isto é o Código Internacional da Doença (CID); o tipo de óbito; se a morte materna foi declarada ou não; o preenchimento dos campos 43 e 44 da D.O. (período do ciclo gravídico-puerperal em que o óbito ocorreu); a evitabilidade, e, finalmente, indica-se a responsabilidade do óbito: médico-hospitalar; social ou da própria mulher.
Tendo em vista o caráter informativo e instrutivo do próprio CEPMM, após as análises os dados são amplamente divulgados dentro e fora do Estado, configurando-se em dados de domínio público, preservando-se o anonimato das mulheres, dos profissionais e dos serviços envolvidos.
Neste estudo, as informações registradas nos roteiros de coleta de dados foram analisadas por meio da estatística descritiva. Exploraram-se as variáveis sociodemográficas (faixa etária, área de residência, escolaridade, renda familiar, situação conjugal, remuneração própria originada de trabalho formal/ocupação e cor da pele); o perfil reprodutivo (números de gestações, realização de pré-natal, complicações na gestação em que houve o óbito da mulher e uso e tipo de método contraceptivo); a assistência prestada (procedimentos realizados, tempo de internação e transferência de instituição); e, finalmente, as causas relacionadas aos óbitos (classificação do aborto, causa do óbito e sua evitabilidade, responsabilidade e medidas de prevenção).
Calculou-se a Razão de Mortalidade Materna geral (RMMG) e específica por aborto (RMM/A). A RMM foi calculada pela relação entre o número de óbitos de mulheres por complicações da gravidez, parto e puerpério até 42 dias após o parto e o número de nascidos vivos (NV), expresso por 100.000 nascidos vivos. A RMM/A foi calculada pela razão entre o número de óbitos maternos pelo aborto e o número de nascidos vivos, por 100.000 nascidos vivos2. Não foram incluídos neste estudo os óbitos maternos tardios, que correspondem aos óbitos que ocorrem após os 42 dias de puerpério até um ano após o parto.
A utilização dos dados oriundos dos estudos de série de casos do CEPMM/PR foi autorizada pelo Departamento de Vigilância Epidemiológica/DEVE, da Secretaria Estadual de Saúde do Paraná - SESA/PR.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Verificou-se que a RMMG decresceu passando de 77,6/100.000 NV no primeiro triênio, para 64,3/100.000 NV no último enquanto a RMM/A se manteve no mesmo patamar; quando considerados os triênios já citados, 3,7/100.00 NV para 3,6/100.000 NV. Já no triênio 2000-2002 houve aumento da RMM/A (4,3/100.00 NV), contrastando com a curva descendente da RMMG, do mesmo período. Em termos de números absolutos, a redução de óbitos dos triênios 1997-1999 e 2002-2005 representou 30,4%, enquanto a diminuição do número de óbitos por abortos, nos mesmos intervalos de tempo, foi de 23,8% (Tabela 1).
No triênio estudado (2002-2005), investigou-se o total de 9.823 óbitos de mulheres em idade fértil do total de 10.665, correspondendo a 92,1% das mortes. A investigação confirmou que 306 foram óbitos maternos (OM) e, destes, 17 tiveram como causa o aborto(Tabela 1).
Das mulheres que tiveram aborto como causa de morte no triênio estudado, o grupo etário mais atingido foi o de 20 a 29 anos, correspondendo a 43,7%. Os percentuais de óbitos entre as mulheres com mais de 30 anos e entre as adolescentes foram 37,5% e 18,8%, respectivamente. A maior parte dos óbitos aconteceu em mulheres que residiam na zona urbana, 80%.
Em pesquisas realizadas nos últimos 20 anos no Brasil, observou-se redução do analfabetismo e aumento da escolaridade entre mulheres que praticaram aborto6. Pode-se inferir que mulheres com mais anos de estudo e, conseqüentemente, maior nível de informação têm recorrido à prática do aborto, ainda que clandestina e ilegalmente. No entanto, considerando a série de casos deste estudo, com exceção de dois casos em que esse dado não foi informado, verificou-se uma maior concentração de morte (quase dois terços) entre as mulheres com menos de oito anos de estudo (64,3%); essa proporção confirmou a relação entre morte materna e baixo status socioeconômico, entre os quais, baixa escolaridade.
Em relação à renda, observou-se que em mais da metade dos casos esse dado foi ignorado (52,9%). Considerando os seis casos restantes, constatou-se que a renda familiar era menor que três salários mínimos. Quanto à situação conjugal e à remuneração originada de trabalho formal ou ocupação, levando-se em conta somente os casos em que estas informações estavam disponíveis (16 e 15, respectivamente), notou-se que 81,2% se encontravam legalmente casadas ou em comunhão consensual e 60% não possuíam remuneração própria.
No cenário brasileiro, as pesquisas realizadas registram que a maioria das mulheres que já induziram o aborto se encontrava no mercado de trabalho, em ocupações do tipo feminino (trabalho doméstico, informais ou na área de serviços), ou eram estudantes, e também faziam parte da faixa populacional que ganhava até três salários mínimos6.
Nota-se, então, que existem diferenças nas condições de vida entre as mulheres que praticam ou já praticaram o aborto no Brasil e as que morreram no Estado do Paraná. A diferença mais marcante é a participação no mercado de trabalho das mulheres brasileiras que praticaram aborto, situação que não se verificou em relação às mulheres que morreram no Paraná, além da dependência econômica.
O acesso a bens sociais fundamentais (educação, saúde e habitação) é condição primordial para a autodeterminação pessoal particularmente quando relacionada à vida e decisões no âmbito reprodutivo e sexual e assume peso importante no êxito de ações em saúde: planejamento reprodutivo, diminuição da mortalidade materna, prevenção de enfermidades como DST/AIDS8, entre outras.
Um estudo recente voltado à identificação das desigualdades sociais e em saúde reprodutiva da população feminina no Estado do Paraná, com base em dados dos sistemas de informação do SUS qüinqüênio 1998-2002 apontou a persistência de desigualdades sociais entre os sexos. Notadamente, o analfabetismo funcional foi maior entre as mulheres; porém, verificou-se taxa de escolaridade mais alta (24,7%) 11 anos ou mais de estudo quando comparada à dos homens (22,8%). Ainda assim, as mulheres tiveram renda média correspondente a 60% dos rendimentos da população masculina. Quando consideradas situações como ausência de renda ou renda menor que um salário mínimo, as mulheres perfizeram um total de 11,7%, contra 7,9% dos homens, que ocupavam postos de trabalho de melhor remuneração9.
No Estado do Paraná, a variável raça/cor tem sido analisada desde 1993. Após esforços da Secretaria de Estado da Saúde-SESA/PR para melhoria desse registro na Declaração de Nascido Vivo (DNV), identificou-se avanço na qualidade dos dados e, conseqüentemente, um incremento de 7,4 para 8,2 de risco de morte no grupo populacional constituído de mulheres pretas, em comparação ao número de brancas e pardas 10.
O baixo status socioeconômico e de saúde reprodutiva têm sido características marcantes do perfil da mortalidade materna, sobretudo quando essas mortes são por aborto, induzido ou não11. Nesse caso, particularmente, aspectos relacionados às condições socioeconômicas e à qualidade dos serviços de atenção reprodutiva, bem como construções sociais (cultura, valores, religiosidade e sociais), além de leis no caso brasileiro, restritivas apresentam-se como determinantes complexos que contribuem para a difícil reversão dessa situação do tipo pendular.
Assim, de um lado testemunha-se um quadro de desigualdades que sobrepuja a vida das mulheres e, de outro, a violação de seus direitos humanos. O resultado é a não-concretização do exercício de direitos humanos, entre os quais os sexuais e reprodutivos de homens e mulheres, principalmente em casos de grupos populacionais muitas vezes negligenciados, como o feminino.
Nesse contexto, marcado por desigualdades/iniqüidades em que se reforçam disfunções sociais que comprometem a saúde sexual e reprodutiva, a qualidade e a vida das mulheres, o caminho a ser percorrido parece ser o da radical negação das respostas fragmentadas e ações isoladas, tendo em vista um projeto de sociedade mais justa e, obviamente, com melhores repercussões no âmbito da saúde e no efetivo exercício de direitos, entre eles o direito a uma vida com dignidade e cidadania12.
Internacionalmente, o conjunto de Conferências das Nações Unidas reafirmou direitos relacionados à vida e à saúde das mulheres, em especial no âmbito da sua autodeterminação sexual e reprodutiva. Notadamente, destaca-se a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, realizada em 1979, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994). Já na década de 90 do último século, ressaltam-se a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (1993), a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (1994) e a 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher (1995).
No plano nacional, a legislação vem incorporando esses direitos, na medida em que o Brasil é signatário dos documentos produzidos nessas Conferências. Numa dimensão mais global, podem ser citados a própria Constituição Federal, a lei específica voltada para o planejamento reprodutivo (Lei n.º 9.263/96) e, mais recentemente, quando se definiram os princípios e diretrizes, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher 13.
O Estado brasileiro, em conjunto com outros 190 países, adotou em 2000 a Declaração do Milênio, na qual se comprometeu, por meio de compromissos concretos e tangíveis, a cumprir metas que englobam meio-ambiente, desenvolvimento sustentável e social, além do respeito aos direitos das mulheres. Entre os objetivos do desenvolvimento do Milênio encontra-se o objetivo nº. 5: melhorar a saúde materna. Uma das metas, neste caso, é reduzir a mortalidade materna em três quartos, até 20157. Atingir essa meta não tem se configurado uma tarefa fácil tanto para o Governo quanto para a sociedade em geral.
Nos casos de mortes por aborto, o desafio é ainda maior, tendo em vista situações como a clandestinidade e a ilegalidade, além das transgressões aos direitos humanos das mulheres e a sua falta de poder e autodeterminação, em especial no que se refere à regulação e controle da fecundidade. Desse ponto de vista é imperioso sublinhar5:12:
A prevenção da gravidez não desejada, do abortamento e de suas conseqüências é de alta prioridade para profissionais de saúde. Às mulheres deve ser garantido o acesso: à informação e orientação humana e solidária; ao abortamento previsto em lei; à atenção de qualidade em complicações derivadas de abortos; e ao planejamento reprodutivo pós-abortamento para, inclusive, evitar abortamentos repetidos.
A morte materna, compreendida como uma tragédia no que se refere à equidade e justiça social, também é considerada como um risco recorrente e representa a ponta de um iceberg, quando se considera a morbidade materna e os sofrimentos crônicos dela advindos. Esse tipo de morte atinge mulheres em momentos primordiais de suas vidas, tanto do ponto de vista produtivo quanto reprodutivo; daí os importantes impactos sociais e em suas famílias 8.
Estudos apontam que, das mulheres que já abortaram, entre 9,5% e 29,2% não tinham filhos. A maior parte pareceu utilizar o aborto como forma de reduzir a prole, diante de uma gravidez não desejada, quando os métodos contraceptivos falharam ou não foram utilizados de forma adequada6.
Em relação ao perfil reprodutivo (Tabela 3), observou-se que a maioria dos óbitos maternos por aborto (40%) sucedeu-se em mulheres com história de duas a quatro gestações. No grupo menos atingido (27%), houve o registro de quatro gestações ou mais, ou seja, nas multigestas. Verificou-se, também, que um terço das mortes (33%) aconteceu em mulheres que vivenciavam sua primeira gestação. Considerando a análise individual dos estudos de caso, constatou-se que as mulheres deste grupo compreendiam as adolescentes e jovens, com idades entre 14 e 23 anos.
No Brasil, há pelo menos duas décadas observa-se aumento na proporção de gravidez entre adolescentes: de 20,8% em 1994, atingiu 23,4% em 20006. Esse fenômeno vem acompanhado de outro: o rejuvenescimento da fecundidade, particularmente entre as meninas negras, pobres, com menor escolaridade e que residem em áreas urbanas14. Esse fato acaba sendo acompanhando por novas práticas de abortos15.
O conhecimento acerca de métodos contraceptivos parece ser amplo entre as(os) adolescentes. No entanto, o mesmo não se pode afirmar quanto ao uso desses métodos, indicando uma lacuna importante, que expõe essas jovens a situações de vulnerabilidade a doenças sexualmente transmissíveis/DST, AIDS e à gravidez16, tornando, portanto, as meninas mais propensas a situações de risco reprodutivo.
Constatou-se ainda que, na maior parte dos casos, as mulheres não realizaram pré-natal (75%) (Tabela 3). Tal fato pode predizer desconhecimento acerca do estado gestacional ou gravidez indesejada. Em cinco casos houve registros de complicações na gestação em que ocorreu o óbito, cujos diagnósticos foram de gravidez ectópica, dois casos, e nos demais, anemia, hipertensão arterial sistêmica e hemorragia, respectivamente.
As recomendações internacionais são convergentes e imperiosas quando se trata de prevenção e assistência à gravidez não-desejada: indicam a alta prioridade por parte dos profissionais e sistemas de saúde, por meio da adoção de medidas como a acessibilidade aos métodos contraceptivos conhecidos, bem como o fornecimento de informações confiáveis e solidárias acerca dos riscos de procedimentos inadequados e a garantia de acesso a serviços de qualidade para tratamento de complicações decorrentes do aborto, mesmo que tenha sido realizado de forma clandestina e ilegal 8.
Com referência ao uso de métodos contraceptivos (Tabela 3), constatou-se que em 59% dos casos esta informação foi ignorada, comprometendo a análise desta variável. Dos casos em que foi possível extrair este dado, notou-se maior freqüência do registro do uso de anticoncepcional combinado hormonal oral (ACHO).
No Brasil, reconhecidamente, observa-se a preponderante eleição do uso de método hormonal, com destaque para a pílula anticoncepcional de maneira liberal, isto é, sem prescrição médica, além da esterilização feminina, uma forma definitiva para controle da fecundidade. Essa situação denota a precariedade de assistência no planejamento reprodutivo14 e o desrespeito ao direito conferido pela Lei 9.263/96, que assegura o planejamento familiar, ou melhor, planejamento reprodutivo ou planejamento de nascimentos, como um direito de cidadania.
Pesquisas com dados referentes aos anos de 1980 a 1985 demonstraram que de um total de 2.062 óbitos por causas relacionadas ao aborto provocado ou espontâneo 15% foram por aborto retido, espontâneo e induzido com indicação legal. Os demais, 85%, tiveram como causa abortos induzidos, sem indicação legalmente aceita, e abortos sem causa especificada. Assim, pode-se inferir sobre os riscos e a má qualidade dos procedimentos abortivos utilizados17. O CEPMM/PR conseguiu classificar o tipo de aborto (espontâneo ou provocado) em nove casos, tendo sido possível identificar que, entre estes, quatro foram intencionalmente provocados, presumivelmente em condições sanitárias inadequadas.
No que se refere à classificação das causas de óbito, houve predomínio (59%) de complicações por infecção, condição que com grande freqüência está associada à manipulação da cavidade uterina pelo uso de técnicas inadequadas ou inseguras. Normalmente são casos graves e devem ser tratados prontamente com uso de soluções parenterais e sangue, além de quimioterápicos de amplo espectro5. Assevera-se a gravidade dos casos estudados em relação ao quadro clínico em que essas mulheres foram admitidas, uma vez que a maioria (59%) foi a óbito em menos de 48 horas de internação (Tabela 4).
Em relação aos aspectos do tratamento dispensado às mulheres, destacou-se a baixa indicação de antibioticoterapia, de transfusão sanguínea e da indução farmacológica com ocitocina ou misoprostol (Tabela 4). Chamou igualmente a atenção a ausência da técnica de aspiração manual intra-uterina (AMIU) que, em comparação ao uso da curetagem, apresenta menores taxas de complicações ao abortamento em situação de risco, condições as quais se encontravam as mulheres do estudo5,8. Nesse sentido, pode-se inferir a precariedade da situação dos serviços e, em especial, dos profissionais de saúde na atenção qualificada à mulher em situação de abortamento.
Após análise detalhada dos óbitos nas câmaras técnicas, concluiu-se que 88% dos óbitos por aborto eram evitáveis. Em relação a esses óbitos, a responsabilidade foi atribuída a falhas no atendimento, que englobou atenção profissional (médica) e institucional (hospitalar). Esse conjunto recebeu do CEPMM/PR os seguintes pareceres: conduta inadequada, problemas e tratamento inadequado às emergências obstétricas, falta de medidas de educação em saúde no pré-natal em mulheres com risco reprodutivo, demora na resolução do aborto e diagnóstico tardio das complicações dele advindas. Reitera-se, nesse sentido, a precariedade do funcionamento dos serviços, somada à incapacidade para realização de diagnósticos e tratamentos eficazes nos casos de abortamento, favorecendo a evolução para o óbito.
Quanto às medidas de prevenção indicadas pelos comitês, observou-se uma maior indicação às questões relativas ao aprimoramento da assistência médico-hospitalar (22%), objetivando minimizar a ocorrência de casos semelhantes, bem como melhorar as condições dos serviços de saúde, seus equipamentos, insumos e equipe técnica de profissionais. No tocante à educação de saúde (17%), sugerem-se medidas educativas envolvendo as mulheres e sua rede social; além do reconhecimento da necessidade premente de redução das desigualdades sociais (17%), principalmente.
Tendo em vista a evitabilidade das mortes nesse estudo (88%), reforça-se que se trata, de fato, de um problema de saúde pública e de violação inequívoca dos direitos humanos, e da urgência em ações multissetoriais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo buscou descrever o perfil das mulheres que tiveram como causa de morte o aborto no estado do Paraná, no período entre 2003 a 2005, com destaque para aspectos sociodemográficos, reprodutivos e relacionados à assistência prestada.
Confirmou-se que mulheres jovens, casadas, com baixo status econômico, social e reprodutivo foram as mais atingidas. Nesta série de estudos de casos, verificou-se maior concentração de óbitos em mulheres com dois filhos ou mais, em relação às primigestas.
A constatação de que os abortos foram incompletos, seguidos de infecção, e a comprovada interrupção voluntária da gestação (por algumas mulheres) sinalizam a prática do aborto inseguro. O estudo mostra, igualmente, a gravidade dos casos no tocante ao quadro clínico das mulheres em situação de abortamento, bem como a inadequada assistência prestada.
O preenchimento inadequado dos prontuários médicos e o preenchimento de alguns dados como "ignorado" dificultaram a análise, podendo esse fato ter exercido influência nos resultados deste estudo.
Todavia, o dado relativo à evitabilidade expressou que mortes por abortos particularmente quando evitáveis, como constatado neste estudo pelas câmaras técnicas configuram-se como um grande problema de saúde pública e de direitos humanos, pois reforçam as conseqüências desastrosas das desigualdades sociais e de gênero, fatores relevantes para a manutenção de um quadro inexorável de violação de direitos humanos, entre os quais o direito à saúde e à vida.
Reitera-se que o atendimento em saúde seja realizado por profissionais capacitados e sensíveis às mazelas sociais que marcam a vida da população em geral e das mulheres, em particular, bem como que as instituições trabalhem em condições de proporcionar uma boa qualidade de assistência. Estes representam importantes pilares na inversão do quadro dramático que, há anos, vêm se mantendo.
Finalmente, recomenda-se a atuação firme dos comitês intra-hospitalares; que sejam atuantes e compostos de pessoas-chave do serviço, que procurem melhorar a qualidade da assistência prestada e que possam redirecionar as ações hospitalares a partir de uma avaliação dos óbitos maternos, bem como da assistência prestada, buscando a correção de possíveis falhas, de forma a coibir erros e a instruir os profissionais.
Urge que as demandas das mulheres em termos de vida e saúde sexual e reprodutiva sejam respeitadas. Caso contrário, esse grupo populacional, seus filhos, famílias e comunidades continuarão sob o infortúnio de riscos e de mortes desnecessárias e evitáveis mortes que zombam com a existência da vida: a gravidez e suas trajetórias reprodutivas.
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Recebido em 20/06/2008
Reapresentado em 25/9/2008
Aprovado em 2/10/2008