Volume 12, Número 1, Jan/Mar - 2008
PESQUISA
Modos de sentir e aprender entre mulheres em um projeto de educação popular em saúde
Ways of feel and learn among women in a popular education in health project
Modos de sentir y aprender entre mujeres en un proyecto de educación popular en salud
Elizabeth Teixeira
Doutora. Professora Adjunta IV da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Docente do curso de graduação em enfermagem e do Programa de Mestrado em Educação da UEPA. Líder do Grupo de Pesquisa Práticas Educativas em Saúde e Cuidado na Amazônia (PESCA). Diretora de Educação da ABEN-PA
RESUMO
Apresenta-se um recorte de pesquisa institucional de avaliação das repercussões do projeto de extensão no cotidiano de todas as participantes. Apóia-se nos conceitos de comunidade aprendente, saber cuidar, compartilhamento de saberes. O objeto constitui-se dos modos de aprender e sentir de mulheres participantes de um projeto de extensão em educação popular em saúde, desenvolvido entre 2004 e 2006 na ilha de Caratateua, Belém. Pesquisa qualitativa que entrevistou quinze mulheres em 2005 e utilizou o método do discurso do sujeito coletivo. Os discursos coletivos revelam intensa associação entre o cognitivo e o afetivo; indicam que as práticas educativas pautadas nos círculos de diálogos promovem repercussões no cotidiano de vida das participantes e apontam mudanças de comportamentos cuidativos no saber cuidar. Conclui-se que o projeto favoreceu não só travessias de saberes, mas uma (com) vivência de afetos, que definiu a permanência no projeto e marcou os modos de sentir e aprender para produzir saúde.
Palavras-chave: Atenção à Saúde. Educação em Saúde. Saúde da Mulher. Educação em Enfermagem.
ABSTRACT
Comes a cutting of institutional research of evaluation of the repercussions of the extension project in the daily of all the participants. It leans on the concepts of community aprendente, to know to take care, sharing of you know. The object is constituted of the manners of to learn and to feel of participant women of an extension project in popular education in health, developed between 2004 and 2006 in the island of Caratateua, Belém. He/she researches qualitative that interviewed fifteen women in 2005 and it used the method of the collective subject's speech. The collective speeches reveal intense association between the cognitive and the affectionate; they indicate that the ruled educational practices in the circles of dialogues promote repercussions in the daily of the participants' life and they point changes of behaviors cares in knowing to take care. It is ended that the project favored not only crossings of you know, but a (with) existence of affections, that defined the permanence in the project and it marked the manners of to feel and to learn to produce health.
Keywords: Health Care (Public Health). Health Education. Women's Health. Education, Nursing.
RESUMEN
Se presenta un recorte de investigación institucional de evaluación de las repercusiones del proyecto de extensión en el cotidiano de todos los participantes. Se apoya en los conceptos de la comunidad aprendente, saber cuidar, compartimiento de saber. El objeto constituyese de las maneras de aprender y sentir de mujeres participantes de un proyecto de extensión en educación popular en salud, desarrollado entre 2004 y 2006 en la isla de Caratateua, Belém - Brasil. Investigación cualitativa que entrevistó quince mujeres en 2005 y utilizó el método del discurso del ciudadano colectivo. Los discursos colectivos divulgan la intensa asociación entre el cognitivo y el afectivo; indican que las prácticas educativas pautadas en los círculos de diálogos promueven repercusiones en el cotidiano de vida de las participantes y apuntan cambios de comportamientos cuidativos en saber cuidar. Se concluye que el proyecto favoreció no solamente travesías de saber, pero un (con) vivir de afectos, que definió la permanencia en el proyecto y marcó las maneras de sentir y de aprender para producir salud.
Palabras clave: Atención a la Salud. Educación en Salud. Salud de la Mujer. Educación en Enfermería.
INTRODUÇÃO
O presente texto é parte dos resultados de uma pesquisa de avaliação de uma prática de educação popular em saúde configurada como projeto de extensão denominado Projeto Quartas Saudáveis (PQS), realizada por uma equipe de professores e alunos da Universidade do Estado do Pará (UEPA).
O projeto foi iniciado em caráter voluntário em 2003 por uma docente do Curso de Graduação em Enfermagem da UEPA, duas acadêmicas de enfermagem e um de pedagogia para atender a demanda de uma Organização Não Governamental, o Instituto Saber Ser Amazônia Ribeirinha (ISSAR), localizado na ilha de Caratateua, Belém, também conhecida como ilha de Outeiro, no bairro de Itaiteua. A casa-sede onde o projeto foi desenvolvido localiza-se em uma área cercada de árvores frutíferas cortada por um braço do rio Maguari.
A ilha de Outeiro é uma das 39 ilhas do arquipélago do Guajará. As ilhas do entorno de Belém, com tradição centenária no abastecimento agroextrativo da cidade, representam também um espaço imaginário do lúdico urbano, do lazer e do turismo. O distrito de Outeiro é o balneário mais próximo de Belém. Situa-se a 18 Km da capital. Suas praias, de água doce, são procuradas nos finais de semana e feriados prolongados. Para chegar, basta atravessar a Ponte Rodoviária Enéas Martins. A população está diretamente ligada às águas e ao resto de mata que há na ilha1.
À primeira vista, Caratateua apresenta um perfil urbano por possuir, mesmo que precariamente, todos os serviços dignos de uma área deste porte, tais como: energia elétrica, transporte coletivo regular, pavimentação das ruas principais, comércio diversificado etc. Por outro lado, observando o dia-a-dia de seus moradores, nota-se uma contradição ao perfil comentado anteriormente, ou seja, encontram-se tarefas de uma área rural, tais como: carroceiro, extração de açaí, carvoeiro, vaqueiro, caseiro e pesca, nos remetendo ao perfil interiorano do Estado do Pará.
A partir de 2004 o projeto foi institucionalizado como de extensão e a equipe foi ampliada, desenvolvendo-se entre os meses de abril e novembro, com encontros educativos às quartas-feiras à tarde. O projeto priorizou os saberes sobre o cuidar da saúde e do ambiente e valorizou estratégias dialógicas, participativas e discussões em grupo. Os temas tratados foram definidos no início de cada ano e organizados de forma coletiva. A equipe elaborou apostilas sobre cada tema bem como materiais didáticos para subsidiar as apresentações.
A pesquisa institucional realizada no período de 2005 e 2006 teve como objetivo geral avaliar as contribuições efetivas das ações do PQS para a melhoria da qualidade de vida de mulheres, crianças e adolescentes e analisar as mudanças significativas de tais ações no cotidiano2. Este artigo traz os resultados das respostas das mulheres.
As pesquisas de avaliação de práticas educativas populares "representam intervenções sobre a realidade do conhecimento de determinada situação na qual se fazem presentes os sujeitos e seus projetos, em dinâmico movimento"1:280. Os resultados de tais pesquisas podem evidenciar novos campos para projetos, apontar novas estratégias metodológicas para as práticas de educação popular em saúde e contribuir na constituição de sujeitos sociais.
No âmbito da Educação Popular, ressalta-se que a dimensão criativa e produtora de conhecimentos sobre as práticas de educação popular empreendidas em inúmeros projetos de extensão/ensino/ intervenção tem sido negligenciada pelas universidades, que pouco valorizam, investigam e/ou avaliam tais práticas2.
No âmbito dos projetos de extensão da UEPA, não há estudos que apontem impactos dos mesmos sobre a vida das pessoas envolvidas. Entretanto, neste novo contexto que se vislumbra para a universidade do século XXI, a extensão vai ter um significado muito especial, por representar um canal direto de diálogo com a sociedade contemporânea, podendo contribuir diretamente na "coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão e a degradação ambiental, na defesa da diversidade cultural"3:73.
No PQS, o primeiro estudo diagnóstico foi realizado em setembro de 2004, com um caráter exploratório. Na ocasião, priorizou-se investigar as práticas de enfrentamento dos problemas de saúde entre as mulheres e as doenças mais comuns, bem como os problemas que mais vêm afetando a qualidade de vida individual-coletiva das participantes.
Constatou-se que as mulheres são as cuidadoras da saúde da família e que, ao se envolverem diretamente nesse cuidar, utilizam diferentes saberes (populares e científicos) adquiridos no contexto em que vivem, incluindo aí o Programa Quartas Saudáveis. Os problemas de saúde mais comuns referem-se às doenças infecciosas e parasitárias, crônicas, e doenças comuns da infância, com ênfase àquelas consideradas como específicas da mulher, que muito as preocupam.
Os educandos da Educação Popular não são tábulas rasas, e a Educação Popular não é a única agência social com a qual interagem, mas é uma das agências que contribui para mudanças significativas em suas vidas2. Por isso, analisar não só as ações, mas também as repercussões de projetos em educação popular, apresentando como os participantes expressam tais mudanças, com ênfase nos saberes, nos ajuda a pensar as práticas populares e extensivas de forma articulada e mais ampla, trazendo a questão das repercussões das práticas educativas em saúde para o debate dos processos avaliativos. Nesse sentido, o presente texto tem por objetivo discutir os modos de aprender e sentir do grupo de mulheres participantes da pesquisa de avaliação a partir do envolvimento e participação no Programa Quartas Saudáveis.
TRILHAS METODOLÓGICAS
A pesquisa é qualitativa e priorizou o processo de sentir e aprender sob o ponto de vista das participantes. Também se caracterizou como de avaliação, uma vez que buscou as repercussões do projeto no cotidiano das mulheres.
Os cenários foram a ONG, ISSAR, localizada no distrito de Itaiteua, ilha de Caratateua, e domicílios das participantes. Foram sujeitos 15 mulheres cadastradas no PQS desde 2003. As informações foram produzidas por meio de entrevista semiestruturada entre agosto e dezembro de 2005, gravadas e transcritas posteriormente.
O projeto pautou-se na Resolução 196/96 e obteve parecer positivo do CEP da UEPA. Utilizou-se uma codificação para preservar as identidades das informantes. Para a análise nos apoiamos na análise do discurso do sujeito coletivo4. Após intensas leituras, identificam-se temas geradores de significado (TGS). A seguir destacam-se para cada TGS as figuras metodológicas: idéias centrais (IC) e expressões-chave dos discursos dos sujeitos coletivos (DSC).
MODOS DE SENTIR E APRENDER ENTRE AS MULHERES DA ILHA
TGS: COMO FICARAM SABENDO DO PROGRAMA QUARTAS SAUDÁVEIS
IC: 1ª: Ela não par ticipava, me falou e eu fui; 2ª: Ela participava, me falou e eu fui; 3ª: Ela me levou lá; 4ª: Eu disse que não, mas um dia eu fui.
DSC: A minha vizinha, ela disse que tava freqüentando um programa, o Quartas Saudáveis, que era para eu ir conhecer, eu disse que não, mas depois resolvi ir. Ela participava e, quando começou o ano de 2004, ela me fez o convite. Toda vez eu dizia que não ia dar. Ela me falou, lá tem um programa da UEPA, aí eu falei: bom, eu vou ver. Aí passou um tempo e eu vim. Outra pessoa falou com ela que tinha uma pessoa que dava aula, de ensinar a fazer remédio caseiro, alguma coisa assim.
Os discursos revelam que as mulheres tecem redes de contato entre elas e vão (juntas com outras mulheres ou sozinhas) em busca de novos fios para tecer seu viver cotidiano. Duvidam que será proveitoso, no início, mas depois arriscam conhecer para ver do que se trata realmente. A resistência à chamada é logo depois substituída pela adesão.
TGS: PORQUE QUISERAM PARTICIPAR E O QUE FOI DECISIVO PARA CONTINUAREM NO PROGRAMA ATÉ HOJE
IC: 1ª: Porque me senti bem e gosto; 2ª: Porque aprendi coisas; 3ª: Porque conheci outras mulheres; 4ª: Porque eu não fazia nada; 5ª: Porque lá é uma terapia.
DSC: Porque eu me senti muito bem, mais leve, aprendi muita coisa, muita coisa mesmo. As minhas filhas gostam, eu gosto. Tem acolhimento, bem-estar, amizade com vocês. Achei interessante aprender as coisas, eu gosto da professora, de como ela dá as palestras. Conhece outras pessoas que sabem dar as informações certas pra gente, porque eu me divirto, eu esqueço dos meus problemas, é uma terapia lá dentro, a gente ficou amiga das mulheres, todas essas apostilas, o grupo, as palestras são legais, tratam a gente bem. Aprendi a viver como mulher. Eu não fazia nada, só ficava deitada em casa. Lá é uma terapia, muito legal. Porque todo mundo brinca e aprende. Vai brincando e aprendendo muita coisa. Na rua aprende uma coisa e tendo outro conhecimento a gente aprende melhor.
Percebe-se que o trabalho em/no/com o grupo viabiliza não só travessias de saberes, mas também redes de afeto e vínculos. Podemos evidenciar uma verdadeira convivência em comunidade entre as mulheres e a equipe do programa e identificamos um entendimento de um tipo muito especial entre
Nós. O tipo de entendimento em que a comunidade se pauta é o ponto de partida de toda união, "é um sentimento recíproco e vinculante [...], é graças a esse entendimento que na comunidade as pessoas permanecem essencialmente unidas a despeito de todos os fatores que as separam"5:15-6. Parece que estamos em um "círculo aconchegante", pois neste círculo os membros não precisam provar nada e podem esperar simpatia e ajuda.
Nos dias atuais, em que as certezas se esvaem, tudo se move e se desloca, em que nada é certo, procuramos por grupos para pertencer, para nos apoiar. As "comunidades-cabide" emergem, nesse contexto, pois, com as vulnerabilidades das identidades individuais, busca-se "pendurar seus medos e ansiedades individualmente experimentados e, depois disso, realizar os ritos de exorcismo em companhia de outros indivíduos também assustados e ansiosos"5:21.
O que se destaca é que entre as mulheres e a equipe se estabelecem relações intersubjetivas, pautadas num acordo mútuo entre o Eu e o Outro, uma relação transitiva, que partilha saberes e afetos, que promove laços e vínculos. Nessas relações manifestam-se expressões, confissões e ressignificações das experiências da vida cotidiana. Infelizmente tais relações são pouco destacadas nas práticas educativas de saúde; os profissionais ainda se preocupam mais em dar/oferecer orientações/informações para promover mudanças de atitudes e acabam desvalorizando/desconsiderando tais aspectos. A nosso ver, há que se considerar que o eu se constrói em colaboração, precisa do outro para ser autor de si mesmo e não existe fora do ambiente social.
TGS: QUAL O SIGNIFICADO DAS AÇÕES DO PROGRAMA PARA O SEU COTIDIANO
IC: 1ª: Aprendizado para cuidar; 2ª: Aprendizado para a vida; 3ª: Felicidade; 4ª: Relações e Trocas; 5ª: Descoberta.
DSC: Eu aprendi a me cuidar bastante, coisas que eu não sabia, hoje eu sei, o que eu aprendo aqui eu falo tudo pra ele (marido): saúde, lazer, vida, conhecimento, troca de experiências. Eu fiquei mais feliz. Quando passo por problemas, penso logo nas apostilas, vou logo pegar elas e ler. Cada palavra, cada gesto, cada atitude, cada palestrante faz a gente descobrir coisas novas dentro da gente, que a gente não conhecia.
Destaca-se o permanente inacabamento do ser, que se descobre aprendente e fica feliz por isso. Nós, juntos, no grupo, estamos intertrocando saberes e afetos, sensibilidades e significados, sensações e sociabilidades. Mutuamente nos ensinamos e aprendemos. Há sempre presente nas falas uma dimensão de ser ensinante, que se destaca como condição para uma outra de ser aprendente. E é com diálogo que esse continuum se dá plenamente. Reforça-se a idéia de "círculos de diálogos" a cada encontro, para pensar o saber enquanto fluido e fluxo de um movimento circular e dialógico; [...] "estamos destinados a aprender a saber como uma atividade perene ao longo da vida, dentro e fora das estruturas e dos cenários da educação formal"6:45. Nesse sentido, o saber não tem lugar fixo, ator principal e/ou língua oficial, mas sim é um entre - lugar, entre e com todos, e que se traduz entre e com múltiplos signos e símbolos.
Nesse percurso aprendente com o outro coletivo, entre nós no PQS, emergiu o amor, o afeto. É relevante escrever sobre o amor. No ofício de educador (a) popular experienciam-se sentimentos mútuos, emoções e acolhimento. Amamos e nos amamos reciprocamente em cada encontro, em cada Quarta Saudável. Esse "amor coletivo" nos envolve com e entre saberes, prazeres, dizeres, interações significativas que geram confiança e produzem vínculos.[...] "A confiança, nesse sentido, é fundamental para um casulo protetor que monta guarda em torno do eu em suas relações com a realidade cotidiana"6:127. Para Humberto Maturana, a relação fundadora da experiência interativa é o amor. É preciso sentir uma troca amorosa para, efetivamente, suportar conviver. "Viver à margem do amor não é ruim, é insuportável"6:131.
TGS: O QUE FAVORECE O APRENDIZADO DOS ASSUNTOS TRATADOS E QUANDO/COMO MAIS APRENDEM
IC: 1ª: Ensinam bem explicado; 2ª: Tem apostilas; 3ª: Tem dinâmicas; 4ª: Tem perguntas e depoimentos; 5ª: Tem acolhimento e calor humano; 6ª: O conjunto todo.
DSC: Ensinam bem explicado, é totalmente diferente. As explicações, as dinâmicas, brincadeiras, porque elas usam a linguagem de gente. O que facilita são as perguntas, é legal essa troca de perguntas. Tem apostilas, o conjunto faz a gente pensar mais rápido, o pessoal explicando, a gente entende melhor, trabalhar em grupo é muito bom, as figuras mostrando a realidade, depoimentos, sempre há uma resposta clara. Aquele calor humano, a acolhida que vocês têm com a gente faz a gente se sentir bem, a gente pergunta até entender, porque a gente não tem que sair de lá com dúvida.
Manifesta-se nos discursos das mulheres o círculo de cultura que permite o diálogo eu-tu, a existência no grupo e o aprender com/entre nós. Com efeito, a existência se dá quando o que existe está situado dentro, entre e em algum tipo de relacionamento com. A Teia da Existência se constitui "nas, entre as e através das relações de troca que a cada momento estabelecem, transformam e recriam tudo o que envolve a realidade da vida"6:21. Podemos afirmar que existimos em função das trocas que produzimos em cada encontro educativo, em cada celebração, em cada entre vivido.
Para aprender um saber, o indivíduo precisa fazer parte, estar entre, com e em uma comunidade-aprendente; "a unidade da aprendizagem não é cada pessoa tomada individualmente. Ela é cada equipe, cada grupo-dialogante no momento em que algum conhecimento é vivido como uma experiência ativa de ensino-aprendizagem"6:100. Essa compreensão está presente nos discursos das mulheres, pois há um sentimento de aprender mais solidário e menos solitário nos depoimentos. O outro/ outra influi, colabora e participa de aprender, o verdadeiro "outro(a) coletivo", interativo, social e cultural. Elas vão assim aprendendo conhecimentos, ampliando compreensões e alargando sentimentos. Isso está ocorrendo entre Nós.
TGS: O QUE MUDOU NA SUA VIDA A PARTIR DO INGRESSO NO PROGRAMA
IC: 1ª: Meu modo de ser e viver; 2ª: O modo de cuidar da casa; 3ª: O modo de cuidar do corpo e da alimentação; 4ª: O modo de cuidar dos filhos e da família.
DSC:: Tá mudando o meu jeito de ser, o cuidado melhorou, a gente se ama mais, melhorou a parte mental. Eu aprendi a cuidar melhor da minha casa e da minha família, cuidar dos meus filhos, da casa e da saúde, eu fiquei mais feliz. Muitas coisas que eu não sabia, aí eu penso, passo para outros aprenderem, eu me interessei mais e voltei a estudar porque eu continuo aprendendo, sempre que a gente vem pra cá, a gente sai com alguma novidade: no jeito da alimentação, como cuidar do lixo e o jeito de lidar com os adolescentes. Eu era muito acanhada, e hoje em dia eu já não tenho muita vergonha de ir lá na frente, porque às vezes tem que ir falar. Eu mudei até o modo de sentar, andar, de me abaixar, comer uma comida saudável.
Revela-se um saber cuidar holístico (bio-psico-social e ambiental) para o viver humano. É importante mencionar que o cuidar cotidiano de saúde tem que ser pensado como complexo, por se constituir de múltiplas, complementares e contraditórias dimensões7. Percebe-se um aprendizado no grupo sobre os saberes do cuidar em suas múltiplas manifestações (física, mental, social); em suas múltiplas extensões (cuidar do eu, do outro, da família, da casa e do lugar). O saber cuidar é um imperativo do humano, mas um dos traços da contemporaneidade é exatamente um descuidado para/com/entre o humano e o meio, o que requer ação-reflexão para nova-ação8. Aqui cabe convidar/ convocar todos Nós para darmos nossa contribuição. O Programa Quartas Saudáveis está fazendo a sua parte.
TGS: O QUE REFEREM SOBRE A FREQUÊNCIA SEMANAL AO PROGRAMA
IC: Não dá pra faltar.
DSC: Às vezes eu digo que não vou e elas choram muito para vir. Então eu também venho mais por causas delas, e porque eu gosto [...] eu não gosto de perder o ISSAR. Aqui a gente só falta quando não dá para vir [...] tudo é diferente, a gente aprende, a gente diz, a gente ouve, conversa, ri, chora. O ISSAR é um remédio. Minhas quartas são sagradas, não marco nada para esse dia, para eu poder vir. Às vezes eu chego da rua, em cima da hora, às vezes eu nem tomo banho, saio correndo, vou do jeito que eu tiver, mas vou assim mesmo. E aí, quem quer sair de lá? Ninguém.
Pode-se constatar que há um compromisso com o PQS, o nosso local. Vale destacar que uma das conseqüências da nova era global é o aumento do valor do local, do lugar. Tentando explicar o fenômeno, indica-se que o sentido de lugar se baseia na necessidade de pertencer não a uma sociedade em abstrato, mas a algum lugar em particular; satisfazendo essa necessidade, as pessoas desenvolvem o compromisso e a lealdade, o que parece estar presente nos discursos das mulheres.
Cabe aqui refletir que muitas das necessidades vividas pelos indivíduos ou comunidades não se expressam, ainda, em demandas às unidades de saúde, e sim mais em ações de/em redes de apoio ou redes sociais de ajuda, como refere Valla9. Com esse entendimento, o PQS emerge como um dispositivo social de apoio, o que favorece o compromisso e a lealdade das participantes, bem como o sentido de pertencimento.
TGS: SE REPASSAM E PARA QUEM REPASSAM O QUE APRENDEM
IC: 1ª: Repassam no/entre o círculo familiar e social; 2ª: Repassam para alguém que repassa para outras pessoas; 3ª: Repassam porque acham que têm que dividir amizade e conhecimento.
DSC: Repasso para as vizinhas, para os meus parentes, para os meus filhos, para o meu marido. Sim, para o meu filho, ele é professor, e quando tem muita apostila, ela me dá uma e eu dou para ele e ele adora. Porque lá no interior o pessoal não entende, e ele faz igual a vocês, explica para elas que não sabem. Eu acho assim, o que é bom pra mim eu quero que seja pra ela, pra outra pessoa também [...] eu quero passar também essa coisa boa pras minhas amigas, colegas. Eu tenho que dividir essa amizade, esse conhecimento com as outras pessoas.
Observa-se o compartilhamento de saberes entre as participantes, outras mulheres e membros da família. Sobre esse aspecto afirma-se que quando uma pessoa é tornada consciente, ela compar tilha o seu saber e coloca o conhecimento a serviço dos outros, da vida, enfim, do mundo humano6. Essa partilha representa a experiência mútua vivida e a confiança que nela/dela emerge. Eu só compartilho aquilo que acredito e que faz sentido, que é vivido. Compartilhamos da idéia que não se educa para, mas se educa em e entre: o cuidar, o viver, o conviver, o comunicar, o desenvolvimento humano. Nessa interessante poética do encontro, realizamos uma efetiva/afetiva comunicação entre as mulheres e uma afetiva/efetiva educação em saúde, mais humana e reencantada, produzida e produzindo felicidades.
Os discursos do sujeito coletivo nos fazem acreditar que o PQS é um espaço dinamizador das vivências e experiências de vida das mulheres e contribui significativamente para a saúde física e mental das participantes. Consideramos importante destacar que as práticas educativas em grupo são formas de trabalho vivo em ato10, e essa perspectiva pode ser uma das razões para que os profissionais de enfermagem optem mais pelo trabalho grupal como alternativa para atender e cuidar, principalmente no âmbito da atenção básica. Os grupos como estratégias para o trabalho educativo na enfermagem têm sido discutidos e emergem na literatura da área com mais força nos últimos anos 11;12;13.
Os discursos também nos convidam a repensar a associação entre o cognitivo e o emocional. Na tentativa de fundamentar essa questão, é interessante pensar a gênese filosófica da discussão do papel da efetividade na constituição da subjetividade humana e da relação entre razão e emoção. Essa relação é marcada historicamente, na filosofia, pela noção de dissociação. Na área da psicologia emerge a noção de divisão, e, finalmente, no campo educacional, encontra-se a noção de dualismo.
Essas três crenças marcam profundamente os fazeres/dizeres nessas áreas, e, assim, acredita-se que os sentimentos são coisas do coração, não levam ao conhecimento, podem provocar atitudes irracionais, produzem fragilidades e são coisas da privacidade inata de cada um. Tal cisão será mantida intocável até o início do século XX14.
As luzes da indissociação emergem na psicologia contemporânea, e, "neste sentido, postula-se que cognição e afetividade são instâncias constituídas culturalmente"14:618. A articulação dialética ganha força e vamos assistindo à superação das rupturas clássicas e à ascensão de uma racionalização apaixonada, portanto, afetiva.
Destaca-se que a história dessa dissociação é marcada por pensadores como Descartes (penso, logo existo) e Kant (as paixões são as enfermidades da alma). Igualmente, sabe-se que novos caminhos e compreensões sobre essa cisão que parecia quase incontornável emergem no século passado14.
A defesa das relações/conexões/indissociação tem muitas vozes, como a de Jean Piaget (as pessoas, ao mesmo tempo em que são objeto de conhecimento, são também de afeto), Lev Vygotsky (o significado e o sentido coexistem), Henri Wallon (a razão nasce da emoção e vive da sua morte)14.
Além dessas formulações da/na psicologia, surgem estudos da/na neurologia, como os de Lê Doux (a influência das emoções sobre a razão é maior do que a da razão sobre as emoções), Greenberg (os esquemas emocionais), Howard Gardner (as inteligências múltiplas), Daniel Goleman (a inteligência emocional) e os de Nico Fridja (os sentimentos estão apoiados pelas crenças, e as crenças, pelos sentimentos)14.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os discursos coletivos analisados anunciam que nos atos educativos não se pode dicotomizar o cognitivo do afetivo, o que insere Paulo Freire no debate aqui travado. E, por acreditar nessa assertiva, buscamos revisitar os modos de aprender entre nós (mulheres e equipe) e refletir intensamente sobre eles. Nesse olhar atento e sensível, encontramos tudo que precisávamos para reforçar nossa hipótese de partida: há uma conexão direta entre o que se ensina, o que se aprende, o que se sente, o que se pensa, o que se diz e o que se troca entre nós. Assim, é preciso tecer redes de saberes e afeto se se quiser que as ações educativas contribuam com a qualidade de vida das comunidades e promovam repercussões de qualidade em suas vidas.
Conclui-se que as repercussões do PQS tanto são cognitivas como afetivas e a pesquisa de avaliação é um instrumento tanto de informação como de formação, em que todos aprendem a avaliar o próprio fazer (autoavaliação) e o saber compartilhado no processo com o outro (avaliação formativa). Esse tipo de pesquisa não deve ser pontual, mas permanente e plural (triangulação de dados de informantes, de instrumentos e de técnicas, etc.).
Sugere-se que a prática extensiva na universidade seja palco de travessias de saberes e redes de afeto, iluminada por leituras freireanas e fortalecida com as bases da educação popular15 no seu sentido mais emancipatório para atingir um conhecimento prudente para uma vida decente.
Propõe-se, assim, que as ações educativas como parte do processo de promoção da saúde e crescimento da autonomia dos sujeitos tornem-se mais afirmativas. Da aproximação do setor saúde com o movimento da educação popular na década de 1970, resultou o movimento da educação popular em saúde, que se anuncia como um indicador freireano que pode ressignificar tanto as práticas de promoção da saúde como aquelas de caráter educativo.
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Recebido em 14/06/2007
Reapresentado em 24/08/2007
Aprovado em 19/09/2007