Volume 11, Número 4, Out/Dez - 2007
PESQUISA
Representações sociais sobre cirrose hepática alcoólica elaboradas por seus portadores1
Social representations on alcoholic liver cirrhosis elaborated by its carriers
Representaciones sociales sobre cirrosis hepática alcohólica elaboradas por sus portadores
Edilma Gomes RochaI; Maria Lúcia Duarte PereiraII
IMestranda em Cuidados Clínicos em Saúde, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza-CE. E-mail: edilma.rocha@yahoo.com.br;
IIDoutora em Enfermagem, docente da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza-CE.
RESUMO
O abuso do álcool pode levar à cirrose hepática alcoólica, problema de saúde pública e de alto custo social. Objetivou-se apreender as representações sobre cirrose hepática alcoólica elaboradas por seus portadores. Metodologia: estudo descritivo, exploratório, com abordagem qualitativa desenvolvido em duas instituições públicas no município de Fortaleza-CE. Participaram quinze sujeitos com diagnóstico de cirrose hepática alcoólica. Aplicou-se entrevista semi-estruturada, e foi utilizada técnica de análise de conteúdo temática. Resultados: Emergiram cinco categorias, porém apresentaremos três: Concepções sobre cirrose, Percepções sobre cirrose e Conseqüências da cirrose, que evidenciaram a cirrose representada como doença que destrói e causa morte. A vivência é permeada por dificuldades, principalmente sócio-econômicas e emocionais. Conclusões: Faz-se necessária uma mudança de atitude do profissional de saúde, para humanizar o cuidado e assim minimizar o sofrimento destes pacientes.
Palavras-chave: Alcoolismo. Cirrose Hepática. Doença Crônica.
ABSTRACT
The abuse of the alcohol can take the alcoholic hepatic cirrhosis, problem of public health and high social cost. It was objectified to apprehend the representations on alcoholic hepatic cirrhosis elaborated by its carriers. Methodology: descriptive, exploratory study, with qualitative approach developed in two public institutions in the city of Fortaleza-CE (Brazil). Fifteen citizens with diagnosis of alcoholic hepatic cirrhosis had participated. It was applied a half structured interview, and used the technique of thematic analysis of content. Results: Five categories had emerged, however we will show three of them: Conceptions on cirrhosis, Perceptions on cirrhosis, and Consequences of the cirrhosis, which showed the cirrhosis represented as illness that destroys, and causes death. Living had been observed, permeated by difficulties, mainly, emotional social and economics. Conclusions: Consequently, the need arises for a change of attitude by the health professional to humanize the care, and thereby minimize the suffering of these patients.
Keywords: Alcoholism. Liver Cirrhosis. Chronic Illness.
RESUMEN
El abuso del alcohol puede llevar a cirrosis hepática alcohólica, problema de salud pública y de alto costo social. Intentó aprehender las representaciones sobre cirrosis hepática alcohólica elaboradas por sus portadores. Metodología: estudio descriptivo, exploratorio, con abordaje cualitativo desarrollado en dos instituciones públicas en el municipio de Fortaleza-CE (Brasil). Participaron quince sujetos con diagnóstico de cirrosis hepática alcohólica. Aplicó entrevista semiestructurada y fue utilizada la técnica de análisis de contenido temático. Resultados: Se construyeron cinco categorías, pero presentaremos tres: Concepciones sobre cirrosis, Percepciones sobre cirrosis y Consecuencias de la cirrosis, que evidenciaron la cirrosis representada como una enfermedad que destruye y causa la muerte. La vivencia es traspasada por dificultades, sobre todo, socioeconómicas y emocionales. Conclusiones: Es necesario un cambio de actitud del profesional de la salud para humanizar el cuidado y minimizar el sufrimiento de estos pacientes.
Palabras clave: Alcoholismo. Cirrosis Hepática. Enfermedad Crónica.
INTRODUÇÃO
O álcool possui uma representação cultural antiga e, na contemporaneidade, insere-se em agravos que repercutem em várias dimensões. Entre estas sobressaem as do contexto social, diante de condutas geradoras de violência e acidentes que posteriormente se refletem na saúde pública e na economia do país.
No primeiro levantamento domiciliar sobre o uso de drogas no Brasil, realizado em 1999, pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em conjunto com a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), identificaram-se 11,2% de adicção da população, tendo como faixa etária mais representativa em jovens e adultos jovens (18 a 24 anos). Tais dados são superiores aos encontrados em países como Estados Unidos e França1.
Em 2000, 4% de toda a morbidade e mortalidade ocorrida no mundo foi em decorrência de problemas de saúde relacionados ao consumo de álcool, o que permitiu indicar uma tendência ascendente, uma vez que o valor estimado em 1990 era de 3,5%2.
Atualmente, o consumo de álcool se configura como o mais grave problema de saúde pública do Brasil, pois se apresenta como o fator determinante de mais de 10% de toda morbidade e mortalidade ocorrida no país2.
Diante desta realidade, é importante que cada país realize pesquisas e estratégias destinadas a identificar e prevenir, entre outras medidas, os efeitos deletérios referentes ao uso e/ou abuso de bebidas alcoólicas, sobretudo pela expansão dos índices de morbidade e mortalidade.
Como evidenciado na literatura, o uso contínuo de bebidas alcoólicas representa o principal processo na disfunção e propagação de patologias que evoluem para sérios danos hepáticos como esteatose hepática e cirrose3,4.
A cirrose hepática alcoólica é tão grave que é considerada a segunda causa indicativa para o transplante hepático, sendo superada apenas pela hepatite C. No entanto, há apenas vinte anos o portador dessa doença foi beneficiado por esse tratamento, aumentando assim a sobrevida5.
Essa doença constitui um problema mundial e de saúde pública, principalmente nos países em desenvolvimento, pelo elevado custo social. A despeito disso, na prática, observa-se profunda lacuna entre o incitado marketing das propagandas sobre o uso do álcool e a ausência do efetivo cumprimento das leis existentes.
No Brasil, acrescentam-se ainda as subnotificações dos dados epidemiológicos que revelam índices de cirrose gerados em sua maioria pelas análises de atestados de óbitos. Esta afirmação pode ser constatada pela exemplificação do período entre 1991 e 2001, no qual a taxa de mortalidade por cirrose hepática permaneceu estacionada em 7,5/100.000 habitantes, diferente de outros países como os Estados Unidos, onde a cirrose representa a oitava causa de morte em adultos, e a Itália, cuja taxa de mortalidade é de 20,5/100.000 habitantes6.
Tal fato inviabiliza o próprio indicador epidemiológico em virtude da geração de subenumeração dos casos e, conseqüentemente, inativação deste7. Referida inativação pode ter ocorrido a partir da observação virtual da taxa de mortalidade específica de cirrose, não mais contemplada, desde 2003, nos dados gerados pelos Indicadores de Dados Básicos (IDB) 8.
Caracterizada como uma doença crônica degenerativa, a cirrose está cada vez mais presente em nosso meio. Possui evolução insidiosa, com quadro clínico diversificado, variando de inespecífica a assintomática. Esta situação dificulta o diagnóstico precoce e contribui de forma representativa para o crescente número de internações hospitalares9.
Quando instalada, esta patologia culmina no aumento da complexidade do cuidado, no estado crônico e em complicações graves, que requerem avaliação contínua do indivíduo acometido e das pessoas ao redor, pois são presentes as condições de urgência e emergência, como as dificuldades relacionadas ao tratamento.
Empiricamente a cirrose parece ter um assustador valor simbólico na sociedade, sobretudo por estar relacionada com alteração negativa da imagem corporal e com a morte evidente. Deste modo, o indivíduo requer cuidados imediatos e de acolhimento nos diversos espaços de cuidado.
Feito o diagnóstico, é possível estimar o prognóstico da cirrose, tanto pela história natural da doença como por medidas quantitativas, representadas por meio de "escores (Classificação de Child-Turcotte-Pugh) e modelos matemáticos (MEDIS)" 6.
No entanto, estimado o prognóstico para a cirrose alcoólica, algumas atitudes como a determinação e a vontade do indivíduo, em relação à adesão à abstinência ao uso de bebidas alcoólicas, são decisivas, pois, caso não siga as recomendações, há piora do prognóstico e conseqüentemente óbito.
Em face da situação, é preciso reabilitar o paciente e a família a esse novo modo de viver no mundo. Esta, porém, não é tarefa fácil e requer disponibilidade, compromisso social dos trabalhadores de saúde e principalmente daqueles que representam a unidade básica da saúde, ou seja, a família.
É preciso, também, trabalhar para mudar esta realidade, estimulada por justificada motivação. A motivação que impulsiona a desenvolver este estudo advém da vivência com um familiar próximo acometido pela patologia e da prática acadêmica, como docente e atualmente como aluna do mestrado, ao elaborar a dissertação exigida para a conclusão deste curso.
Inicialmente, durante o estágio curricular, observou-se a presença constante de indivíduos com cirrose hepática alcoólica compensada e descompensada, que permaneciam na instituição em um período mínimo de sete dias e posteriormente eram readmitidos em virtude de conseqüente piora do quadro clínico, sofrimento individual e familiar.
Sabe-se que os resultados das pesquisas científicas têm proporcionado avanço da informação sobre a doença, melhorando e aumentando a sobrevida de seus portadores, porém, tem-se refletido sobre os estigmas, comportamento e medos provocados pela cirrose hepática alcoólica. Tais reflexões suscitam questionamentos como: Quais as repercussões da cirrose hepática alcoólica sobre a vida de seus portadores? Como estes portadores se posicionam em face da doença?
Parte-se do pressuposto segundo o qual o ser humano é um animal simbólico inserido em um ambiente social capaz de orientar a representação que delimita o campo das comunicações, da cultura, com suas crenças e valores, orientando suas condutas.
Assim, a teoria das representações sociais mostra-se como referencial teórico privilegiado para análise deste estudo, por possibilitar conhecimentos individuais no âmbito grupal do portador de cirrose hepática alcoólica.
Compreende-se representação social como um conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, originado da comunicação social, que implica uma relação particular entre sujeito e objeto, na qual o sujeito se auto-representa na representação que tem do objeto, o que possibilita a diversidade de compreensão do mundo dos indivíduos, de modo que um conhecimento individual torna-se social e, ao mesmo tempo, o conhecimento social torna-se individual10.
Deste modo, pode-se afirmar que representar um objeto significa construí-lo simbolicamente, de maneira que tenha sentido para quem o representa, passando a fazer parte do seu mundo. Portanto, o processo representativo é uma construção social da realidade no nível simbólico, capaz de imprimir sua identidade naquele que representa11.
Diante do exposto, acredita-se que o estudo das representações sociais pode fornecer uma compreensão coletiva e compartilhada de fenômenos complexos, por possibilitar aos indivíduos, em situações adversas, que provocam medo e incertezas, encontrarem numa referência identitária um suporte para a ação.
Assim, no intuito de contribuir com práticas em saúde mais eficazes dirigidas a portadores de cirrose hepática, esta pesquisa tem como objetivo apreender as representações sociais sobre cirrose hepática alcoólica, elaboradas por este grupo social.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, com abordagem qualitativa, porquanto o tema diz respeito a representações elaboradas pelos indivíduos, quanto à sua condição patológica.
Cenário da pesquisa
A pesquisa foi desenvolvida no Hospital São José de Doenças Infecciosas e no Hospital Universitário Walter Cantídio, ambas instituições públicas que prestam assistência ambulatorial a pacientes com doenças hepáticas.
Fundado em 1970, o Hospital São José de Doenças Infecciosas é uma instituição estadual e nasceu da necessidade de existência de um hospital que agregasse as doenças transmissíveis. Como referência de especialidades no tratamento de pacientes com doenças infecciosas, em 1994 foi incluído no serviço ambulatorial para AIDS. Conforme se propõe, dispensa atendimento ambulatorial multidisciplinar a pacientes da capital e das localidades vizinhas.
O Hospital Universitário Walter Cantídio da Universidade Federal do Ceará (UFC) caracteriza-se como um Hospital Público Universitário, certificado como Hospital de Ensino, unidade que presta assistência de alta complexidade à saúde, realizando desde transplantes renais e hepáticos, de forma rotineira, até pesquisas clínicas vinculadas a diversos programas de pós-graduação regionais e nacionais. Além disso, participa em estudos multicêntricos em protocolos de pesquisa clínica avançada12.
Participantes do estudo
Participaram da pesquisa quinze sujeitos com diagnóstico de cirrose hepática alcoólica e que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: ser informado sobre o diagnóstico de cirrose hepática pelo uso de bebidas alcoólicas; ser do sexo masculino ou feminino; ser maior de 18 anos e estar internado ou ser atendido em nível ambulatorial nos hospitais referidos e aceitar participar do estudo.
Como critérios de exclusão mencionam-se: ter alguma alteração passível de inviabilização da comunicação, como transtornos mentais e/ou outra condição mórbida que comprometa a participação na pesquisa, ou, ainda, apresentar um diagnóstico de cirrose por etiologias diferentes da proposta de estudo e não aceitar participar deste.
Instrumento de produção de dados
Para a produção de dados utilizou-se um roteiro de entrevista semi-estruturado, organizado em duas partes. A primeira, com dados dos entrevistados relacionados às condições sócio-demográficas e o tempo de diagnóstico da doença, e a segunda, com as questões norteadoras relativas à temática. Além disto, utilizou-se um diário de campo para registro de aspectos relevantes observados durante a entrevista, como choro e linguagem não verbal, que serviram para complementar a análise.
A coleta de dados foi realizada no período de maio a agosto de 2007, nas instituições referidas. Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), as entrevistas foram gravadas em locais apropriados.
Análise e interpretação dos dados
Gravadas e transcritas, as entrevistas foram submetidas à técnica de análise de conteúdo temática13, 14, e as observações complementaram a análise.
Análise de Conteúdo é uma técnica que confere a melhor forma de investigação e de tratamento das mensagens obtidas, pois, em decorrência das vantagens, possibilita apreender idéias subjetivas dos sujeitos entrevistados vinculadas às suas crenças, valores e opiniões no cotidiano de suas ações.
De posse dos dados, estes foram organizados em consonância com as seguintes etapas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Segundo a literatura, a utilização dessa técnica consiste na explicitação e sistematização do conteúdo das mensagens e da expressão deste conteúdo13.
Como mencionado, o corpus foi constituído de quinze entrevistas, sendo selecionados a frase como unidade de registro e o parágrafo como unidade de contexto.
Aspectos éticos da pesquisa
Em atendimento às exigências legais, a pesquisa foi devidamente submetida aos Comitês de Ética em Pesquisa das referidas instituições e aprovada por ambas. Portanto, cumpriu-se a determinação da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, que dispõe sobre a pesquisa referente a seres humanos, quais sejam: autonomia, liberdade, não maleficência e justiça15.
APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Caracterização dos sujeitos
Considerou-se importante caracterizar o perfil dos sujeitos do estudo. Isto é fundamental para a compreensão de suas falas, pois a questão de gênero é ainda evidente quanto ao problema de cirrose hepática alcoólica. A Tabela 1 demonstra de forma clara estas características.
A amostra foi constituída de quinze sujeitos, em relação às variáveis sócio-demográficas e tempo de diagnóstico. No concernente à idade, a mais representativa foi a dos sujeitos entre 50 e 59 anos (60%), ou seja, na faixa etária produtiva, todos do sexo masculino. Quanto à escolaridade, nove têm ensino médio (60,1%), enquanto os demais estão distribuídos em: analfabetos, com ensino fundamental incompleto e com terceiro grau, cada um com o mesmo percentual (13,3%).
Em relação às condições econômicas, a renda familiar mais significativa pertence a onze sujeitos que ganhavam de 1-4 salários mínimos (66,7%), seguidos de três com 5-10 salários mínimos (20%), e de dois (13,3%) com menos de um salário mínimo. Sobre a procedência, houve um total de seis estados onde os sujeitos residiam. Destes, oito sujeitos eram do Ceará (53,3%) e três do Rio Grande do Norte (20%). No concernente à profissão/ocupação, os dados foram bastante variáveis, mas sobressaíram seis aposentados (40%) e cinco autônomos (33,3%). E sobre o estado civil, onze (73,3%) são casados.
Quanto ao tempo de diagnóstico de cirrose hepática alcoólica, nove sujeitos já convivem com a doença pelo período de 1-6 anos (60%), seguidos de quatro (26,7%) com menos de um ano, e dois (13,3%) com mais de sete anos.
Análise e discussão dos resultados apreendidos pelas entrevistas
Com a análise das entrevistas emergiram cinco categorias simbólicas, com suas respectivas subcategorias, que compuseram um total de 1.119 unidades temáticas. Porém, serão apresentadas apenas três, que são consideradas as de maior significação e que permitem a apreensão das representações sociais sobre cirrose hepática alcoólica elaboradas por seus portadores, conforme descrição e tabelas a seguir:
Concepções sobre cirrose
Esta categoria engloba as unidades de análise temáticas nas quais os participantes manifestam seus conhecimentos sobre cirrose hepática alcoólica, que foram assimilados a partir de informações científicas, populares e pela experiência dos sinais e sintomas da doença. É composta por três subcategorias: técnico-científica, sócio-cultural e sintomatologia, com um total de 206 unidades temáticas.
Das três subcategorias, destaca-se a ancorada nos aspectos sócio-culturais, com 110 (53,4%) unidades temáticas nas quais os sujeitos relacionam a cirrose a idéias provenientes da sabedoria popular, algumas vezes marcadas pelo desconhecimento, confusões com outras doenças e utilização do imaginário simbólico ligando a doença à morte, confirmado pelas narrativas a seguir:
...cirrose é barriga d'água... vi muita gente morrer de barriga d'água...
...é o sangue virando água... virando água...
É, eu tinha escutado sobre cirrose e a idéia que eu tinha era de que quem contraía a cirrose teria morte imediata...
...vi os mais velhos falar que a pessoa danificava o fígado, que vomitava o fígado...
Esta subcategoria deixa claro que os valores e crenças sociais também são responsáveis pelo comportamento dos sujeitos diante da cirrose hepática alcoólica, uma vez que as informações veiculadas e adquiridas dentro da sociedade contribuem para representação da mesma como doença que destrói o organismo e que pode levar à morte.
Resultado semelhante foi verificado em estudos desenvolvidos com portadores de câncer16 e de AIDS17, nos quais a morte também é referida como representação social destas doenças, pois quem as desenvolve revela que as mesmas são mais que doenças crônicas fatais, pois são a própria morte.
Quanto às subcategorias técnico-científicas e sintomatologia clínica, foram construídas pelas informações apreendidas a partir das informações dos profissionais de saúde e pelas manifestações clínicas da doença vivenciadas pelos próprios sujeitos, como se destaca:
... cirrose é, vamos supor, é... a não-metabolização 100 % do fígado... seu fígado não tá metabolizando totalmente...
...às vezes modifica a cor da pele, ou aparecem feridas, coceiras... )
Está claro nestas falas que os sujeitos, quando indagados sobre sua condição, buscaram descrições baseadas em informações dos profissionais que lhes assistem, bem como descrições de seus próprios sintomas. Isto permite inferir que a medicina científica atual se caracteriza pela transmissão do conhecimento médico e explicações referentes à condição do doente, o qual por sua vez acrescenta seu saber.
Assim, segundo se constata, para a construção de um conhecimento, este é apreendido entre o saber social e o saber científico, e as doenças são, além do processo biológico, artefatos culturais e construções sociais18: 973 que podem afetar a vida ameaçada pelo desconhecimento, que provoca angústia e ameaça ao "não ser".
Percepções sobre cirrose
Esta categoria evidencia sentimentos e visão dos sujeitos sobre si mesmo e sobre o que os outros pensam deles. É composta por duas subcategorias: autopercepção e heteropercepção, com um total de 253 unidades temáticas.
Das duas subcategorias destaca-se a autopercepção, com 184 (70,3%) unidades temáticas; conforme revela, os sujeitos apontam elementos que agregam as descrições relacionadas ao corpo (estética) e emocionais. Enquanto a primeira faz referência à aparência física, a segunda diz respeito aos sentimentos evocados pela doença, tais como tristeza e preocupação.
... acabado em relação à minha saúde.
... eu acho que tem mais espanto, é... ser magro, ser amarelo.
... um gordinho hoje, que parece um porquinho, bacurizim, a imagem, eu tô assim gordim, mais bonitim,....barriguinha mais caída um pedacinho... (risos).
Estes depoimentos são permeados de muita angústia, insatisfação e revolta pela mudança da auto-imagem, pois o corpo passa a ser foco de sentimentos que influenciam a relação com o mundo, provocando uma baixa da auto-estima e do autoconceito.
A metáfora do "porquinho" denota a intolerância e rejeição ao seu corpo, como também indica a construção de uma identidade marcada pela deformação física provocada por conduta moral inadequada, o uso e abuso do álcool.
A dimensão estética é imprescindível para o ser humano, pois o belo provoca atração, desejo e, conseqüentemente, prazer. Como provocar atração e sentir prazer com um corpo deformado fisicamente e moralmente?
A imagem do corpo estruturaliza com nossa mente em contato consigo mesmo e o mundo em que o rodeia. A imagem corporal não é mera sensação ou imaginação, é a figuração do corpo em nossa mente19:179.
Quanto à subcategoria heteropercepção, os sujeitos manifestaram seu ponto de vista em relação ao que o outro percebe sobre eles. Esta percepção está relacionada a sentimentos vivenciados por meio das relações, quer seja por familiares ou amigos, expressas pelo preconceito que gera exclusão.
...as pessoas pensam que eu estava com AIDS ou câncer... até em casa... eu tive discriminação... não podiam chegar próximo, pegar em mim, acho que eles pensavam que contaminava.
...eu acho que eles me vêem como um pobre coitado.
... em casa de início eu pensei em me ver normal, mas vi que as próprias crianças se assustavam quando me viam, com a barriga crescida... a bebida só traz males.
O temor às doenças é um fato histórico, assim como o medo de se infectar por algo é condição inerente ao desconhecimento e à geração de estigmas, que compromete as relações sociais, a dinâmica familiar e a percepção de si mesmo.
De modo geral, as doenças são estigmatizantes. Diante disto, os indivíduos podem ser afastados em virtude das atitudes de estigmas, as quais são geradas por vários tipos de discriminações, sejam relativas ao corpo físico, às culpas de caráter individual (p.ex., alcoolismo) e às tribais, podendo levá-los ao isolamento e até reduzir suas chances de vida20.
Destaca-se, portanto, o que já era esperado de uma doença crônica vinculada à questão da dependência, pois como a AIDS, a cirrose hepática alcoólica provoca ostracismo e rejeição devidos à visão moral que faz destas doenças um estigma social, provocando a exclusão, submissão e revolta de seus portadores21.
Viver com condição crônica é incorporar a doença ao dia-a-dia. Nesse processo, é constante o estresse que permeia o cotidiano, cuja adaptação e enfrentamento devem ser compartilhados pela família e grupos sociais em condições similares22.
Conseqüências da cirrose
Esta categoria agrupa as unidades de análise temática em que os sujeitos relacionam as repercussões e alterações em suas vidas causadas pela cirrose hepática. É composta por quatro subcategorias: social, econômica, emocional e outras, com um total de 382 unidades temáticas. Destas, se destacam as conseqüências sociais, com 176 (46,2%) unidades temáticas, e as conseqüências emocionais, com 140 (36,7%) unidades temáticas, com um somatório de 316 (82,9%) unidades temáticas.
Em relação à subcategoria conseqüência social, constata-se um agrupamento de valores ligados às questões de relações com os familiares e rede social provocadas pela abstinência alcoólica necessária, que contribuíram para o isolamento social.
...a bebida é, geralmente,.. um chamariz,... e hoje a minha família muito pouco vai em casa, porque não tem mais o álcool..
...os meus amigos... a gente.. só tenho amigos na hora pra beber...
Independente do aprendizado e da cultura, o desejo de ser amado e de amar encontra-se no fundamento da formação da subjetividade humana. É, portanto, um desejo primitivo e inato ao homem. Assim, os vários comportamentos sociais, que denotam exclusão, provocam sentimentos de dor e sofrimento17.
Para a subcategoria emocional foram direcionados todos os sentimentos de preocupação, angústia, idéias suicidas, tristeza, depressão, fé, arrependimento, esperança, tristeza e de reflexão, relatados pelos sujeitos. Esta subcategoria compreende, portanto, as necessidades psicológicas e psicoespirituais.
... esperar pela vontade de Deus, se eu ficar bom ou morrer, ou morrer ou ficar bom,... a vontade de eu morrer enforcado, envenenado...
... eu saio pouco, agora eu não saio mais....fico mais trancado em casa, mais deitado...
...eu tinha vontade de me acabar logo!
Revelam, sobretudo, os rompimentos dos vínculos afetivos, os sofrimentos produzidos e desencadeados por uma conduta moral e cultural anterior e o arrependimento diante dessa condição não desejada, de baixa auto-estima, e associações entre as expressões de religiosidade e de fé. Estas pessoas estão emocionalmente perturbadas, com pensamentos suicidas, caracterizados pela desesperança, desamparo e desespero.
Estudos têm mostrado significância estatística entre a associação de doenças crônicas e o desenvolvimento de depressão, com conseqüente impacto na qualidade de vida, pelos sintomas depressivos e até idéias suicidas23,24.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a depressão é um fator importante para o suicídio, e o alcoolismo tem sido diagnosticado com freqüência em pessoas jovens que o cometeram. Para a correlação há explicações psicológicas, sociais e biológicas. Os principais fatores associados são: início precoce do alcoolismo, história crônica de alcoolismo, alto nível de dependência e humor depressivo25.
Na pesquisa ora elaborada, as condições identificadas corroboram o encontrado em estudo sobre o processo de enfermagem aplicado ao portador de cirrose hepática, no qual, além da necessidade de cuidado fisiopatológico, identificaram necessidade do cuidado em relação ao estado psicológico e social26.
Quanto à subcategoria econômica, a necessidade de ser produtivo, desempenhando suas funções laborais e de responsabilidade com a família, foi prejudicada e gerou dificuldades financeiras, sendo precárias as condições econômicas dos entrevistados, pois nem todos recebem ajuda legal.
...hoje eu não trabalho... praticamente, porque eu não posso mais fazer esforço físico...
... desde então tô afastado do meu trabalho por causa disso, e que eu não gostaria de estar!
...eu tenho uma responsabilidade lá em casa da minha filha, mais nova, a minha caçula tá com treze anos...
Constata-se pelos depoimentos que a enfermidade tem uma influência direta e concreta no desempenho profissional destes indivíduos, uma vez que são obrigados a fazer escolhas não desejadas, mas necessárias, pelo limite que a doença lhes impõe.
Os dados apreendidos nessa subcategoria ressaltam não apenas os custos sócio-econômicos dos sujeitos, mas também os emocionais, pois os mesmos não são mais capazes de cumprir com o papel de pai/marido, trabalhador e, portanto, provedor da família.
CONCLUSÕES
As representações sociais apreendidas neste estudo permitiram identificar aspectos subjetivos do portador de cirrose hepática alcoólica, inerentes a sua relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo que o cerca, além de reconhecê-lo como um ser biopsicossocial, constituído por determinações históricas, sociais e culturais.
A cirrose hepática alcoólica é representada como doença que destrói e leva à morte, sendo o convívio com a mesma permeado de momentos de angústia, estigmas, dificuldades sócio-econômicas e rompimento dos vínculos afetivos, o que gera sofrimentos que muitas vezes desencadeiam depressão e idéias suicidas, pois a condição de portador desta enfermidade reflete uma conduta moral anterior inadequada, o alcoolismo.
Apesar de tantas dificuldades, espera-se que esse momento não seja solitário, e sim compartilhado pela família, pela rede social e, principalmente, por profissionais de saúde habilitados no acolhimento e cuidado. A estes, sobretudo, cabe compreender a história natural da doença, bem como as complicações e estágios em que o indivíduo se encontra, na busca de motivá-lo não apenas para adesão ao tratamento, mas para retorno à vida, que exige dos mesmos habilidades para trabalhar principalmente a comunicação, e, desse modo, permitir que os indivíduos expressem seus valores, medos e expectativas, pois a prevenção dos danos psicossociais, dentre eles o suicídio, infelizmente não é tarefa fácil.
A tentativa de apreender as representações sobre cirrose hepática alcoólica não se encerra nesta pesquisa, pois se espera que esta seja o ponto de partida para novos estudos voltados para a compreensão dos sujeitos na dimensão subjetiva e para promover melhora no relacionamento interpessoal, diminuindo o sofrimento e introjetando conhecimentos novos, na tentativa também de superar os preconceitos com a doença e com o doente.
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Recebido em 14/09/2007
Reapresentado em 26/10/2007
Aprovado em 01/11/2007
1Este trabalho faz parte da dissertação de Mestrado em Cuidados Clínicos em Saúde que está sendo desenvolvida, pela primeira autora, na Universidade Estadual do Ceará (UECE), financiado pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP).