Volume 3, Número 3, Set/Dez - 1999
INTRODUÇÃO
Devemos dizer que, por um lado, ficamos muito gratificadas com a oportunidade de expor è discutir algumas idéias que surgiram ao longo do tempo sobre a profissão, para estudantes que ora se iniciam ou se aperfeiçoam na Enfermagem. Por outro lado, além da responsabilidade de contribuir com o descortino de novos horizontes para os que me escutam, consideramos que a natureza da atividade a ser desenvolvida aqui também influiu, pois se trata de um grupo majoritariamente formado por estudantes de graduação em enfermagem.
Reuniões como esta, com as características de conferência, contêm um simbolismo estabelecido pela tradição, em delegar autoridade àquele que fala, cujo discurso torna-se legítimo e legitimado pelo próprio ritual de expor idéias dessa forma e pela instituição que permite que ele aconteça. Assim, uma troca silenciosa e invisível é estabelecida entre aquela pessoa que fala e as pessoas que o escutam, transformando o conteúdo em algo aceito pelo grupo (Rossi, 1992).
Acima de tudo, na Enfermagem, esse ato ritualístico academia tem o sentido de criar um momento mágico de troca entre seus pares, que proporciona confrontos e conflitos, consensos e confirmações entre variados conceitos e posições. Como não acreditamos inteiramente na aceitação unívoca de um discurso e pensamos que a contradição é necessária ao crescimento, algumas considerações tornam-se pertinentes para demarcar nossas posições sobre o que propomos para esta conferência, ou seja, refletir sobre o cuidado de enfermagem para clientes cirúrgicos.
Em primeiro lugar, qualquer discurso que contenha conteúdos evolutivos parte da posição de quem conta a história. Portanto, os fatos e acontecimentos são analisados a partir de uma ótica particular. Quando pessoas apresentam suas posições pessoais sobre determinado assunto, elas devem ser entendidas como uma das formas de compreensão de determinado fenômeno. Existem outras formas de entendê-lo que são igualmente válidas. O segundo ponto, decorrente do primeiro, situa-se na posição relativa de tudo que existe dependendo de como é entendido o tudo. Nesta ocasião, nossas posições devem ser compreendidas como também portadoras de relatividade.
Em terceiro lugar, gostaríamos de ressaltar a assistência focalizada no cliente cirúrgico, no cenário da Enfermagem. Ou seja, no uso do termo assistência em contraposição ao uso dos termos cuidar e cuidado de enfermagem. Geralmente, está implicitamente aceito na nossa comunidade que a assistência refere-se ao conjunto de ações que caracterizam o atendimento de clientelas específicas por profissionais de enfermagem. Entretanto, este é um termo genérico e aplicável à atividade de qualquer profissional da área da saúde.
Pensamos que a Enfermagem precisa estabelecer, com urgência, o uso de termos que expressem uma especificidade de seu saber e de sua prática, o que proporcionaria características distintivas próprias à profissão diferentes daquelas das demais disciplinas da saúde.
Neste sentido, acreditamos que os termos cuidar e cuidado de enfermagem expressam melhor essa especificidade, quando nos remetem às ações que nenhum outro profissional da saúde desenvolve ou pode desenvolver, no âmbito da clientela cirúrgica, no hospital. São ações levadas a efeito a partir de um conjunto de conhecimentos derivados de saberes construídos em conjunto com as experiências práticas vividas no cotidiano da instituição hospitalar, que orientam a ação das(os) profissionais de enfermagem junto aos clientes singulares, em sua natureza pessoal e intransferível.
CIRCUNVOLUÇÕES DO CUIDAR/ CUIDADO DE ENFERMAGEM PARA CLIENTES CIRÚRGICOS
Retomando no tempo, a curiosidade humana sobre nossos próprios corpos determinou uma busca incessante de explicações para formas e funcionamentos corporais e inter-relações dos seus órgãos. Nos diversos momentos sócio - históricos precedentes à atualidade, as muitas maneiras de explorar este corpo foram guiadas por uma evolução que variou desde superstições e interdições até uma permissividade maior, o que também influenciou nos resultados encontrados.
Ao mesmo tempo da busca à compreensão da dinâmica corporal humana, surgiram variadas terapêuticas compatíveis com o conhecimento daqueles momentos evolutivos, o que para nós, hoje, parecem ser derivadas de uma total ignorância, tal o desconhecimento existente em relação ao que sabemos agora. Para exemplificar, trepanações cerebrais eram feitas no Egito antigo, como atestam as pesquisas arqueológicas recentes. Mas seus objetivos eram totalmente diferentes, se considerarmos que as causas de doenças eram atribuídas aos deuses e espíritos da época. Em que pese essa forma de avaliar aqueles procedimentos, não devemos esquecer que para olhar o passado temos de considerá-lo do ponto de vista situado naquele contexto.
Dando um salto temporal, na Idade Média, os procedimentos cirúrgicos que apresentavam sucesso limitado eram as amputações, quando cicatrizavam sem infeções. Entretanto, uma série de outros procedimentos estavam fadados ao fracasso tendo em vista tanto as técnicas utilizadas como o desconhecimento sobre o funcionamento do organismo.
Durante o século XIX, alguns descobrimentos foram, pouco a pouco, modificando o cabedal de conhecimentos existentes. A constatação da presença de microrganismos, a identificação de que a lavagem das mãos entre autópsias e partos reduzia a incidência de febre puerperal, a verificação de que as ordenhadoras de vacas apresentavam imunidade à varíola, os efeitos anestésicos de certas substâncias e outros fatos foram esclarecendo os mecanismos de abordagem e controle de determinadas afecções humanas.
Já no século XX, as novas técnicas cirúrgicas, as transfusões de sangue, a descoberta da penicilina e de outras drogas foram mudando os índices de mortalidade e resolvendo uma série de situações nosológicas que acometiam as pessoas. Atualmente, os grandes avanços no conhecimento sobre o corpo humano e as formas de abordá-lo incluem exames diagnósticos sofisticados e cirurgias com técnicas complexas que demandam tratamentos longos como, por exemplo, os transplantes.
Nesta brevíssima evolução, também interesses menos nobres estiveram presentes e foram se configurando na atual hegemonia médica. Nesse sentido, durante a Idade Média, a entrada dos médicos clínicos no hospital coincidiu, não inteiramente ao acaso, com o alijamento daqueles que detinham o saber das ervas para curar através da inquisição católica, como os curandeiros e bruxas.
Mais recentemente, o desenvolvimento e a consolidação das indústrias farmacêutica e de equipamentos favoreceu um grupo restrito, que salvou muitas vidas mas, com interesse no lucro, também soube criar uma demanda que gerou um mercado mundial e crescente de necessidade de medicamentos.
Por outro lado, devemos conceber a Enfermagem como algo que existe no imaginário e nas representações da sociedade, para proporcionar ajuda a quem necessita. Quando falamos dos contextos nos quais a profissão evoluiu até chegar à contemporaneidade e aos primórdios de um novo modelo para a Enfermagem Brasileira, devemos caracterizar essa ajuda essencialmente pelo cuidado distinto de outros, que a Enfermagem e seus profissionais podem oferecer a indivíduos, grupos, coletividades e comunidades.
O CUIDADO SUPERSTICIOSO DE ENFERMAGEM
A Enfermagem, enquanto atividade humana, existe desde que a primeira pessoa teve sua saúde afetada e surgiu a necessidade de alguém para cuidar dela visando sua recuperação. No período compreendido entre as Idades Antiga e Média, o cuidado de enfermagem foi realizado subseqüentemente por feiticeiros, sacerdotes, "bruxas" e religiosos, em decorrência da idéia de que a doença era causada por maus espíritos, e portanto só a magia poderia curá-la (Souza, 1995).
Esse foi o período do cuidado supersticioso. Ele era realizado por pessoas caracterizadas como farmacêuticos e enfermeiros, que preparavam e administravam ervas, cujo poder curativo foi paulatinamente descoberto pelos curandeiros e sacerdotes. Naquele contexto, as ações cirúrgicas eram voltadas para a retirada dos espíritos maléficos que habitavam a pessoa e os cuidadores, ajudantes dos feiticeiros ou familiares da pessoa adoecida, as acompanhavam visando esse objetivo maior.
A Idade Média ainda apresentava esse cuidado supersticioso, porém algumas descobertas científicas foram sendo feitas. Organizaram-se os hospitais, a cirurgia era praticada pelos barbeiros e curandeiros e a prática da medicina era desenvolvida pelos monges. A maior parte da população mundial vivia na pobreza, pois a economia e a política eram dominadas pelos senhores feudais.
Ao mesmo tempo em que a Igreja Católica foi se fortalecendo através de seu poder para controlar as populações através de sua pregação da vontade de Deus para explicar todas as mazelas, o cuidado de enfermagem passou gradativamente a ser exercido pelo clero, tanto masculino como feminino, embora os corpos dos doentes não fossem tocados pelas irmãs de caridade (Padilha, 1998).
Em decorrência da dicotomia cartesiana corpo - alma, os corpos eram foco de atividades secundárias, pois o principal interesse era a salvação da alma, tanto daqueles que ofertavam como daqueles que recebiam os cuidados. O cuidado era oferecido através de atividades como visitas domiciliares e organização de hospitais. Portanto, os grupos de velhos e crianças abandonadas, enfermos e famintos receberam atenções cristãs. Foi um período de uma lenta estruturação das atividades de enfermagem, embora ela ainda não estivesse caracterizada como profissão.
À medida em que o sistema feudal foi se esfacelando e o sistema capitalista foi se estruturando, por volta da revolução industrial, as questões da saúde foram se tomando mais coletivas, pois as trocas entre a Europa manufatureira e as colônias através dos portos e o surgimento e aumento das cidades, de certa forma, aproximaram os povos e as doenças, o que determinou a necessidade de medidas sanitárias mais abrangentes (Miranda, 1996). O médico passou a tomar-se uma figura central no campo da saúde, com a exclusividade de examinar, internar, prescrever e dar alta.
O CUIDADO AMBÍGUO DE ENFERMAGEM
Os avanços atingiram a todos os segmentos da sociedade e às várias áreas de conhecimento existentes na época, dando origem ao movimento cultural-literário, artístico e científico denominado Renascença. Ele se iniciou na Itália e foi difundido na Europa.
A renovação intelectual decorrente desse movimento fez com que os avanços da medicina fossem alcançados em maior velocidade: dissecações em cadáveres e o consequente aumento do conhecimento da morfologia e funcionamento do corpo humano e o surgimento de tecnologia curativa, como sondas e técnicas cirúrgicas.
Entretanto, a Renascença repercutiu inversamente no desenvolvimento da Enfermagem, dando origem ao período do CUIDADO AMBÍGUO DE ENFERMAGEM ou o seu período obscuro. As conseqüentes contestações decorrentes do Renascimento atingiram a Igreja Católica, com o surgimento do protestantismo (Lutero, Calvino e Henrique VIII). Quem desenvolvia os cuidados e mantinha os hospitais eram os cristãos católicos, religiosos e leigos.
Com o fechamento dos hospitais, a desativação de leitos e a expulsão das ordens religiosas, em decorrência do surgimento de novas religiões cristãs, as pessoas que necessitavam de cuidados de enfermagem passaram a depender de instituições que eram verdadeiros focos de convergência de pessoas de moral duvidosa (bêbados, vagabundos e prostitutas). Essas pessoas tinham sido deixadas de lado como mão-de-obra produtiva e assalariada.
O imaginário da sociedade sobre as pessoas que cuidavam de outras pessoas incorporou um forte componente negativo (Miranda, 1996). Surgido nesse período, esse imaginário sobreviveu até que as representações sociais foram alimentadas com componentes mais positivos, no final do século passado. Apesar disso, a sociedade ainda hoje porta essas representações negativas, em que pese todo o nosso esforço para modificá-las.
Nas colônias além-mar, o grupo de pessoas que cuidavam também era formado por religiosos, leigos penitentes e caridosos, e escravos. No Brasil e na América Latina em geral, as Santas Casas de Misericórdia tiveram um papel fundamental no cenário da saúde, muito embora o processo de cura recebesse influências indígenas e africanas, além da influência européia (conhecimento da flora e fauna locais, com poderes terapêuticos).
Hospitais, orfanatos, abrigos e leprosários foram criados para segregar os membros improdutivos da sociedade, tais como velhos, crianças abandonadas, vagabundos, leprosos, tuberculosos e aleijados. Também no Brasil, o número de pessoas para cuidar era pequeno e pouco qualificado e os médicos, uma raridade (Padilha, 1998).
A partir da Revolução Francesa (século XVIII), com suas várias mini-revoluções internas, aristocracia X burguesia, popular é camponesa, surgiu a Idade Moderna. O capitalismo iniciado com a revolução industrial na Inglaterra tomou novo impulso de desenvolvimento e difusão. Uma das principais conseqüências foi à mudança na forma de se encarar o trabalhador, que passou a ser visto como um bem de serviço, que, quando doente, baixaria a produtividade e o lucro.
Então, o estado passou a investir no campo da saúde e em políticas de higiene pública, para aumentar continuamente as riquezas. Algumas das medidas de higiene foram estabelecidas na Europa paulatinamente: a reorganização dos cemitérios, caixões e covas individuais para os mortos; a colocação de enfermos nos hospitais; o declínio nas taxas de mortalidade e de morbidade; a adequação dos espaços urbanos; o saneamento básico; as práticas de medicalização e de vacinação; o controle de doenças infecto - parasitárias e a oferta de cuidados médicos gratuitos.
Houve repercussão de todos esses avanços na Enfermagem. Ao lado dos avanços na saúde coletiva e de novas descobertas científicas da saúde, as guerras européias localizadas, com o avanço da tecnologia bélica que necessitavam de treinamento específico dos soldados para usá-las, exigiram uma mudança na forma de se encarar os contingentes militares humanos. Investia-se economicamente no treinamento das tropas. Então, a vida desses soldados passou a ser mais valiosa, do ponto de vista econômico. Era necessário preservar esse investimento no humano. Então, soldados feridos ou mortos eram perda de investimento.
O cenário estava preparado para o surgimento de uma figura na Enfermagem, Florence Nightingale, atualmente mitológica, por suas concepções acerca da profissão, que se transformaram em seu marco fundamental. Pessoa intelectualizada e preparada além do que se exigia para as mulheres da época, visionária e extremamente determinada e politizada, pertencente à mais alta camada social da Inglaterra e portanto muito bem relacionada, tinha todas as condições de iniciar um novo movimento na enfermagem. Esse movimento vitorioso teve como conseqüência a sistematização da prática e do ensino da Enfermagem, lançando suas bases como profissão.
O CUIDADO CIENTÍFICO DE ENFERMAGEM
O CUIDADO CIENTÍFICO DE ENFERMAGEM estabeleceu-se no período compreendido entre o final do século XIX e início do século XX, pois os fundamentos das ciências da saúde, da ecologia ambiental, da sociologia e outras ciências foram incorporados como pressupostos para a profissão. A mais valiosa contribuição de Miss Nightingale para a Enfermagem ficou registrada em obras que escreveu e na numerosa correspondência que manteve, durante sua longa vida. O Sistema Nightingale de ensino foi difundido inicialmente por ela tomado-se posteriormente hegemônico no mundo.
Neste último século, o cuidado científico evoluiu da visão nightingaliana, com acréscimos enriquecedores dos princípios científicos da enfermagem, da adoção da metodologia científica (resolução de problemas e processo de enfermagem), da elaboração das teorias de enfermagem e das tecnologias complexas de manutenção da vida e substituição de funções orgânicas.
Como contribuição à consolidação do campo da saúde e do modelo nightingaliano de enfermagem, o século 20 foi rico e sem precedentes nas descobertas decorrentes de guerras mundiais e regionais, de viagens espaciais, de satélites e mapeamento do solo, de tecnologias de ponta nas áreas de comunicação e informática. As influências do desenvolvimento do saber sobre o campo do cuidar e do cuidado de enfermagem para clientes cirúrgicos, neste século, foi enorme.
Por um lado, os aspectos distintivos desse cuidar/cuidado foram determinados por toda a evolução da profissão marcada pela prática desenvolvida quotidianamente nas instituições hospitalares. Por outro lado, ultimamente esses aspectos também têm recebido uma influência determinada pelas descobertas tecnológicas, notadamente aquelas decorrentes de novos aparelhos e equipamentos, cuja finalidade situase em controlar manifestações pessoais dos clientes ou manter e recuperar suas vidas. No cenário hospitalar e para a clientela cirúrgica, isso também é verdadeiro.
INICIANDO REFLEXÕES SOBRE O CUIDADO SENSUAL DE ENFERMAGEM PARA CLIENTES CIRÚRGICOS
A necessidade de reflexões impõe-se para que possamos desenvolver o pensamento sobre as questões da tecnologia associada ao cuidado. Só nas primeiras décadas do século XX, a Enfermagem foi conceituada por diversas enfermeiras norte-americanas. Discutir esses conceitos seria objeto de uma outra conferência. O que é importante destacar disso é que até agora inexistiu uma demarcação clara das diferenças entre o cuidar e o curar, e uma delimitação inequívoca do objeto da enfermagem.
O ser humano persistiu como esse objeto, embora ele também o seja em outras ciências da saúde. Ainda existem incertezas sobre o que fazemos, ensinamos e pesquisamos. Em que pese o conjunto de conhecimentos próprios da profissão, ainda não podemos caracterizar o saber da enfermagem como ciência, no sentido estrito do termo. Mas a incerteza é a marca registrada de nossa época.
No final deste século, vários conhecimentos, acontecimentos e movimentos estão desencadeando reflexões em diferentes áreas. São eles: a falência dos sistemas socialista e capitalista; a exclusão de parcelas majoritárias da população dos benefícios econômicos e sociais proporcionados por esses sistemas; a maior conscientização da população mundial sobre as conseqüências da exploração indiscriminada de nosso planeta; o crescente esgotamento dos modélos de desenvolvimento da exploração científica; a rejeição do dualismo cartesiano corpo - alma; o desenvolvimento de uma filosofia mais preocupada em analisar o homem e suas realizações; as descobertas pós - atômicas, principalmente na Física e na Biologia; os desdobramentos astronômicos pós-telescópio Hubble; os estudos sobre as viagens interplanetárias e intraplanetária; a morte de extensos contingentes populacionais por fome; e o movimento cultural denominado pós-modernismo.
Na Enfermagem brasileira, com sua equipe composta por diversos profissionais, essas reflexões têm surgido com grande força, principalmente nos meios acadêmicos, com algumas indagações características: o cuidado de enfermagem é o objeto de nossa profissão? Nossa prática apresenta harmonia com o ensino e a pesquisa? Os ganhos sócio -profissionais são compatíveis com as aspirações individuais e coletivas dos profissionais? Como podemos participar das mudanças sócio - políticas e econômicas, com maior visibilidade social? O imaginário e as representações da sociedade sobre a enfermagem são aproximadas às representações profissionais? E tantos outros questionamentos!
Estamos apenas começando a encontrar algumas respostas. E as reflexões sobre essas questões estão apenas se iniciando, no tempo histórico. Analisar todas as perguntas também demandaria um outro tipo de reflexão além do objetivo que nos propomos aqui. Mas, podemos escolher alguns aspectos sobre os desdobramentos que vêm ocorrendo atualmente, que também contém algumas de nossas próprias posições.
O cuidado vem sendo pensado como a essência de uma Enfermagem atual e para o futuro. Ele vem sendo analisado em sua natureza epistemológica (conhecimento), em sua tipologia, em sua adequação aos variados cenários de prática profissional e aos vários tipos de clientes da enfermagem. Mas, que cuidado é esse mesmo?
Ele é O CUIDADO SENSUAL DE ENFERMAGEM. Ele é um cuidado para além do cuidado científico caracterizado por Florence Nightingale e outras enfermeiras, embora tenha suas raízes históricas derivadas dos pressupostos daquele período. Ele é sensual, pois deriva da combinação de uma mente analítica com uma sensibilidade estética (Figueiredo, Machado e Porto, 1995). Ele foi pensado por analogia com a ciência sensual, caracterizada por Root - Berstein (1990), e cujos princípios foram descobertos a partir do modo de pensar não - científico de alguns dos maiores cientistas e descobridores e sua influência na ciência.
O desenvolvimento desse cuidado exige algumas condições de prática, de ensino e de pesquisa da Enfermagem diferentes das atuais. Exige posicionamentos éticos diferenciados e complementares à nossa atual ética profissional, que é normativa. Essa Ética seria a da liberdade, da solidariedade da sensibilidade. Exige, ainda, uma postura mais disponível da enfermeira caracterizada pelo equilíbrio entre conhecimentos científicos, políticos econômicos, sócio - artísticos, culturais e a criatividade e sensibilidade, numa visão estética (Figueiredo, 1998).
A exploração do cuidado sensual está apenas se iniciando. Com ele, esperamos estabelecer bases teóricas articuladas à uma realidade prática da Enfermagem brasileira. Ainda é necessário andarmos um caminho mais longo ou mais curto, que dependerá de quantas(os) enfermeiras(os) estarão envolvidas, do desenvolvimento de métodos e técnicas de ensino, pesquisa e assistência apropriados à incorporação desse conhecimento, de quantas pesquisas quantitativas e qualitativas serão desenvolvidas para comprovar regularidades relativas à clientela e às(aos) profissionais de enfermagem, em busca de tornar a profissão em ciência, num sentido mais estrito do conceito.
No cenário institucional hospitalar e tendo como foco a clientela cirúrgica, pensar sobre o conceito de cuidado sensual implica em avançarmos de uma posição técnica, ainda majoritária e certamente sempre necessária, para uma posição na qual nós, as(os) profissionais de enfermagem, poderiamos pensar e praticar ações para assistir as subjetividades, as singularidades e os desejos de nossos clientes, e não apenas as suas necessidades humanas básicas.
Isto, implica em lançarmos mão de nossa própria sensibilidade e criatividade, como seres humanos que cuidam de outros seres humanos como nós. Alguns já fazem isso, quando não assumem uma atitude defensiva frente às inúmeras dificuldades que enfrentamos no cenário institucional hospitalar, incluindo seus desdobramentos, tais como a falta de pessoal, de material e de recursos tecnológicos decorrentes dos problemas que assolam nosso sistema de saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda não exploramos completa, sistemática e cientificamente a "dimensão" sensual do cuidar e do cuidado de enfermagem para clientes cirúrgicos. Para isso, além de nossa bagagem de uma ética normativa, necessitaríamos de uma ética da solidariedade que permitisse quebrar com algumas regras tradicionalmente encontradas nos horários de cuidados e de visitas e nas tantas outras regras ou restrições estabelecidas na instituição hospitalar.
Precisaríamos pensar em formas objetivas de incluir a empatia como uma maneira de sempre abordar ó cliente cirúrgico, e não apenas eventualmente quando simpatizamos ou transferimos para ele o afeto que temos para com outras pessoas de nossas relações. Eventualmente, poderiamos pensar em muitas outras situações que explorassem o cuidado sensual...
Mas, para o desenvolvimento de um conceito de cuidado sensual na Enfermagem, e mais especificamente sobre seus aspectos distintivos para uma clientela cirúrgica, existe uma condição essencial. Precisamos investigar, divulgar, discutir, refletir e analisar sobre a proposição de um cuidado sensual, ná comunidade de enfermagem.
A construção de um conhecimento próprio da profissão, entendida como ciência, depende do envolvimento coletivo. Neste sentido, é o que objetiva esta comunicação. Dizemos que não temos todas as repostas possíveis, como ninguém as possui, pois o cuidado sensual está sendo explorado por nós e por algumas(ns) outras(os) colegas. Porém, podemos trocar experiências e opiniões, podemos pensar juntas(os) e assim caminhar, quem sabe, para alcançarmos as nossas mais carás aspirações profissionais e pessoais.
SURGICAL CLIENT'S CARE: EVOLUTIVE ASPECTS AND REFLECTIONS FOR NURSING PROGRESS
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