Volume 3, Número 2, Mai/Ago - 1999
Pensar sobre a natureza da Enfermagem é pensar também sobre o seu saber - fazer e sua relação sujeito - objeto do conhecimento. Uma certa polêmica vem se estabelecendo em nossa comunidade sobre esse saber - fazer, pois ele é depositário de fundamentos das ciências biológicas e das ciências sociais, que o influenciam ao mesmo tempo, a partir de modelos de construção de conhecimento que podem ser contraditórios. Longe de ambicionar a solução para a polêmica, penso que refletir sobre a mesma pode esclarecer um pouco mais sobre nossas posições.
As ciências biológicas, por aproximação histórica com as ciências exatas, têm uma visão fundada na contemplação e no pronunciamento que um intelecto (sujeito) faz sobre uma coisa, que é muda, não falante (objeto). Nas ciências sociais, em que pese sua proximidade com o modelo de construção do conhecimento das ciências exatas, torna-se impossível para o sujeito perceber e estudar a coisa, pois, sendo ela um outro sujeito, não permanece mudo. A coisa é um sujeito que fala.
Penso que parte das dificuldades conceituais presentes na Enfermagem, e que tem influência na construção de nosso saber - fazer, reside em lidar com o outro, o cliente e sua família: objeto ou sujeito? Por um lado, a forte marca histórica e social do modelo biologicista mantém uma significativa influência em orientar nosso olhar para esse cliente como se ele fosse um objeto, e portanto mudo. Essa posição concentra nossos esforços apenas para conhecer esse objeto cognoscente, um conhecimento que só pode ser monológico.
Por outro lado, não podemos ignorar que ele é um sujeito falante, e portanto portador de um discurso, sob pena de perdermos a dimensão humana do cotidiano da Enfermagem. Importa, então, interpretar e compreender esse sujeito tendo como conseqüência um conhecimento sobre ele, que só pode ser dialógico.
Esta é uma ambigüidade que atravessa os diversos cenários, as inúmeras interações - processos e os vários resultados alcançados - produtos, nas áreas profissional, assistencial e organizacional da Enfermagem. Na ótica "bakhtiniana", que penso ser interessante para nossas reflexões sobre a profissão, o sujeito que quer interpretar e compreender a realidade e o sujeito que doa subsídios para o conhecimento da realidade, e vice-versa, são interlocutores que interagem, são produtores de diálogos e portanto de sentido. Esse é um dialogismo interacional ou intersubjetivo, muito característico das relações entre os profissionais de enfermagem e entre eles e seus clientes.
O discurso ainda pode ser um diálogo entre discursos, o que implica em compreendê-los através da enunciação, do contexto sócio-histórico, da ideologia, da intertextualidade, da polifonia e da heterogeneidade discursiva. Esse é um diálogo entre sujeitos cognoscíveis, muito característico da produção científica da Enfermagem. Apesar disso, devemos entender que a ambiguidade derivada da relação sujeito - objeto do conhecimento pode permear o discurso da produção científica da profissão. Depende de como eles consideraram a relação sujeito - objeto.
Essas considerações podem nos fornecer indicações para a leitura dos textos apresentados neste número da Escola Anna Nery - Revista de Enfermagem. Uma parte deles têm suas temáticas centradas em algumas instituições onde a Enfermagem acontece: hospitais e escolas. A outra parte destaca temáticas sobre os clientes da Enfermagem, nas mais variadas situações e nos mais diversos cenários onde podem ser encontrados: lares, serviços de saúde, comunidades, cidades ou países.
Penso que devemos entender todos estes textos como expressão de diálogos entre interlocutores e de diálogos entre discursos. Existe uma variedade de vozes que se expressam através deles, vozes que têm uma dada inserção histórica e social com todas as consequências implicadas.
Cabe ao leitor decodificar e compreender os olhares que os autores tiveram ao produzir seus textos - discursos: se foram olhares a partir de uma ótica sujeito -objeto ou se foram olhares a partir de uma ótica sujeito - sujeito. Acredito que são discursos que merecem a devida atenção, pois configuram-se como parte de uma diversidade presente em nossa realidade profissional. Essa é mais uma oportunidade que a Escola de Enfermagem Anna Nery oferece aos leitores deste periódico, que tem sido um espaço privilegiado para uma parcela importante do discurso da Enfermagem.