Volume 11, Número 1, Jan/Mar - 2007
ENSAIO
À procura do sujeito no/do trabalho de Enfermagem: o acontecimento "Foucaultiano e as sujeições do trabalhador
The subject search at and of the nursing work: the Foucaul's event and the worker's subjections
La procura del sujeto en/del trabajo de enfermería: el acontecimiento "Foucaultiano" y las sujeciones del trabajador
Mara Ambrosina VargasI; Flávia Regina Souza RamosII; Joel Rolim ManciaIII; Denise PiresIV
IEnfermeira. Dda. em Filosofia da Enfermagem/UFSC. Professora Adjunta UNISINOS e atua no CTI HCPA. Membro do Grupo de Pesquisa Práxis- saúde, trabalho, cidadania e enfermagem/UFSC. Bolsista do CNPq.
IIEnfermeira. Dra em Filosofia da Enfermagem. Professora Adjunta da UFSC. Membro do Grupo de Pesquisa Práxis- saúde, trabalho, cidadania e enfermagem/UFSC. Bolsista do CNPq.
IIIEnfermeiro. Ddo. em Enfermagem/UFSC. Servidor da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Membro do Grupo de Pesquisa GEHCE- Grupo de Estudos de História do Conhecimento de Enfermagem/UFSC.
IVEnfermeira. Pós-doutorado University of Amsterdam, Holanda. Dra Ciências Sociais/UNICAMP. Professor a Adjunta da UFSC. Membro do Grupo de Pesquisa Práxis-saúde, trabalho, cidadania e enfermagem/UFSC.
RESUMO
O ensaio reflexivo aborda o sujeito no/do trabalho em Enfermagem, tendo como suporte teórico o conceito de acontecimento em Foucault. Descreve e analisa quatro acontecimentos que podem sintetizar algumas das problemáticas da Enfermagem contemporânea, a saber: diferenças de realidade, hibridismo humano-máquina, rede de relações e processo de construção do conhecimento científico. Constata que as atuais sujeições do trabalhador mostram-se muito mais complexas, o que inviabiliza entender a questão da subjetividade do trabalhador em Enfermagem somente a partir da noção de sujeições econômicas. Porém, sinaliza que, mesmo não escapando de determinados modos de sujeição do presente, há espaços produtivos de desafios, lutas, portanto de liberdade para repensar o trabalho na Enfermagem.
Palavras-chave: Trabalho. Enfermagem. Trabalhadores.
ABSTRACT
The reflexive essay approaches the subject at/of nursing work, grounded by the Foucault´s theoretical concept of event. It describes and analyzes four events that can synthesize some of the contemporary nursing problems, that is: different realities, man-machine hybridism, net of relations, and the process of construction of the scientific knowledge. It finds out that the current subjections of the nursing worker are much more complex, what makes impracticable to understand the subjectivity of the nurse considering only the notion of economic subjections. However, it indicates that, even not escaping from certain ways of subjection existing nowadays, there are some productive spaces proper for challenges, fights, and that offer the freedom required to rethink the nursing work.
Keywords: Work. Nursing. Workers.
RESUMEN
El ensayo reflexivo aborda al sujeto en el/del trabajo en enfermería, tiene como soporte teórico el concepto de suceso en Foucault. Describe y analiza cuatro sucesos que pueden sintetizar algunas de las problemáticas de la enfermería contemporánea, como por ejemplo: diferencias de realidad, hibridismo humano máquina, red de relaciones y proceso de construcción del conocimiento científico. Constata que las actuales sujeciones del trabajador se muestran mucho más complejas, lo que hace inviable entender la cuestión de la subjetividad del trabajador en enfermería solamente a partir de la noción de sujeciones económicas. Sin embargo, señala que, aunque no escape de determinados modos de sujeción del presente, hay espacios productivos de desafíos, luchas y, por lo tanto, de libertad para repensar el trabajo en enfermería.
Palabras clave: Trabajo. Enfermería. Trabajadores.
Quando Alice está na casa do rei, ele pergunta para ela:
- Será que você pode dar uma olhada na janela e ver se meu mensageiro está chegando?
Alice olha pela janela e diz: - Ninguém vem lá.
- Meu Deus! Que menina! Que olhos! Puxa vida, os meus olhos, no máximo conseguem ver alguém. Você consegue ver ninguém! Gente, que coisa maravilhosa!
- Em que sentido o senhor está falando?
Então o mensageiro chega e o Rei pergunta para ele:- Você chegou primeiro que ninguém?
- Claro! Eu sou mais rápido que ninguém.
- Não! Ninguém é mais rápido que você, porque ele veio na sua frente.
- Mas ninguém veio na minha frente!
- Mas como ninguém veio na sua frente se você é mais rápido do que ninguém? Ninguém deveria ter chegado antes!
- Sim! Ninguém chegou antes, porque eu sou mais rápido do que ninguém.
- Não, você não me entendeu. Ninguém é que deveria ter chegado antes...
- Não é possível...(1: 62)
QUEM VEM LÁ?
Independente de ser ninguém ou alguém, pode-se dizer que tanto Alice como o Mensageiro "entendem" o mundo de modo diferente do Rei. Para Alice e o Mensageiro ninguém é ninguém; para o Rei, ninguém é alguém. Alice e o Mensageiro olham o que é possível olhar em determinada época e lugar; o Rei mesmo olhando o mundo através dos olhos de Alice e do Mensageiro, concebe ver ninguém. O Rei não vê ninguém, mas se regozija com a possibilidade de ninguém vir lá; Alice e o Mensageiro olham ninguém, mas não o percebem. Por analogia, na medida em que, atualmente, percebemos que o sujeito do/no trabalho em Enfermagem se insurge como um acontecimento mergulhado em processos complexos que o constitui, acabamos por perguntar repetidas vezes, quem vem lá? Do que fala o Rei quando o mesmo indaga quem vem lá e, ao mesmo tempo, entende que é possível ninguém chegar na frente de alguém? Muito simples, o Rei não fala somente de alguém um determinado modo de trabalho, fala de ninguém concomitante a alguém em outros modos de trabalhar. Em suma, fala de um acontecimento como uma força que perturba os modos habituais de olhar o que somos e o mundo em que vivemos. Mas lembrem-se...
Por mais que diga o que vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aqueles que as sucessões da sintaxe define.(2:25)
Logo, neste ensaio reflexivo, escreve-se uma das versões possíveis de se dizer do trabalho e do sujeito do trabalho em Enfermagem. Para tanto, em um primeiro momento descrevem-se quatro acontecimentos que podem sintetizar algumas das problemáticas da Enfermagem contemporânea. O acontecimento é problemático. Um acontecimento é, sempre, uma singular ruptura com as racionalidades vigentes e uma problematização da atualidade. Ele - o acontecimento - opera por multiplicidades entrelaçadas, mesmo que aparentemente distinto, provocando o pensamento e questionando evidências(3,4). Diante do acontecimento, não reagimos com placidez, mas com perplexidade, tal como a do rei: Gente, que coisa maravilhosa!
Concomitante a isto, busca-se vislumbrar algumas das diferentes formas de sujeição do presente para além da sujeição econômica, já tão bem explorada na vertente marxista. Mas convém explicitar que não são consideradas, aqui, tais sujeições do presente como algo negativo e alienante; pelo contrário, a idéia é sinalizar, criticamente, o que cada uma tem de produtivo, criativo, formativo e impactante sobre nós sujeitos trabalhadores da Enfermagem.
UMA DESCRIÇÃO DOS ACONTECIMENTOS
Acontecimento número 1: buscando analisar aquilo que se pode chamar de diferenças de realidade, este acontecimento reporta a dois trabalhos que discutiram o entendimento das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS). O primeiro(5) inserido em um Projeto de Educação Continuada a partir de um convênio da Faculdade de Educação/UFRGS com a Secretaria da Saúde e Meio Ambiente de Porto Alegre, direcionado aos Postos de Saúde do município e creches credenciadas abordou as concepções de saúde, família saudável e criança saudável, a partir das próprias necessidades levantadas pelas agentes comunitárias. Ou seja, na medida em que muitas vezes há diferenças entre os conceitos veiculados pelo programa global (Programa de Saúde da Família) e a realidade social em que as agentes estavam inseridas, as ACS expressaram suas limitações e dificuldades em abordarem questões relativas ao tema nas suas visitas domiciliares. A partir daí, desenvolveu-se uma atividade-oficina, fundamentada na visão que considera o sujeito constituído por sua inserção em um grupo social onde lida com diferentes tipos de conhecimentos, produzidos a partir de idéias, valores e crenças, os quais estruturam as influências sócio-culturais que acabam por definir sua vivência. Portanto, para estas ACS, articular a questão da igualdade de direitos e, ao mesmo tempo, contemplar as diferenças se constituía como um dos grandes desafios. O segundo(6) constituído como parte de uma pesquisa financiada com recursos da Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS, Ministério da Saúde e da UNESCO, no âmbito do Edital de seleção de pesquisas científicas e tecnológicas em DST/HIV/AIDS 2001-2002 dirigiu o seu foco para os anúncios institucionais de saúde. Mais especificamente, foi apresentado o entendimento de que as ACS do PSF de Porto Alegre/RS fizeram relativamente a apresentação de cinco anúncios televisivos de campanhas nacionais de prevenção ao HIV/AIDS a elas apresentados. Deste modo, ao mostrarem como `as realidades' enunciadas pelas ACS foram-se construindo em oposição a uma outra apresentada nas mídias, afirmaram que as ACS produziram um certo repertório (convergente) de interpretação dos anúncios, que construíram a partir de suas vivências, dos discursos que as atravessam (senso-comum e biomédico) e, particularmente, da experiência cotidiana de serem telespectadores (discurso midiático, em especial o televisivo). Essa convergência pode ser expressa em um enunciado os anúncios televisivos das campanhas oficiais de prevenção ao HIV/AIDS deveriam mostrar uma realidade mais próxima da nossa, que, embora não seja a fala de alguém em particular, procura mostrar um certo dito que atravessou praticamente todas as manifestações das ACS. Portanto, foi considerado importantíssimo que as ACS avaliassem, criticassem e dessem sugestões quanto ao modo como esses anúncios deveriam ser, precisamente porque elas vêm de um segmento profissional que, no organograma do PSF, estabelece uma `ponte' entre a comunidade e os saberes médicos que precisam ser aprendidos e seguidos na direção de se ter e manter a saúde. Assim, são profissionais posicionados (e que se posicionam) como aqueles que são capazes de fazer uma mediação entre comunidade e saberes médicos, bem como fazer visitas freqüentes às residências em sua região de atuação, exercendo, entre outras, a função educativa.
Acontecimento número 2: para contemplar a problemática das possíveis noções de corpo e de sujeito, foi selecionada uma investigação (7) que com base nos pressupostos teóricos do pós-estruturalismo discutiu um processo de ciborguização da profissional enfermeira, isto é o hibridismo humano-máquina. Para tanto, utilizou como lócus de análise a unidade de terapia intensiva, justamente por ser um espaço amplamente mediado por máquinas produzidas pela indústria da bioeletrônica, tecnobiomedicina e tecnologia da informação. Entre as lições de terapia intensiva, discutidas neste estudo, optou-se por descrever, aqui, duas lições. A primeira lição, denominada "Uma UTI móvel em ação...", compreendeu as enfermeiras intensivistas como usuárias de um programa de computador, estabelecendo contatos mediados e, porque mediados pelas tecnologias da informação, imediatos. Deste modo, para a enfermeira seguir passo a passo as orientações dos algoritmos de uma parada cardiorrespiratória, ela necessita estar em composição com a máquina. Foi argumentado que é a intensificação das nossas interações perceptivas e motoras com o meio, mediadas com tecnologias comunicacionais e por sistemas de processamento de informações, que nos possibilita agir imediatamente, nas situações que se configuram como emergências nesse contexto. A segunda lição, intitulada de "Imagens de corpos doentes", explorou algumas das imagens de corpo doente que povoam e, por isso, constituem o ambiente de terapia intensiva. Essas imagens foram tratadas como um texto que deve ser lido pela enfermeira, e não como algo a ser contemplado. Logo, ao assumir o pressuposto de que o que se vê é o que se aprende a ver, procurou demonstrar que olhar essas imagens envolve um duplo aprendizado: aprende-se a operar com e a partir das imagens e aprende-se a olhar com elas; tomam-se decisões apoiadas no conhecimento extraído dessas imagens. Por conseguinte, enfermeiras intensivistas contam com aparelhos capazes de ler o corpo e de traduzir o seu interior em texto e imagem que pedem interpretações especializadas. Ao funcionar desse modo, esse acoplamento do humano com a máquina produz realidades corporais. Assim, devemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver. Nesta direção, não se deveria pensar de forma separada e estanque em equipamentos disponibilizados pela indústria da tecnobiomedina, em enfermeiras cuidando de seus/suas pacientes na UTI e na informação gerada a partir desses equipamentos e suas implicações no tratar/cuidar desses/as pacientes; é necessário e pertinente visualizar e problematizar toda essa rede de relações como instâncias de produção e disseminação de sentidos sobre o corpo, o sujeito, a vida, o cuidado, etc... Em suma, não é mais possível separar o sujeito enfermeira, que é corpo, do sujeito enfermeira que pensa e age com a máquina. É um/a profissional que aprende a estar com a máquina: um profissional ciborgue. A sua conexão com a máquina é a ação específica. Fora dessa relação, nada sobra ou sobra outra coisa. No corpo-profissional ocorre, pois, uma transformação do próprio corpo, possibilitando que tecnologia e corpo atuem de forma concomitante. Essa concomitância não é a preservação do eu ou do outro, mas outro corpo que opera, e somente se manifesta, em conexão, combinação ou em composição, juntando em um mesmo corpo máquina e profissional. Sendo assim, procurou-se evidenciar que as lições de tecnologia no contexto de saúde e a maneira como tem sido tratada pelas/o estudiosas/os da área do intensivismo contrastam com o consumo e a conversão dos/as profissionais em híbridos humanos-máquinas.
Acontecimento número 3: Em julho de 2005, ocorreu um Seminário, promovido pela Associação Brasileira de Enfermagem/RS e pelo Grupo de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, intitulado Acolhimento e cuidado nas práticas educativo-assistenciais de saúde. Após a palestra houve um debate com a platéia, no qual uma das participantes afirmou a dificuldade ainda encontrada pela equipe de profissionais de Enfermagem em otimizar a proposta de acolhimento, na medida em que alguns serviços não estavam adequadamente conectados a este rede de relações, desencadeando em tais profissionais, muitas vezes, sentimentos de insuficiência diante da demanda apresentada. Diante deste fato, esta participante reiterou que se faziam necessárias reuniões, e reuniões com esta mesma equipe, sempre com a finalidade de promover ajustes e aplacar anseios. Portanto, para deflagrar essa discussão, tomar-se-á o artigo do palestrante8, no qual analisa o discurso sobre a humanização e o acolhimento nas práticas de saúde, mais especificadamente hospitalar, veiculado e incentivado pelo Ministério da Saúde (MS) referentes ao Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH). Neste artigo, o autor refere-se às análises prévias de Deslandes sobre os sentidos da humanização encontrados nos documentos do MS. Ou seja, tais sentidos convergem para uma mesma grande questão: relações entre profissionais, relações entre usuários/profissionais (campo das interações face-a-face) e relações entre hospital e comunidade (campo das interações sociocomunitárias). Mesmo que para ele, e para outros/as autores/as, advenha o sentimento de satisfação na medida em que seja este o discurso já encontradiço em documentos oficiais, não se tratando, portanto, de levantar nenhuma divergência de fundo com essa posição oficial, há uma compreensão da necessidade de nuançar diferenças por vezes bastante sutis, mas capazes de conduzir a questões e encaminhamentos diversos da mesma temática de preocupação. Nessa direção, indaga: como ampliar a capacidade ou simplesmente capacitar os profissionais de saúde para compreender as demandas e expectativas do público, para serem mais respeitosos e menos violentos na prestação de cuidados? Posta a questão, considera duas ordens de reducionismos: a idéia de "capacitar para" pode induzir a uma busca de soluções para o problema exclusivamente centrado na "formação" dos profissionais; a idéia do exclusivo centramento da solução nos "profissionais", ao se reconhecer que gestores e formadores no campo da saúde só poderiam mesmo interferir neste pólo da problemática relacional. Outro aspecto referido pelo autor, diz respeito à proposição da competência do "sábio", levando-nos a meditar sobre o alcance desse modo de pensar (e agir) nas práticas de saúde, quando lembra, por exemplo, do lugar ocupado na atualidade pelos "especialistas". De outro modo, o autor propõe tratar as redes de serviços de saúde como grandes redes de conversações, ao mesmo tempo em que enfatiza a necessidade de uma dada técnica de conversa, convencido de que se trata de uma resposta adequada aos problemas, hoje intensamente discutidos, do acolhimento e do vínculo nos serviços de saúde. Afastando-se das soluções mais freqüentes que tendem a tratar o acolhimento como uma atividade (de recepção nos serviços) desempenhada por um profissional particular em um espaço específico, o acolhimento é proposto como um acolhimento dialogado, isto é, como uma técnica de conversa passível de ser operada por qualquer profissional, em qualquer momento de atendimento, isto é, em qualquer dos encontros, que são, enfim, os "nós" dessa imensa rede de conversações que são os serviços. E o que caracterizaria essa técnica de conversa? Em primeiro, o acolhimento dialogado seria o modo como esta técnica de conversa define a dimensão pragmática do encontro, os domínios da ação e de significação (linguagem, conhecimento). Em segundo, seria uma técnica de conversa de apoio ao processo de conhecimento das necessidades: o reconhecimento do outro como um legítimo outro; o reconhecimento de cada um como insuficiente; o reconhecimento de que o sentido de uma situação é fabricado pelo conjunto dos saberes presentes e, por fim, o reconhecimento da assimetria constitutiva deste encontro, em que uma das partes está em busca de uma satisfação de necessidades, enquanto a outra é presumida a deter os meios de satisfazê-la.
Acontecimento número 4: para o último acontecimento articularam-se dois textos um artigo (9) e um editorial (10) buscando explorar o que eles têm em comum. Na verdade, o artigo discorre acerca do processo de cientifização da profissão e a necessária emergência de uma nova categoria de enfermeiro pesquisador. Já, o editorial traz à tona o desafio atual da Enfermagem brasileira de proliferar/impactar a sua produção científica a nível mundial. Portanto, a discussão, aqui, atém-se ao que se denominou de "processo de construção do conhecimento científico: espaço de lutas e visibilidades possíveis". No artigo (9:296), é referido que, no interior do campo universitário, a capacidade de gerar conhecimentos é decisiva na luta pelo poder de fazer ver e fazer crer, acirrando-se a competição entre os grupos de interesse, com vistas ao controle das atividades de pesquisa aí desenvolvidas e do julgamento de seu mérito, tanto para fins de financiamento como para fins de publicação. Assim, as posições ocupadas no interior de um campo científico são o resultado de jogos aí disputados por atores sociais detentores de projetos que lutam por uma legitimação da sua visão de mundo, isto é, pela aceitação por todos (ou por quase todos) da evidência de seus enunciados. Ademais, o advento dos cursos de mestrado e de doutorado trouxe à Enfermagem visibilidade nas agências federais de fomento. Além disso, a preocupação com a dispersão temática da produção científica da área, muitas vezes realizada por um único pesquisador, cuja produção não apresentava características de continuidade e consistência, através de reuniões dos programas de pós-graduação em Enfermagem, levou-nos, atualmente, ao entendimento do que pode ser uma linha de pesquisa consolidada. Tal linha apresenta-se sob a forma de uma sucessão de projetos, desenvolvidos por um grupo de pessoas com vários níveis de qualificação e de experiência, que se organiza em torno de certas questões de determinada área do saber, e que se constitui para atender a uma necessidade social, mediante um trabalho coletivo, institucionalizado e apoiado por uma ou mais agências de fomento. No editorial(10:285), é acirrada a discussão em torno do pressuposto que, se o país consolida sua base científica, forma/habilita pesquisadores capacitados para solucionar problemas nacionais e regionais. E, com a estruturação de linhas de pesquisa autóctones, tornam-se multiplicadores na formação de novos pesquisadores e a produção originada deve ser referendada por avaliadores externos do contexto nacional e internacional. A nível mundial, pode-se dizer que, atualmente, a forma mais importante de divulgação da produção do conhecimento científico dá-se através dos artigos publicados em revistas científicas indexadas no ISI (Institute for Scientific Information). Ou seja, o prestígio da revista está relacionado à qualidade de arbitragem; a qualidade dos artigos publicados e a visibilidade da publicação (conseguida pelas indexações nas bases de dados e pelo fator de impacto). Só as revistas indexadas no ISI são consideradas para o cálculo do fator de impacto. Portanto, o fator de impacto passou a ser utilizado pela maioria dos pesquisadores, instituições de ensino e pesquisa e agências financiadoras de pesquisa e pós-graduação, particularmente pela Capes e pelo CNPq. O ISI indexa, aproximadamente, 16 mil periódicos em mais de 160 áreas de conhecimento. Dentre estes, estão 31 revistas de Enfermagem. Deste modo, apenas 0,44% das revistas científicas indexadas no ISI é da área da Enfermagem, sendo a maioria delas de origem anglosaxônica e norte-americana, e nenhuma revista de Enfermagem da América Latina conseguiu ainda ser indexada na referida base de dados. Assim, constata-se que a produção científica da Enfermagem tem pouca visibilidade internacional.
Ao selecionar estes acontecimentos, o pressuposto era analisar as suas transversalidades. Nesta direção, o que se busca aqui é mostrar que, mesmo não escapando de determinados modos de sujeição do presente, o sujeito no/do trabalho em Enfermagem é encontrado, sim, ocupando espaços produtivos de desafios, de lutas, portanto de liberdade para repensar o seu fazer-saber. E, este repensar envolve, justamente, visibilizar e legitimar cada detalhe de uma miríade de fazeres e de saberes. Ou seja, a própria Enfermagem necessita legitimar e atualizar as múltiplas faces de um melhor cuidar e assistir o sujeito doente e o saudável que dela necessita para se restabelecer e para continuar saudável.
Portanto, precisamos procurar pelas possibilidades de ruptura e de criação de novas relações e sentidos, rompendo com padrões preestabelecidos, caracterizando os movimentos atuais que buscam padrões heterogêneos, ressignificações do singular em composição com arranjos coletivos; procuram, assim, contemplar as diferentes realidades, o outro, os campos de luta em que nos situamos também como trabalhadores. Foucault11 sinaliza o termo singularidade - a singularidade dos acontecimentos, as descontinuidades e a afirmação da diferença atribuem a cada coisa sua medida e intensidade; por isto incomparáveis e incomensuráveis. Nesta perspectiva, não há totalidade, mas multiplicidades mutantes, marcadas por saltos, proveniências e emergências.
Referem-se, aqui, a multiplicidade e a singularidade de espaços do fazer profissional: na comunidade, em conexão com a máquina, na porta de entrada nos serviços, nos terrenos vigiados da ciência, da pesquisa, da formação de novos pesquisadores, da busca legitimada por soluções nacionais e regionais. Espaços políticos, de visibilidade. Interessa, cada vez mais, o que se faz, como se faz e porque se faz. Não é mais possível pensar em categorias explicativas exclusivas (como trabalho alienado?) nestes espaços ocupados e em ocupação. Para pensarmos em todas estas relações teremos que pensar a tecnologia como hibridizada ao sujeito que pensa; construir conceitos que contemplem as vivências da comunidade, elaborar técnicas de conversação, manipular com desenvoltura máquinas e equipamentos e consolidar linhas de pesquisa objetivando a cientifização da Enfermagem e sua visibilidade no Brasil e no mundo. Todas são, nada mais e nada menos, que tecnologias; sujeitos que operam saberes e saberes que operam sujeitos. A tecnologia corporificada rompe a idéia de técnica como simples meio e do humano como fim em si mesmo; estamos em intercâmbios complexos e posições comunicantes. Para além disso, ao problematizar essa enganosa dicotomia "tecnologia" versus "fator humano", poder-se-ia visibilizar o que a fórmula obscurece tanto: o caráter inalienavelmente humano das tecnologias e modo como os desafios da "humanização" passam por soluções tecnológicas. Nesta perspectiva, tais tecnologias se configurariam através de um constante processo, pois estabilizariam sempre outros e novos padrões e, simultaneamente, lidariam com a irrupção de contradições ao invés das composições baseadas em oposições binárias e hierárquicas. Assim, importa muito assumir que essas (e outras) oposições são aparentes; os pólos não são independentes e absolutamente distintos entre si e nem mesmo essências a serem re/descobertas à medida que o conhecimento técnico-médico-científico "avança", mas conexões sempre parciais, instáveis, que se apresentam de diferentes modos com os outros e com todas as nossas partes.
Assim, ao transformar as quatro descrições, selecionadas para análise, em acontecimento, a idéia era demonstrar o que cada um tinha e tem de único e agudo, de transgressivo em relação à ordem das coisas. Enfim, com baliza em Foucault, procurou-se fazer um diagnóstico do presente do processo de trabalho em saúde, especificadamente na Enfermagem. Um diagnóstico que, ao mesmo tempo, leva em consideração o desconhecido que bate à porta e que faz prosseguir a análise para outros caminhos...
REFERÊNCIAS
1. Carroll L. Alice no país das maravilhas. São Paulo (SP): Nacional; 2005.
2. Foucault M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 1995
3. Foucault M. Mesa redonda em 20 de maio de 1978. In: Motta MB,organizador. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2003. Coleção Ditos e Escritos, 4.
4. Weinmann AO. O conceito de acontecimento na pesquisa em história da educação. Educação & Realidade 2003 jan/jun;28(1):49-63.
5. Vargas MAO, Heckler S. Saúde, família saudável e criança saudável: concepções e relações das agentes comunitárias. Rev Gaúcha Enferm 1999 jul;20(2):37-49.
6. Oliveira DL, Meyer DEE, Santos LHS, Wilhems DM. A negociação do sexo seguro na TV: discursos de gênero nas falas de agentes comunitárias de sáude do Programa Saúde da Família de Porto Alegre. Cad Saúde Pública 2004;20(5):1309-18.
7. Vargas MAO. Corpus ex machina: a ciborguização da enfermeira no contexto da terapia intensiva [dissertação de mestrado]. Porto Alegre (RS): Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS; 2002.
8. Teixeira RR. Humanização e atenção primária à saúde. Ciência & Saúde Coletiva 2005;10(3):315-27.
9. Barreira IA; Baptista SS. Nexos entre a pesquisa em história da enfermagem e o processo de cientifização da profissão. Anais do 51o Congresso de Enfermagem. 10º Congresso Panamericano de Enfermería: 1999 out. 2-7, Florianópolis (SC), Brasil. Florianópolis (SC): ABEn; 2000. p. 295-311.
10. Marziale MHP. Produção científica da enfermagem brasileira: a busca pelo impacto internacional [editorial]. Rev. Latino-Am Enfermagem 2005 maio/jun;13(3):285-86.
11. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro (RJ): Graal; 1979.
Recebido em 09/03/2006
Reapresentado em 08/11/2006
Aprovado em 10/01/2007