Volume 1, Número 2, Mai/Ago - 1997
Não podemos nos furtar ao entendimento de que o corpo é um objeto concreto, material, a prova de que uma pessoa existe na sua singularidade. A materialidade biológica do corpo é incontestável; porém, há de se considerar que, além do biológico, o corpo revela uma historiei-dade. Ao longo da história, a ele foram aplicadas normas, valores e princípios que respondiam aos contextos sociais, políticos e econômicos de várias épocas.
Na sociedade capitalista, o Estado desempenhou um papel decisivo na constituição do corpo histórico. O controle do corpo pelo Estado contou com o auxílio da polícia e da justiça, da medicina e da pedagogia e da igreja para, através de técnicas e práticas de repressão, medicalização, educação do corpo e do fortalecimento da consciência moral individual dos cidadãos, construir um conhecimento sobre a realidade da vida dos homens. Por esses vieses, foi possível intervir sobre o corpo e impor-lhe uma regularização de condutas que, por extensão, favorecia o controle dos homens, atendendo, desta forma, aos objetivos políticos e econômicos, requeridos pelo capitalismo.
A leitura de Foucault (1988, 1989) nos mostra que não existe objeto natural, uma vez que tudo faz parte de uma construção histórica. A análise genealógica do poder pressupõe uma análise dos discursos e incorpora a questão das práticas, levando-se em conta a estrutura social.
A história dos diferentes modos de subjetivação dos seres humanos, em nossa cultura, demonstra que o sujeito humano está inserido em relações de produção e de sentido e também em relações de poder. O poder, na óptica de Foucault (1989), aparece como práticas ou relações, estando, portanto, disseminado na estrutura social. A mecânica de poder que se expande por toda a sociedade investe em instituições e toma corpo em técnicas de dominação, atingindo a realidade concreta dos indivíduos e também o seu corpo (Machado, 1989). Assim, o corpo dos homens está imerso num campo político e de relações de poder, que nele investem como força de produção, para utilizá-lo economicamente. Para que esse investimento seja feito sobre o corpo sem que se utilizem, necessariamente, os instrumentos da violência e da ideologia, há que se ter um "saber"e um controle, chamado por Foucault (1988) de "tecnologia política do corpo", que não está necessariamente localizada numa instituição ou num aparelho do Estado. Estes utilizam essa tecnologia, de forma estratégica, através de relações de poder.
No decorrer dos séculos XVII e XVIII, foram usadas fórmulas gerais de dominação sobre o corpo, as quais Foucault (op.cit.) chamou de "disciplinas". São métodos que exercem um controle minucioso das operações do corpo, realizando sujeição constante de suas forças, numa relação de docilidade-utilidade.
Com as disciplinas, nasce uma arte do corpo humano que tem por objetivo produzir comportamentos eficazes e úteis, através de uma relação recíproca entre obediência e utilidade. A disciplina produz corpos submissos e exercitados, aumentando suas forças em termos econômicos de utilidade e diminuindo-as em termos políticos de obediência. (Machado, 1989).
Para exercer o controle dos corpos, a disciplina utiliza recursos como: a disciplinarização do espaço; a vigilância constante; o registro intenso e contínuo de tudo o que é observado.
Os recursos para efetivar o poder disciplinar e o exercício do controle dos corpos foram aplicados na organização de várias instituições, inclusive a hospitalar. A forma pela qual o hospital moderno foi organizado como instrumento terapêutico responde ao modelo disciplinar que lhe serviu de base. Assim, este estudo considera o hospital como um espaço organizado, pautado nos três sustentáculos que servem ao poder disciplinar, ou seja, uma instituição que insere as pessoas num espaço individual, classificatório e hierarquizado, submetendo-as a um processo de controle do tempo, do espaço e de vigilância constante que resultará em um registro sobre suas ações e reações.
Este modelo disciplinar repercute no controle dos corpos dos clientes e dos profissionais que atuam na instituição hospitalar, portanto lançamos a seguinte questão: como, no espaço hospitalar, local de exercício da prática profissional da enfermagem, se estabelecem as relações de poder da (o) enfermeira (o) no corpo do cliente hospitalizado, no momento do cuidado de enfermagem? Objetivamos com este estudo: 1) Identificar como a(o) enfermeira(o) estabelece a relação de poder com o cliente hospitalizado; 2) Identificar quais são os mecanismos disciplina-dores aplicados pela(o) enfermeira(o) ao cliente; 3) Discutir as representações das(os) enfermeiras (os) sobre o corpo do cliente e as relações de poder à luz da prática hospitalar e da óptica de Foucault.
A TRAJETÓRIA DO ESTUDO
Este estudo é de natureza qualitativo-descritiva, com o enfoque das Representações Sociais como referencial teórico-metodológico. A aplicação dos procedimentos metodológicos da pesquisa qualitativa permitiu que nos aproximássemos do fenômeno a partir das perspectivas dos sujeitos, interpretando-o e discutindo-o de forma mais ampla, considerando o contexto no qual ambos, problema e sujeitos, estão inseridos. O referencial teórico-metodológico veio ao encontro dos objetivos traçados, uma vez que as Representações Sociais contribuem pára a construção de uma realidade comum na sociedade, ocupando um lugar importante na vida social, constituindo-se numa importante contribuição para a abordagem da vida mental, individual e coletiva, sendo consideradas como fatores importantes nas relações entre o ser social (homem) e o mundo (Jodelet, 1989; Rangel, 1993).
Os sujeitos foram enfermeiras(os) cuja prática profissional se desenvolvia em instituição hospitalar na prestação de cuidados de enfermagem a pessoas hospitalizadas. Participaram do estudo 10 (dez) enfermeiras (os), sendo 09 (nove) mulheres e 01 (um) homem. O critério para o encerramento da coleta de informações foi o alcance do "ponto de redundância", ou seja, a partir do momento em que as infor-níações obtidas se mostraram suficientes para o delineamento do quadro empírico.
Como campo para a pesquisa foi escolhido um hospital-escola cuja organização da unidade de internação, privilegia a assistência de enfermagem. Desta forma, grande pârte da carga horária de trabalho das(os) enfermeiras (os) era desenvolvida na prestação de cuidados diretos aos clientes internados.
A técnica de coleta de informações foi a entrevista individual não-estruturada, cujo registro foi feito através de gravação em fitas K-7. O anonimato dos sujeitos foi mantido e a identificação dos mesmos foi feita através de pseudônimo.
A análise das informações foi feita através da identificação de significados comuns ( "núcleos de sentido") presentes nas falas dos sujeitos. A partir daí foi realizado o procedimento por "milha", explicitado por Bardin (1979), para organizar as categorias descritivas que emergiram da fala dos sujeitos, a discussão e interpretação das informações foram feitas procedendo-se a análise de conteúdo.
A PRODUÇÃO DO CORPO DOMINADO: AS RELAÇÕES DE PODER DA(O) ENFERMEIRA(O) E O CORPO DO CLIENTE HOSPITALIZADO
O indivíduo encontra-se inserido em relações de poder cuja mecânica se dissemina por toda a estrutura social e atinge também o corpo, que é a realidade concreta do homem.
Os recursos para efetivar o poder disciplinar e o exercício do controle do corpo, foram aplicados na organização de várias instituições, inclusive a hospitalar.
No hospital, a doença e sua cura estão sob o domínio da medicina, assim como os cuidados relacionados ao corpo do doente estão sob o domínio da enfermagem. O fato de a pessoa doente estar inserida no espaço hospitalar implica que seu corpo será "compartilhado" por estes dois domínios - da enfermagem e da medicina. A detenção do saber científico da enfermagem sobre os cuidados que devem ser prestados ao corpo doente parece legitimar o poder da(o) enfermeira(o) sobre esse corpo, conforme podemos ver no relato a seguir:
"(...) se o cliente está ali prá ser cuidado, todo mundo tem que mexer no corpo dele e aí não tem jeito. Eu acho que isso, no hospital, é natural e os clientes sabem disso. Sabem que eu sou a enfermeira, que eu sei e posso mexer, tocar, descobrir, ver. Sabem que eu tenho que ver e posso ver, (...) agente que é da equipe pode" (Enfª Miriam).
Esse relato nos permite perceber que essas(es) enfermeiras (os) estabelecem uma relação direta entre o "saber cuidar do corpo" e o "poder cuidar do corpo". Na óptica das (os) enfermeiras (os), o domínio desse saber lhes assegura o acesso ao corpo: podem descobrir, ver e mexer nele. O saber científico detido por eles (as) está associado à prerrogativa de manipular o cliente.
"A idéia é que eu, como enfermeira, posso fazer o que eu quiser, mesmo sem permissão porque faz parte do cuidado. Eu aprendí a fazer isso; tenho poder p'rá isso (...). Eu acho que é um poder muito grande que a gente tem sobre o corpo, de expor, de mexer, de tocar, de fazer. (...) se eu vou realizar cuidado de enfermagem, quem é que vai dizer que eu não posso?" (Enfª Bianca).
Intervir no corpo do outro, mesmo que a intervenção seja "cuidado de enfermagem", sem o consentimento do receptor vai de encontro aos aspectos éticos norteadores da prática da enfermagem, tão enfatizados no discurso teórico e no Código de Ética da Profissão, Art. 27 e 49 (Conselho Federal de Enfermagem - CoFEn, 1993). Porém, o que podemos constatar é que, na verdade, ocorre que quando há uma recusa explícita do cliente ao manuseio do seu corpo pela(o) enfermeira (o), esta(e) não age sem a sua permissão, mas, sim, busca alternativas para conseguir fazê-lo:
"Tem alguns cuidados que a gente precisa fazer (...) e a pessoa (cliente), às vezes, recusa, não quer ser tocada e aí você tem que "trabalhada pessoa para poder fazer o cuidado (...). Comigo tem dado certo."(Enfª Ângela).
Retomando a questão do saber-poder, podemos iluminar a afirmação sobre a existência desse binômio com as palavras de Machado (op. cit.) quando diz que "saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder" (p. XXI).
Na assistência ao cliente hospitalizado, através da realização dos cuidados, manuseando todo o corpo do cliente (inclusive suas áreas mais íntimas), realizando técnicas invasivas, administrando medicamentos, ouvindo suas queixas e segredos e utilizando-se da técnica do exame ao proceder a inspeção dos mesmos na busca das respostas às terapêuticas prescritas, a(o) erifermeira(o) acaba por ter em suas mãos um poder sobre o corpo do cliente. Ao mesmo tempo, produz um saber sobre esse corpo, que sendo objetivado através dos registros, passa a ser de domínio de toda a equipe do hospital, o que possibilitará aos outros profissionais a aquisição de um saber sobre aquele corpo:
"(...) p'ra poder ver o que está acontecendo, acompanhar a evolução da ferida por exemplo, eu tenho qlie ver o corpo, manipular (...). Eu tenho que avaharse a prescrição está dando certo, preciso registrar (...)" (Enfª Bianca).
As(os) enfermeiras (os), ao declararem deter este saber, acreditam tèr assegurado o exercício do poder sobre o corpo do cliente que, na instituição hospitalar, como afirma Loyola (1987), aparece como propriedade da (o) enfermeira (o).
O depoimento a seguir confirma esta afirmação:
"Desde o momento em que a pessoa interna, agente se apossa desse corpo (risos) como se ele fosse nosso" (Enf- Kátia).
Rodrigues (1983) diz que o corpo é "o mais concreto, o primeiro e mais normal patrimônio que o homem possui" (p. 47). Porém, parece que, no hospital, o "certificado de propriedade" do corpo passa das mãos do cliente para as mãos dos profissionais de saúde e, em particular, para as da (o) enfermeira(o) pois, no processo de hospitalização, o cliente
sofre um enquadramento às rotinas do hospital. Seus hábitos de vida, o ritmo natural de seu corpo, deverá ceder lugar às rotinas gerais que organizam o dia-a-dia no hospital. E, a(o) enfermeira(o), mantenedora dessa ordem estabelecida, passa a ser a principal controladora das atividades do corpo do cliente:
"Se a gente for analisar bem, o corpo do cliente passa a ser da equipe (de enfermagem) porque a gente é que controla tudo, diz quase tudo o que tem que ser fazer (...)"(Enfâ Miriam).
Essa noção de propriedade sobre o corpo do cliente aparece subjacente em vários depoimentos e o que parece tornar essa posse legítima é o fato de que a hospitalização do cliente representa uma autorização para que toda a equipe de saúde tenha acesso ao seu corpo de forma "ampla, total e irrestrita" conforme afirmou uma das entrevistadas (Enfª Bianca). A respeito da autorização concedida à (o) enfermeira (o) para tocar o corpo das pessoas que estão sob seus cuidados, Miranda e Sobral (1989) dizem que "a enfermagem é a única profissão assistencial que tem a permissão da sociedade para tocar o corpo do homem e fazer cuidados físicos íntimos, como por exemplo, a higiene corporal" (p. 03).
Prosseguindo com suas análises, as autoras supra-referidas acrescentam que "a autorização social para manipular o corpo do outro assegura à profissão um poder incontestável" (p. 03). Poder este que faz com que o cliente sofra um processo de assujeitamento durante a hospitalização, levando-o à perda do domínio sobre seu corpo e, conseqüentemente, sobre si próprio. Seu corpo hospitalizado, "precisa" ser visto e esta "necessidade" contribui para legitimar o acesso da(o) enfermeira(o) sobre seu corpo, uma vez que, esse acesso traduz-se na representação dessas(es) enfermeiras (os), em benefícios para os clientes, como podemos constatar a partir dos relatos a seguir:
"No hospital, há necessidade de um intenso manuseio do corpo do cliente (...) e esse é o meu trabalho. Quando ambos gostam é melhor, mas nem sempre dá prá gostar e aí tem que ser da mesma forma" (Enfâ Ângela).
No hospital, o fato de integrar a denominada "área da saúde" significa, como já vimos, ter o conhecimento sobre os problemas do corpo e suas possíveis soluções, o que leva, supostamente, os profissionais a acreditarem que detêm o poder sobre a doença e sobre a vida humana. Legitimado pelo domínio do saber sobre os cuidados que devem ser realizados nos corpos dos clientes e pela Lei do Exercício Profissional (CoFEn, 1993), ser profissional da área da saúde parece significar ter a identidade necessária e suficiente para abrir todas as portas que levam ao corpo do doente hospitalizado. Em outras palavras, sem necessariamente ter identidade pessoal, seria o mesmo que se ter um "crachá mágico" que soa como tão legítimo a ponto de não poder ser questionado quando age sobre o corpo do outro. Confirmemos através dos depoimentos a seguir:
"(..) eu trabalho em maternidade (..) muitas mulheres chegam na admissão e sentem vergonha de mostrar o corpo (...) eu converso com elas e digo que não tem jeito, tem que ser assim e que, além do mais, somos todos da área da saúde e ninguém vai ficar reparando nela (...) (Enfª Leda).
"Quando o paciente tem um problema maior e rejeita, inicialmente, que agente manipule o corpo dele, eu explico que todo mundo aqui é da área da saúde, que ele não precisa ter receio, nem pudores" (Enfª Ângela).
A permissão para a manipulação do corpo do cliente hospitalizado, pelos profissionais de saúde e, especialmente, pelas (os) profissionais de enfermagem, de acordo com as suas representações, é considerada legítima e se o cliente se recusa explicitamente a receber o cuidado e reivindica o direito sobre o seu corpo, as (os) profissionais lançam mão de mecanismos disciplinadores como, por exemplo, dar alta ao cliente. Isto fica evidenciado nos seguintes relatos: aconteceu, algumas vezes, de pacientes se recusarem a alguns cuidados (...), nesses casos a gente percebe que a pessoa não quer que manipule muito o corpo dela (...). (...) quando o paciente se recusa mesmo aí, geralmente, sai de alta à revelia" (Enfª Paula).
A "ameaça" da alta pode funcionar para alguns clientes, como um mecanismo coercitivo para adequar as suas condutas à ordem do espaço disciplinado do hospital. Mas não somente a alta aparece nos relatos como mecanismo mantenedor desta ordem. O controle sobre o corpo do cliente é exercido também e, parece-me que, principalmente, pela vigilância e registro. Ambos são descritos por Foucault (1988), como sustentáculos do poder disciplinar. A aplicação do poder disciplinar objetiva exercer um controle sobre os corpos utilizando, para isso, a vigilância contínua até que o vigiado percebe a si mesmo a partir da visão de quem o olha e implica, também, num registro contínuo sobre a situação vigiada. Lançando mão desses mecanismos controladores dos corpos, a (o) enfermeira(o) exerce um papel coercitivo sobre o cliente, como podemos constatar através desse relato:
"Aqui, às vezes, os clientes têm medo da gente escrever alguma coisa no prontuário, escrever que eles se comportaram mal e tal, e aí, eles receberem alta e irp'rá casa. Como alguns não querem ir p'rá casa, então se comportam direitinho" (Enf-Rosana).
Desta forma, o poder disciplinar, que alicerça a organização da instituição hospitalar, tem eco através da vigilância que se exerce sobre o cliente e do registro em prontuário que se traduzem num controle rigoroso sobre seu corpo, moldando suas atitudes e reações, ao tempo que diminui sua força reivindicatória. Este mecanismo de gestão dos homens, através do controle dos seus corpos, encontra no hospital, na figura da (o) enfermeira(o) uma(um) forte aliada (o), de acordo com o que disseram estas(es) entrevistadas (os):
"(...) quando eles (clientes) tentam questionar alguma coisa, até o "cara"do lado fala: ô "rapá", sabe com quem tu tá falando? Esse é o enfermeiro (nome do enfermeiro), cuidado E aí eu digo: aí "cara", não me sacaneia não, uma "canetada" minha e você... Bom, tu não sabe o que é uma "canetada"no teu prontuário, tu vai p'rá casa amanha" (Enfª Renato).
"(...) dependendo do que ele (cliente) fizer ou rejeitar, ele vai sofrer, o corpo dele vai ser castigado porque precisa daquele tratamento e, recusando, não vai ser tratado de forma adequada porque toda a equipe vai saber (...) tudo o que ele fizer vai p'roprontuário (...)"(Enfª Rosana).
De acordo com Foucault (op. cit), através da aplicação dos mecanismos do poder disciplinar, teremos a produção de corpos submissos, exercitados, ou seja, haverá uma "docilização" desses corpos acarretando uma diminuição das suas forças em termos políticos de obediência. Podemos observar isso no seguinte relato:
"O que acontece nesses anos todos que eu estou trabalhando, o que eu observo é que, no hospital, é permitido expor e manusear o corpo. Os próprios pacientes não reclamam (...) raramente acham ruim ou brigam com os profissionais porque estão expondo o corpo deles. Eles já esperam que isto aconteça (...), geralmente são humildes e não reclamam porque acreditam que tudo o que se faz no corpo deles faz parte do trabalho diário dos médicos e das enfermeiras e que agente sabe o que tá fazendo" (Enfª Paula).
O relato que acabamos de ver traz também, no seu conteúdo, a mensagem que reforça o status da superioridade que o saber científico adquiriu após a Revolução Científica que se iniciou no século XVII. O fato de os médicos e enfermeiras (os) serem considerados profissionais que detêm o saber sobre a cura, o restabelecimento da saúde do corpo, a redução dos seus "defeitos" e os cuidados que devem ser realizados, aparece como condição sine qua non para que o indivíduo doente desvalorize o conhecimento subjetivo que tem sobre seu corpo e se submeta ao saber científico, reconhecido como legítimo. A relação de poder tão fortemente imposta ao corpo do cliente hospitalizado terá como conseqüên-cia a produção de um comportamento resignado, dependente, submisso e passivo acorde com o modelo esperado pela instituição hospitalar. Vejamos o depoimento a seguir:
"(...) p'rá fazer qualquer coisa no paciente eu comunico, principalmente no início, quando o paciente interna, depois que ele já tem um tempo de internado não precisa mais porque ele já sabe quem é quem e já conhece os procedimentos (...) ele mesmo já se despe, já se vira e tal porque já sabe o que é necessário e o que é de costume porque eles têm que se acostumar com tudo, inclusive com o fato das pessoas verem, mexerem e limparem eles. Raramente reclamam" (Enf- Leda).
Extrapolando o nivel das relações interpessoais que se estabelecem no espaço hospitalar entre enfermeira(o) e cliente, o poder que perpassa a relação de ambos e que produz no cliente esse comportamento "dócil", serve também, e arrisco dizer, principalmente, às relações sociais existentes e necessárias ao funcionamento da sociedade capitalista, uma vez que, na nossa sociedade
"o corpo é uma das entidades privilegiadas para o exercício da dominação. A divisão social do trabalho, as pedagogias (nas escolas, nas prisões, nos hospitais), o direito penal, a medicina, o consumo ou a filosofia evidenciam a presença de idéias e práticas que procuram confinar o corpo à região das coisas observáveis, manipuláveis e controláveis" (Chauí, 1991:167).
Desta forma, a produção de um corpo disciplinado, submisso e obediente serve à manutenção da ordem social.
É possível afirmar que o contexto hospitalar no qual o cliente está inserido leva-o a um cerceamento de sua liberdade e da autonomia sobre o próprio corpo. Se o cliente esboça qualquer tentativa de se rebelar contra qualquer procedimento a ser realizado em seu corpo, é imediatamente reprimido, pois o comportamento adequado às expectativas da instituição hospitalar deve responder ao binômio dominador (por parte dos profissionais) - dominado (por parte dos clientes internados).
Quando os clientes não se resignam e tentam assumir um papel ativo e reivindicam a autonomia sobre seu corpo e ao tratamento a ele aplicado, desencadeia-se todo um processo de recriminações e de não-apoio a eles. Os clientes passam a ser estigmatizados e assim são conhecidos (e discriminados) na equipe: "cliente-problemático", "cliente-rebelde". Confirmemos com os relatos a seguir:
"Eu me lembro de uma situação em que eu cuidei de um rapaz (...) que na hora de se cuidar ele era totalmente rebelde (...) quase tudo que a gente ia fazer nele ou queria que ele fizesse, ele recusava, então (...) havia uma espécie de repúdio, de rejeição na equipe (de enfermagem) a e/e"(Enfª Rosana).
"O trabalho que eu vou realizar é no corpo dele (cliente), o que ele precisa receber também, então eu tenho que expor, ver, manusear (...). Eu não fico me preocupando muito se ele reclama, se é um paciente-problema. Eu vou e faço o meu trabalho, que é o que tem que ser feito" (Enfª Leda).
Loyola (op. cit), ao estudar as relações de poder que permeiam a relação entre médico e enfermeira na estrutura hospitalar, diz que "as enfermeiras reproduzem inversamente a sua relação de submissão para com o profissional médico, no paciente, ao estabelecer com o mesmo uma relação de dominação, onde o paciente é um mudo expectador dos "palcos" do hospital" (p. 102).
Assim, as (os) enfermeiras (os) acabam dominando outros corpos que, diante delas (es), são mais frágeis e mais dependentes. E, realmen-te, do cliente com seu corpo doente, espera-se docilidade e silêncio:
"(...) eu posso tocar no corpo dele (cliente) (...) e tem muito disso: eu sou a enfermeira e eu vou fazer o curativo e é assim mesmo, não tem nada que reclamar (...) (Enfª Ângela).
O hospital moderno, de acordo com sua constituição histórica, foi organizado para atender às necessidades emergentes da sociedade capitalista que estava em formação. No interior do espaço hospitalar estabelecem-se relações sociais as quais estão permeadas por relações de poder. Tais relações refletem o todo da nossa estrutura social, pois não podemos considerar a instituição hospitalar e as relações que ocorrem no seu espaço como elementos dissociados do restante da sociedade. Desta forma, as(os) enfermeiras (os), imersas(os) neste contexto, acabam por reproduzir toda a ideologia dominante na prática do cuidado ao cliente. No espaço disciplinado do hospital elas (es) vigiam e controlam o corpo do cliente, garantindo a ordem hospitalar, acabando por se transformarem em verdadeiras "guardiães" do Sistema. Vemos isto de forma clara no depoimento a seguir:
"(- Você intitulou a cliente de problemática quando ela começou a questionar sobre seu tratamento. Por quê?)
- Por causa do poder mesmo. Eu acho que o paciente que questiona muito está corrompendo o Sistema, ele está quebrando um elo da cadeia de que eu faço o serviço e você recebe o serviço e estamos conversados. (...) é assim: cale a sua boca, não reclame, porque esse é o serviço que a gente tem pr'á oferecer" (Enf-Ângela).
O cliente, ao passar pelo ritual da hospitalização, precisa adaptar-se às normas para garantir sua permanência no Sistema e nessa adaptação, a sua dimensão física, ou seja, seu corpo, emerge como peça importante em todo o processo de dominação-submissão presente na estrutura hospitalar.
Esse processo, caracterizado pelo binômio dominação-submissão e que vimos, até o momento, enfatizado na relação de poder existente entre enfermeira (o) - corpo do cliente no espaço institucional do hospital, não é ignorado pelas (os) enfermeiras(os), ao contrário, elas (es) o reconhecem e legitimam no dia-a-dia das suas práticas. Podemos elucidar esta afirmação com o relato que se segue:
"Na minha cabeça está bem clara a questão do poder no hospital. (...) o poder acontece e eu não posso negar isso. Acontece entre as equipes de profissionais e dentro da própria equipe de enfermagem (...). (...) e eu exerço um poder sobre ele (cliente) porque sou eu que vou planejar a assistência, já tá embutido que eu vou determinara hora em que eu vou mexer no corpo dele, então, se eu chegar lá e ele falar: não quero que faça isso agora, não quero que faça o curativo, não quero ir p'ro banho, não quero me despir. Aí, a coisa vai pegar né, não vou ficar es-perando... Vou ficar "à mercê"do desejo dele?" (Enfª Vânia).
A respeito dos estudos de Foucault sobre a microfísica do poder, Machado (op. cit.) chama a atenção para o fato de "que o poder não é algo que se detém como urna coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. (...) existem práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. (...). Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação" (p. XIV).
E, nas relações existentes no espaço hospitalar, este caráter, de que o poder não se detém, mas se troca e se exerce sobre o corpo do cliente, mostra-se claro conforme podemos observar no relato a seguir:
"Eu exerço, dentro da brincadeira, um poder sobre o corpo dele (cliente) por mais consciente que eu esteja. Ele também se permite, por mais que esteja indefeso, porque aqui nao é o habitat dele. Ele sabe que aqui eu sou o leão e ele é o gatinho. Talvez, lá na rua onde ele mora, subindo o morro, ele seja o leão e eu o gatinho. Então, a relação de poder entre mim e ele existe, com certeza"( enf° Renato).
E, quando a(o) enfermeira(o) deixa de desempenhar o papel social de profissional e passa a desempenhar o papel como usuária do Sistema, sente "na carne" a existência da relação de poder sobre seu corpo, conforme nos relatou uma das enfermeiras entrevistadas:
"(...) quando fiquei internada numa instituição (hospitalar), lã eu era uma pessoa anônima, ninguém sabia nada de mim e vinham, me tocavam, me descobriam (...), meu corpo ficava exposto (...). Eu via a equipe de enfermagem (risos) quase nula, ninguém se importava (...) tinha que ficar assim mesmo, o médico tinha que tocar quando ele quisesse (...). (...) eu senti que meu corpo não era mais meu (...). (Enfª Ângela)
Nessa teia de relações de poder existente na instituição hospitalar na qual estão imersos enfermeiros e clientes, o fato dos enfermeiros não se mostrarem alienados, por perceberem que a relação existe, e o vivenciar a relação do próprio corpo pode indicar uma via de acesso à atenuação do seu exercício. Alguns relatos demonstram que, embora tenhamos visto que os enfermeiros façam do corpo do cliente um espaço para o exercício do poder, existe um toque de sensibilidade quando eles colocam a si próprios ou alguém do seu convívio no lugar do cliente:
"(...) porque todo mundo vai, toca, usa e abusa daquele corpo (do cliente) . (...) às vezes, a pessoa não quer e a gente fica magoada, com raiva (...). Mas se a gente se colocar no lugar deles, eles não estão errados porque o corpo é deles" (Enfª Kátia).
"Eu fico pensando: e se fosse alguém da minha família que estivesse ali? (...). Nesse momento é que eu vejo o quanto é ruim ficar ali exposto, sujeito a todos, sujeito a perder a privacidade com relação ao seu corpo" (Enfª Flávia)
A PROCURA DE UM PRÓSPERO CAMINHO RUMO A MUDANÇA
O nosso corpo, e tudo o que a ele diz respeito, não se configura somente como uma realidade individual que obedece às suas próprias leis biofísicas e aos efeitos de sua história pessoal, ao contrário, nosso corpo sofre todo um processo que o modela e o torna fruto da ideologia dominante. As relações que se estabelecem em toda a estrutura social capitalista contribuem para legitimar e perpetuar o binômio dominação/submissão que se desenvolvem nas relações interpessoais e atingem a nossa realidade concreta - nosso corpo. No interior da estrutura institucional hospitalar, o corpo do cliente, representado pelos enfermeiros como um espaço de aplicação do saber sobre os cuidados de enfermagem, assegura-lhes o exercício do poder e este corpo, receptor de cuidados, transforma-se num corpo dominado para permitir as intervenções profissionais e o bom andamento do serviço. A aplicação dos mecanismos do poder disciplinar ainda hoje, na instituição hospitalar, funciona como um "passaporte legal" criando condições de acesso ao corpo do cliente hospitalizado, manipulando-o, invadindo-o, sem abrir espaço para reações ou questionamentos acerca das ações que nele estão sendo realizadas.
Será que temos que aceitar o indefinido da luta poder x corpo e adotar uma postura passiva diante do Sistema? Será que a tomada de consciência pode ser considerada como um primeiro passo rumo a mudança? Estou ciente de que a tomada de consciência sobre a realidade não se configura por si só no elemento suficiente para a transformação dessa realidade. Além de percebermos a existência do problema, faz-se necessário que desenvolvamos uma postura crítica diante do mesmo. É preciso que haja conscientização. Será que uma das vias para o desenvolvimento de uma postura crítico-reflexiva é o vivenciar as situações? Sentir o seu próprio corpo dominado na instituição hospitalar? A análise das condições concretas da assistência e de suas implicações para a prática da enfermagem, talvez seja um próspero caminho.
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