Volume 20, Número 4, Out/Dez - 2016
PESQUISA
O uso de crack e outras drogas por crianças e
adolescentes e suas repercussões no ambiente familiar*
Bruno David Henriques
1
Amanda Márcia dos Santos Reinaldo
2
Lilian Fernandes Arial Ayres
1
Tiago Ricardo Moreira
1
Marina Silva de Lucca
1
Regina Lunardi Rocha
2
1 Universidade Federal de Viçosa. Viçosa, MG, Brasil
2 Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil
Recebido em 06/04/2016
Aprovado em 14/09/2016
Autor correspondente:
Bruno David Henriques
E-mail:
bruno.david@ufv.br; brunoenfer@yahoo.com.br
RESUMO
OBJETIVO:
Compreender as repercussões do uso de drogas por um filho no ambiente
familiar.
MÉTODOS:
Trata-se de pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica, com 11 pais e
responsáveis de crianças e adolescentes usuários de crack e
outras drogas acompanhados em um centro de referência. As entrevistas foram
gravadas; e os dados, transcritos e analisados na perspectiva
fenomenológica.
RESULTADOS:
Após a descrição, redução e compreensão fenomenológica, os resultados e a
discussão se fundamentaram na categoria. Compreendendo as repercussões do
uso de drogas por crianças e adolescentes dentro das famílias.
DISCUSSÃO:
A pesquisa possibilitou a compreensão de situações de fragilidades
emocionais, comportamentais, socioeconômicas e relacionais do fenômeno uso
de drogas por crianças e adolescentes e seus familiares, desvelando
conflitos e fragilidades.
CONCLUSÃO E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA:
O desenvolvimento de ações que atendam às necessidades individuais e
coletivas contribui para o planejamento de ações intersetoriais que
minimizem o sofrimento das famílias e dos filhos.
Palavras-chave: Saúde mental; Cocaína; Crack; Criança; Adolescentes; Família
INTRODUÇÃO
O uso de drogas é um fenômeno amplo e complexo no mundo. Observa-se o aumento no consumo associado a questionamentos sobre a efetividade dos planos de tratamentos e também a dificuldades na adequação da oferta de serviços responsáveis pelo tratamento e pela reabilitação. Os custos e as repercussões sociais e clínicas associados ao uso de drogas são importantes, e os usuários são marginalizados socialmente e economicamente, apresentando riscos elevados de morbidade e mortalidade1-3.
Cabe ressaltar que a cocaína, em suas diferentes apresentações, em especial na forma de pedra, mais conhecida como crack, tem apresentado uma mudança significativa nas formas e nos contextos de uso, embora não se possa tratá-la como o mal absoluto3,4.
Entre os fatores de risco para o uso de substâncias, apontam-se os aspectos culturais, as relações interpessoais e as questões psicológicas e biológicas. Nesse contexto, os principais elementos são a disponibilidade da droga, os aspectos econômicos e sociais, os conflitos familiares graves, o baixo aproveitamento escolar, o início precoce, a susceptibilidade herdada e a vulnerabilidade ao efeito das substâncias5-7.
O uso de drogas gera prejuízos individual e coletivamente, com destaque para as questões familiares8. A família é uma instituição complexa que congrega trajetórias peculiares, que se expressa em arranjos diversificados e em espaços únicos ligados diretamente às transformações da sociedade. A estrutura familiar, com sua dinâmica e sua diversidade, constitui um espaço que pode facilitar ou não o uso de drogas9.
Em crianças e adolescentes, o consumo de drogas é mais preocupante. A situação interfere diretamente na dimensão individual do jovem usuário, comprometendo seu relacionamento social, de modo que seus vínculos coletivos e familiares tendam a se fragilizarem e a se romperem, marginalizando-o progressivamente8.
Os cuidados necessários à população usuária de drogas demandam flexibilidade e capacidade de adaptação dos serviços de saúde, com investimentos em estrutura física, recursos humanos, ações de prevenção e articulação intersetorial.
A Reforma Psiquiátrica brasileira propõe uma abordagem de base comunitária aos usuários de drogas, sendo os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) instrumentos de referência das redes locais no Sistema Único de Saúde (SUS). Esse equipamento deve oferecer atenção que integre, de modo efetivo, recursos clínicos e a dimensão social dos agravos em saúde mental, em especial a dependência química1.
Pesquisar os aspectos relacionados às consequências do uso de crack e outras drogas por crianças e adolescentes no ambiente familiar torna-se relevante diante do contexto que se observa na sociedade. Como essa situação tem relação com o núcleo familiar? Nesse sentido, esse artigo tem como objetivo compreender as consequências do uso de drogas por um filho no ambiente familiar.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa10. Para este trabalho, era relevante e imprescindível compreender o que o fenômeno do uso de drogas representava para os familiares. Esse significado teve função estruturante, pois possibilitou a imersão no modo de vida das pessoas, incluindo angústias, medos e esperança, entre outros sentimentos11.
Fundamentado nos pressupostos da pesquisa qualitativa e no objetivo do trabalho, elegeu-se a fenomenologia como abordagem metodológica. A fenomenologia como método de análise surgiu na Alemanha no final do século XIX e início do século XX. Como princípio, a fenomenologia mostra a necessidade de se observar os fenômenos tais como se revelam para quem os observa. Independentemente de ser realidade ou aparência, o fenômeno se mostra enquanto dado, o que possibilita a busca da verdadeira realidade12.
A pesquisa foi realizada no Centro de Referência em Saúde Mental Infantojuvenil (Cersami) do município de Belo Horizonte, Minas Gerais. O serviço é responsável pelo atendimento e pelo acompanhamento ambulatorial de crianças e de adolescentes com transtornos mentais graves e/ou usuários de álcool e outras drogas.
A proposta do cuidado está apoiada na terapêutica individualizada e coletiva, articulada com diferentes serviços nos níveis primários, secundários e terciários, além de outros setores governamentais e não governamentais13. Essa nomenclatura equivale ao Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi), utilizada em todo Brasil, portanto, os termos podem ser utilizados como sinônimos14.
Inicialmente, foi realizada uma reunião com a equipe para a apresentação dos casos que eram acompanhados no serviço, e identificou-se os possíveis colaboradores com base nos critérios de inclusão e de exclusão da pesquisa. Ao final dessa etapa, 11 famílias foram convidadas a participarem do estudo. Para isso, os convites a tais famílias aconteceram mediante contatos telefônicos.
Antes do início da entrevista, foram explicitados os objetivos do trabalho e as informações referentes à participação e à necessidade da gravação das entrevistas. Após o aceite do familiar, foi agendado local e hora da entrevista de acordo com sua disponibilidade e sua comodidade. As entrevistas realizaram-se no domicílio ou na sede do serviço de saúde. Os familiares assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O trabalho foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) da Universidade (Parecer nº 257.242/2013) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde (Parecer nº 414.777/2013), conforme Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde15.
Os critérios de inclusão foram: pais de crianças e/ou adolescentes em uso de drogas há mais de um ano e em tratamento no Cersami há mais de 6 meses; que residissem em Belo Horizonte ou na região metropolitana e que aceitassem o convite para participar da pesquisa. Os critérios de exclusão são os seguintes: pais de crianças e/ou adolescentes residentes fora de Belo Horizonte e de sua região metropolitana e cujos filhos estavam em tratamento a menos de 6 meses no serviço.
O período de coleta de dados foi de dezembro de 2013 a janeiro de 2014. As entrevistas eram confirmadas com o familiar por contato telefônico antes do dia marcado.
No encontro com os sujeitos, a entrevista foi guiada por uma pergunta, a questão norteadora: como é para você ter um filho que faz uso de drogas? A partir desse momento, ocorreu a interlocução entre pesquisador/entrevistador e entrevistado/colaborador do estudo. O momento foi fundamental, pois foi estabelecida uma relação empática com todos os entrevistados, fato que favoreceu a amplitude e a profundidade dos relatos. Posteriormente, após o encerramento de cada entrevista, as gravações foram ouvidas com atenção; e os depoimentos, transcritos integralmente. Para a manutenção e a garantia do sigilo, os participantes foram identificados por letras e números. Para o encerramento da coleta, foi utilizado o critério da saturação11. A seguir, uma breve caracterização dos pais-participantes. Foram 11 entrevistados, sendo um homem e 10 mulheres, com idade média de 48 anos e renda familiar que variava de um a 10 salários mínimos.
Para a compreensão do fenômeno, na análise dos dados adotou-se como referência a avaliação da trajetória fenomenológica, descrita em três momentos: a descrição, a redução e a compreensão fenomenológica10.
Na descrição, o pesquisador tem a tarefa de descrever as experiências do sujeito, procurando a essência a partir daquilo que lhe é mostrado. Para o momento, ao mesmo tempo que se escuta atentamente o sujeito, o pesquisador envolve-se na entrevista, abstendo-se de suas percepções, o que possibilita desvelar o fenômeno pelo que é colocado pelo entrevistado. Na redução fenomenológica, também denominada epoché, separa-se as partes da descrição que são consideradas essenciais das que não são. Ela desloca a consciência natural e imediata, colocando-a entre parêntese. É preciso clarificar o fenômeno de tudo o que ele tem de contingente para fazer aparecer a sua essência. São feitas novas leituras das descrições, buscando as unidades de significado, que podem levar às respostas das interrogações10.
Por fim, busca-se a compreensão fenomenológica. Entender um ato humano implica compreender a plenitude de seus significados. A reflexão sobre o não refletido possibilita trazer à tona o que antes estava oculto. A compreensão deve ser alcançada por meio do diálogo com os autores do tema, com os pressupostos da fenomenologia, como também pela vivência do pesquisador e do sujeito. O objetivo é compreender, além da aparência, a essência do fenômeno10.
Os depoimentos confluíram para a categoria "compreendendo as repercussões do uso de drogas por crianças e adolescentes dentro das famílias", objeto de discussão para o presente artigo. As falas foram agrupadas em Unidades de Significados (US) por meio da redução fenomenológica. As US são partes da descrição que se relacionam, demonstrando momentos distinguíveis na totalidade da descrição. Em seguida, essas unidades foram reagrupadas de acordo com os pontos considerados importantes e reveladores com o propósito de se chegar à análise da estrutura do fenômeno10.
Fundamentado na organização das unidades de significados avaliadas nos discursos, a estrutura do fenômeno para a categoria apresentada foi desvelada em três temas de análise ou subcategorias: consequências emocionais e comportamentais, consequências socioeconômicas e consequências relacionais.
RESULTADOS
Compreendendo as repercussões do uso de drogas por crianças e adolescentes dentro das famílias
Consequências emocionais e comportamentais
O choro, as angústias, o medo e a insegurança estavam sempre presentes nos relatos. Os familiares falam da agressividade, da violência e dos problemas de saúde. A fragilidade emocional do núcleo familiar é exposta.
O fenômeno da violência e o envolvimento com o tráfico de drogas são elementos presentes nos lares dos sujeitos desta pesquisa. É um desafio a ser enfrentado no dia a dia, o que gera estresse e adoecimento psíquico.
[...] É difícil, complicado [...] fui descobrir, já estava tarde [...] Minha dificuldade? É ele sair, não sei onde ele vai, fala que está em um lugar e está em outro, às vezes não volta para casa, quando volta, volta transformado, agressivo ou chorando [...] não durmo direito, preocupada com o que aconteceu na rua [...] com medo de ameaça [...] ele não escuta, fica agressivo [...] já debateu comigo com briga, nós dois entramos na porrada, eu segurando ele à força [...] ele tentando quebrar as coisas dentro de casa, tudo isso eu vivo. Deslocou meu braço, coluna, tenho problema de coluna de tanto debater com ele e ele me bater na parede, me socar na parede [...] (FAM. 02).
[...] Já passei uma barra pesada, já entraram na minha cozinha para matá-lo três vezes, já passei muita coisa ruim na vida. Tinha dias que deitava na cama e não sabia se eu iria amanhecer viva [...] teve um tempo aqui [...] ninguém podia ficar dentro de casa, a coisa estava feia, matando muito [...] Nós estávamos com medo de ficar aqui, pensamos em ir embora [...] Eles são amigos da gente, eles para um lado e a gente para o outro, não mexem com a gente, mas [...] é muita coisa [...] nós que somos velhos não aguentamos [...] (FAM. 10).
A sobrecarga física e emocional se apresenta como um fator de risco para a saúde do familiar, ele está cansado e espoliado física e psiquicamente. A subjetividade envolvida na manifestação desses sentimentos permite a compreensão do momento e da experiência de vida dessas pessoas, além de proporcionar a oportunidade de atuar em questões que não podem ser apreendidas em sua totalidade.
[...] é muito triste, decepcionante [...] sempre com medo de acontecer alguma coisa [...] sempre em alerta, com medo de alguém fazer alguma coisa [...] envolvimento em briga, arrumar confusão [...] matar [...] não tem muito que fazer [...] quem tem contato com alguém que usa droga, é uma coisa que mexe com a família toda, tira o sossego da gente, os filhos envolvidos com isso, você tem que tomar muito cuidado porque se não acaba com toda sua alegria [...] se você se entregar à tristeza, você não consegue fazer mais nada [...] (FAM. 04).
[...] Horrível [...] Eu não estou preparada. Eu nunca esperava que um dos meus filhos pudesse fazer umas coisas dessas [...] nunca percebi nada [...] sensação de inutilidade [...] mexeu muito com meu psicológico [...] conviver assim é muito ruim [...] Não consigo dormir à noite [...] tentei suicídio quatro vezes [...] eu sofri demais, tanto antes de acontecer isso tudo quanto agora, depois que aconteceu [...] vergonha de sair na rua, e os outros começarem a rir da gente, não dá [choro] [...] (FAM. 09).
O sentimento de impotência diante da situação aflige, perturba a vida e gera angústia. Esses sentimentos expressos nos relatos demonstram a necessidade dos familiares em relação às suas fragilidades associadas à vida de seus filhos enquanto usuários de drogas. Expressam também o sentimento de impotência diante de uma situação que impõe mudança de comportamento por parte da família enquanto um sistema que está abalado e fragilizado. A alegria da vida corre o risco de se esvair, como expressa o familiar 04, em seu lugar, apresenta-se a tristeza, o desespero, o constrangimento e, por fim, o desejo da morte.
Consequências socioeconômicas
Outra questão extraída das falas dos familiares tem relação com fatores socioeconômicos. O pai relata na entrevista 07 que a família tem boas condições financeiras e que faz de tudo para dar qualidade de vida à filha. Nesse momento, o choro se apresenta com intensidade, e todas as questões relacionadas à educação da adolescente, de sua responsabilidade e da mãe, são refutadas e consideradas equivocadas, mesmo com as melhores condições de vida.
[...] não precisa disso, graças a Deus a situação financeira da gente razoavelmente, para pobre é boa [...] a gente trata bem, ajuda, faz tudo o que tem que fazer, precisa das coisas e nós damos um jeito e adquirimos, graças a Deus temos um "dinheirozinho", fazendo uma coisa daqui e outra dali, que a gente não para, trabalhando para morrer [...] (FAM. 07).
Uma mãe expressa que, diante da situação do filho, "se perdeu dentro do próprio negócio da família". No momento da coleta de dados, ela descreve sua situação financeira como caótica e a associa aos gastos oriundos da relação com a droga. A mãe passou a fazer uso de drogas (cocaína) com a justificativa de entender o mundo em que o filho estava inserido e, assim, poder ajudá-lo. Na entrevista, ela relatou que o segundo filho, também adolescente, que trabalhava com ela em um salão de beleza, passou a usar droga, o que contribuiu para que os recursos decorrentes do trabalho dos dois fossem destinados à manutenção do consumo. O sonho de reformar o estabelecimento ficou distante, a dificuldade financeira aumentou, e a estrutura e as relações familiares se fragilizaram.
[...] Meus negócios não são mais os mesmos, financeiramente eu fali [...] estou iniciando novamente, preciso colocar móveis novos no salão e ainda não tenho condições, conta bancária afundou, tanto física como empresarial, nem a taxa de fiscalização esse ano eu paguei [...] dinheiro vai [...] o dinheiro some e a pessoa só vai afundando dentro de um buraco [...] meu negócio que estava tão bom [...] Agora restam dívidas, pessoas para cobrar, não pessoas daqui, mas de bancos querendo entrar em negócio [...] Eu quero ver ainda esse negócio meu voltar ao início igual estava sendo [...] O dinheiro que eu já gastei que saiu daqui desse salão, com as mãos calejadas de tanto escovar cabelos, uma cápsula maldita desse demônio, de cocaína, já dava para ter reformado minha loja [...] (FAM. 05).
O uso de drogas por crianças e por adolescentes é relatado aqui em uma de suas duras faces, a questão da manutenção econômica do consumo. De um lado, o usuário, que se envolve em furtos dentro e fora do domicílio, ou em atividades ilícitas junto aos traficantes, para sustentar o consumo, de outro, os pais, cujo patrimônio financeiro é dilapidado para pagar dívidas junto ao tráfico na intenção de proteger a vida de seus filhos - ou sustentarem o próprio consumo, como no caso do familiar 05, em que toda a família apresenta o uso problemático de drogas.
Consequências relacionais
O medo da violência em suas diferentes formas e a sensação de estar vulnerável desestabilizam o familiar e o adoecem psiquicamente devido à sensação de vulnerabilidade em relação à situação em que se encontram. Eles estão perdidos e, em alguns casos, somatizam suas dores e percebem que suas relações sociais se perdem e se fragilizam.
[...] estou em depressão, só fico chorando, pensando em coisa ruim [...] estou com a cabeça ruim, tomando remédio, depressiva. Essa é a minha vida, acabou com ela. Gostaria de ir para algum lugar e só fico quieta dentro de casa, só, chorando ou deitada [...] fico só dentro de casa, não faço mais nada. Não tenho vontade de fazer mais nada, nem de arrumar casa, nem de fazer comida [...] acabou comigo [...] (FAM. 02).
O suporte parental e familiar aparece como outra questão envolvida na relação do uso de drogas dos filhos. O apoio aos pais está frágil, e o contexto é difícil e complexo.
[...] foi embora para a casa do pai, o pai não cuidou [...] todos querem o bem dele, só minha família que não. Minha tia, no dia que foi ao CIA [Centro Integrado de Acolhimento ao Adolescente Infrator], falou comigo que marginal tem que morrer [...] O pai não pergunta se está bem, se está precisando se alguma coisa ou se não está, não pega os meninos [...] meu filho tenta ligar para o pai e ele não atende ao telefone, para pedir perdão do que ele fez, é muito complicado [...] Meus parentes não estão nem aí, eles acham que ele tem que morrer [...] Minha família não me apoia em nada, eles falam que o meu filho tem é que morrer, marginal tem que morrer, vagabundo tem que morrer [...] (FAM. 09).
O familiar vive a solidão do convívio com o filho, e em alguns casos pais e familiares se afastam por não acreditarem na recuperação, os vínculos são perdidos; e as relações, desgastadas. O núcleo fragilizado não suporta nem dá suporte ao cuidador, que, em consequência dessa solidão, adoece.
DISCUSSÃO
A fenomenologia possibilita a compreensão das vivências e o preenchimento significativo do objeto preenchido. Interpreta o relato, ou seja, possibilita entender, por meio do discurso da vida, os fenômenos que a realidade manifesta por si. Cada unidade de significado traz o sentido da vivência do fenômeno. São complexas as questões envolvidas no uso de drogas na infância e na adolescência e as consequências familiares. Mas a fenomenologia como corrente de pensamento possibilita compreender os questionamentos que surgem dessa relação16,17.
Ao considerar o que os familiares falaram de si e do que vivenciam com os filhos usuários de drogas, pode-se perceber as situações de vida e o mundo desses pais e responsáveis. A aproximação possibilitou compreender as experiências cotidianas e os sentimentos dos participantes. As questões com os filhos revelam consequências emocionais e comportamentais, socioeconômicas e relacionais para esses pais.
Nessa reflexão, a família está presente como unidade e permanece como espaço privilegiado de socialização, de prática de tolerância, de divisão de responsabilidades, de busca coletiva de estratégias de sobrevivência e lugar inicial para o exercício da cidadania. Trata-se de um espaço para a garantia da sobrevivência, do desenvolvimento e da proteção integral dos filhos e de seus membros. A família está presente diariamente, mesmo fragilizada, pois o mundo-vida não possibilita estar perto durante todo o tempo para amparar o filho quando acontecer algo não previsto18,19.
A relação entre o uso de drogas por crianças e por adolescentes e as consequências familiares é um fenômeno complexo que se apresenta por unidades de significados as quais necessitam de entendimento, de compreensão, de interpretação e de aprendizado. Nos relatos é possível entender que a questão da violência se torna um desafio para a família.
Na busca da compreensão das unidades de significados destacadas anteriormente, observa-se a relação desse fato com o ambiente familiar. A análise desse fenômeno necessita passar pelo entendimento da violência como uma estrutura que tem relação direta com o ambiente em que se estabelece.
A violência é um problema da teoria social e da prática política e relacional da humanidade. Trata-se de um complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial, cujo espaço de criação e desenvolvimento é a vida em sociedade20.
A ligação entre a violência e o uso abusivo de drogas afeta todas as áreas da sociedade, sendo o consumo um importante fator de risco para comportamentos violentos, como homicídios, suicídios, violência doméstica e acidentes de trânsito. O abuso de drogas entre crianças e adolescentes, assim como um ambiente de vulnerabilidade social, pode estimular comportamentos violentos3,21.
É necessário pensar e acompanhar, com cuidado e atenção, a relação entre drogas, violência, juventude e família, considerando a complexidade que se coloca nessa questão. Apenas relacionar drogas e violência é um pensamento linear que não faz sentido se estiver deslocado das representações sociais da sociedade a respeito do tema, do contexto em que a violência se dá e de suas causas históricas22.
Diante dos fatos mencionados, é clara a complexidade da temática, o que demanda esforços do indivíduo, da família, dos profissionais, entre outros. Em relação a este último, destaca-se o profissional enfermeiro, que pode e deve atuar na assistência direta aos familiares e aos usuários de crack e outras drogas, e também nas consequências decorrentes do uso dessas substâncias.
Como perspectiva para a abordagem do enfermeiro, um trabalho realizado no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad), em Vitória-ES, teve como meta propor uma estratégia de atenção ao usuário de crack, por meio da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE), fundamentada no modelo de Betty Neuman. Vários aspectos foram levantados com a possibilidade de aplicação de intervenções de enfermagem, inclusive a educação em saúde, que é função primordial do enfermeiro, e cuidados como: prevenção de recaída, entrevista motivacional, abordagem coletiva e individual a familiares, entre outros23.
O ambiente conturbado tem influência direta no crescimento e no desenvolvimento infantis. Além disso, pode contribuir para que seus membros se tornem jovens e adultos com comportamento antissocial, delinquente, dependente, com alto risco de ingresso na vida criminosa, perpetuando o ciclo da violência24,25.
Em uma residência simples localizada em um aglomerado, com quatro cômodos e péssimas condições de higiene, onde residem seis pessoas, foi realizada a entrevista com a avó de um adolescente (FAM. 10) que se encontra acautelado em um Centro de Reabilitação por estar ameaçado de morte. Na entrevista, foi possível perceber e compreender a realidade de tensão e de medo em que se encontravam os familiares em relação ao poder e à influência dos traficantes no cotidiano da comunidade, especificamente daquela família. No início da entrevista, a voz da participante era baixa, e a todo o momento ela observava se alguém estava escutando, pois sua residência já havia sido invadida duas vezes por traficantes que queriam matar o neto.
Nessa compreensão, é relevante entender, reconhecer e interpretar os sentimentos envolvidos nos relatos dos familiares. As limitações relativas a essa situação perturbam, incomodam, fragilizam, e esse movimento gera um quadro de impotência diante da situação que a vida impõe.
A família se torna passiva e impotente em face da complexidade e dos efeitos sistêmicos no ambiente familiar e em suas relações de trocas, oriundos do abuso da droga. Essas famílias manifestam um sentimento de resignação, pois a solução para o problema se torna algo distante e inatingível26.
Identificar e trabalhar essa situação possibilita a realização do cuidado centrado nas necessidades das pessoas. As pessoas devem ser assistidas mediante ações concretas, que considerem o contexto vivido e que as encorajem a superar os medos e as angústias27.
A participação da família no comportamento dos indivíduos em relação ao uso de drogas é importante, pois é necessário empoderar os membros com conhecimento e com estratégias que amenizem as questões diárias envolvidas nesse contexto, promovendo a qualidade de vida, a segurança dos familiares e o suporte necessário. Deve-se ressaltar que essa importância é resultado das relações e dos vínculos estabelecidos ao longo do processo de crescimento e de amadurecimento emocional desses indivíduos25,28.
Para isso, uma abordagem sólida dos dispositivos públicos pode reduzir essas consequências. O setor da saúde tem a capacidade e o potencial para essa atuação. As Unidades de Saúde da Família, como espaços de interação e cuidado na comunidade, devem reconhecer as situações de fragilidade e realizarem as intervenções necessárias, principalmente no compartilhamento de informação que ajude os familiares na vivência do problema do uso de crack e outras drogas28. Como integrante da equipe, o enfermeiro deve atuar por meio da escuta qualificada, da relação terapêutica, da empatia e do processo de vínculo. Essas questões, além de fortalecerem a relação, também são fundamentais para a aplicação do processo de enfermagem, uma vez que o fenômeno é complexo23.
O sistema familiar abalado e fragilizado gera um sentimento de tristeza e, até mesmo, a vontade de perder a vida. A dura fala do FAM. 09 traz à luz outro sinal das consequências do uso de drogas por um filho. Os prejuízos para a saúde dos pais são imensuráveis.
As famílias que convivem com o abuso de drogas têm um escore mais baixo na avaliação da qualidade de vida quando comparadas a famílias que não estão expostas a essa situação29. Com prejuízos na qualidade de vida, os problemas orgânicos aparecem com frequência. Essa discussão deve ser ampliada e ir além da prevenção, pois estamos diante de um cenário real, em que as famílias precisam de suporte para as suas necessidades de naturezas psicológica, biológica e social30.
Para a enfermagem, compreender os prejuízos na qualidade de vida dos familiares é de fundamental importância. Como cuidadores e promotores da saúde, os enfermeiros devem se aproximar dessa realidade, conhecer o problema e elaborar políticas públicas e programas de prevenção e tratamento, não só para o uso/abuso de crack e outras drogas, mas também para a família que lida diariamente com a situação e sofre as consequências físicas e emocionais que emergem do problema31.
Continuando a trajetória de compreensão, as questões socioeconômicas também emergem dos depoimentos. Trata-se de um fenômeno vivido do humano em seu cotidiano, com consequências que não escolhem a classe social.
O fenômeno do abuso de drogas não se restringe às classes sociais desfavorecidas economicamente. Em estudo transversal realizado em Pelotas, em 1998, com escolares, verificou-se que 73,2% dos usuários de drogas pertenciam às classes sociais A, B e C, sendo o menor porcentual de prevalência a classe E, com 2,9%. O abuso das drogas ilícitas afeta a sociedade independentemente da classe econômica32.
O abuso de drogas deteriora as condições econômicas. São comuns pessoas se desfazerem de seus bens para comprar drogas. A manutenção do abuso de substâncias tem um alto custo e afeta a situação econômica das famílias33,34.
As consequências relacionais são emersas das falas dos participantes. O sentimento de estar vulnerável na situação aparece com intensidade. Em contextos reais, os familiares sentem as consequências da situação e as dores das relações sociais fragilizadas.
Nas relações, o suporte parental e o de outros membros da família se mostram fragilizados. Observa-se que a fragilidade nos vínculos afetivos entre os familiares - como a ausência de comportamentos de afeto, de respeito e de diálogo, principalmente dos pais - é um problema a ser conhecido e superado por meio de suporte. Deve ser relatado que a ausência da figura materna e/ou paterna no ambiente familiar é um fator relevante, com consequências diretas sobre as relações e o desenvolvimento comportamental/educacional dos filhos que são usuários ou não. Esse contexto traz evidências que podem possibilitar a atuação do poder público em famílias que apresentam situação de risco em relação à prevenção ou à recuperação do filho25,33,34.
O consumo de drogas, nessa realidade vivenciada, está associado à definição identitária do jovem, à busca pelo reconhecimento e pelo respeito do outro, à aceitação, ao acesso a bens e a serviços que ele não possui, à pressão social, bem como ao desejo de inserir-se e de ser aceito por um grupo. Outros pontos também podem ser destacados, como a violência vivenciada no cotidiano; a dificuldade de ocupar postos de trabalho; o estresse do dia a dia em relação à desigualdade social em que ele vive; a questão econômica precária, portanto, o jovem vê no trabalho com e para o tráfico uma oportunidade de aquisição de bens; e a dependência física e psicológica para manter o consumo de drogas. Esse ciclo pode ser vivenciado pela criança ou pelo adolescente, ou se ampliar, atingido o núcleo familiar como um todo35.
CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA PRÁTICA
Os dados da pesquisa corroboram a produção científica na área, embora apresentem os limites do contexto cultural e social no qual a pesquisa foi desenvolvida. As contribuições dos sujeitos da pesquisa se entreleçam em diferentes momentos, em alguns, aproximando-se de um consenso em relação à gravidade do tema.
Os resultados apontam possibilidades de ações para os operadores das redes de saúde, de assistência social e de segurança pública sob a perspectiva, a percepção e a compreensão do tema pelos atores envolvidos no estudo.
Os aspectos identificados nos temas de análise ou subcategorias apresentam elementos diversos, com complexidade ampla e com interfaces distintas em sua abordagem. Entende-se que as consequências emocionais, comportamentais, socioeconômicas e relacionais decorrentes do uso de crack e outras drogas devem ser abordadas por um conjunto de ações que se articulam de forma intersetorial.
Com isso, o setor da saúde deve estar presente e atuante. O enfermeiro, com sua formação, tem potencial para integrar as ações interprofissionais. A sistematização do trabalho surge como ferramenta que potencializa essas ações de apoio tanto para a família quanto para as crianças e os adolescentes que fazem uso da droga. Além disso, as abordagens preventivas são fundamentais, e a enfermagem possui potencial significativo nos atendimentos individuais e coletivos.
Alguns avanços e limitações podem ser identificados, entre eles, a necessidade de pesquisas com grupos diferentes em contextos diversos. Destaca-se a necessidade de pesquisar e de discutir como e o que fazer para ajudar os familiares diante do fenômeno do uso de drogas e da vulnerabilidade em que se encontram os usuários e os seus familiares.
REFERÊNCIAS
* Recorte da Tese de Doutorado Significados e vivências dos pais e responsáveis sobre o filho usuário de crack e outras drogas: uma abordagem fenomenológica.