Volume 20, Número 4, Out/Dez - 2016
PESQUISA
Cotidiano da gravidez de risco por cardiopatia: estudo fenomenológico
das relações assistenciaisa
Thaís Vasconselos Amorim
1
Ívis Emília de Oliveira Souza
1
Anna Maria de Oliveira Salimena
2
Maria Carmen Simões Cardoso de Melo
2
Andyara do Carmo Pinto Coelho Paiva
1
Maria Aparecida Vasconcelos Moura
1
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery. Rio de Janeiro,
RJ, Brasil
2 Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG, Brasil
Recebido em 25/05/2016
Aprovado em 21/07/2016
Autor correspondente:
Thaís Vasconselos Amorim
E-mail: thaisamorim80@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Desvelar o cotidiano das relações assistenciais do ser-aí-mulher na gravidez
de alto risco por doença cardíaca.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa fenomenológica. Dezessete participantes foram
entrevistadas em instituição referência para risco materno e os significados
expressos foram analisados à luz do pensamento de Martin Heidegger.
RESULTADOS:
As mulheres significaram terem sido cobradas pelos médicos por engravidarem
e; saberem que o cardiologista dá o parecer, mas o obstetra é quem vai
decidir a via de parto.
CONCLUSÃO:
Evidenciaram-se relações assistenciais pautadas na ótica fisiopatológica de
acompanhamento gestacional e invisibilidade da equipe de enfermagem junto à
gestante. Se por um lado os resultados apontam a necessidade de transcender
para uma relação existencial que considera a mulher como
ser-aí dotada de possibilidades, por outro anuncia a
importância do cuidado de enfermagem congruente às necessidades de gestantes
portadoras de cardiopatia na perspectiva de se fazer percebido e anunciado
pelo ser-cuidado.
Palavras-chave: Gravidez de alto risco; Cardiopatias; Papel Profissional; Pesquisa Qualitativa
INTRODUÇÃO
A inserção da mulher no mercado de trabalho e a associação de hábitos prejudiciais à saúde, como o tabagismo, uso de álcool, sedentarismo, obesidade e estresse, têm colaborado com o desenvolvimento da doença cardíaca, especialmente a de origem isquêmica. Sabendo-se de sua evolução lenta e progressiva, o diagnóstico usualmente se torna conhecido após a idade de 30 anos, período que tangencia na atualidade a ocorrência de gravidez, que neste caso, é classificada como de alto risco. Ressaltam-se ainda os avanços científicos em torno das correções cirúrgicas de defeitos congênitos, o que tem levado ao aumento de gestações em mulheres portadoras de cardiopatia congênita1,2.
Neste panorama, os enfermeiros e demais profissionais de saúde devem estar preparados para a detecção precoce e subsequente classificação da mulher gestante e portadora de agravos cardíacos, assim como para a possibilidade de desenvolvimento da doença no curso gestacional. Isto por que as cardiopatias representam a maior causa obstétrica indireta de mortalidade materna3.
Dentre os aspectos a serem considerados pelos profissionais que acompanham a gestante portadora de cardiopatia ressaltam-se os de cunho emocional e psicossocial. Nesta perspectiva, sentimentos de ansiedade, medo, angústia e incerteza quanto ao porvir são frequentemente relacionados e expressos no curso das gestações de alto risco. Na dimensão emocional pode-se ir além, considerando a culpabilidade que permeia o íntimo da gestante com doença cardíaca, uma vez que assume para si a possibilidade da sua morte, bem como a do concepto. Neste caso surge outro agravante: a possibilidade da herança genética que pode aumentar o sentimento de culpa da mãe, especialmente em mulheres portadoras de cardiopatia congênita4,5.
As Políticas Públicas de Atenção à Saúde da Mulher nos âmbitos da gestação, parto e puerpério têm evoluído e direcionado a prestação de serviços assistenciais à saúde. Todavia, a série de proposições ministeriais e as demais pesquisas que envolvem a temática valorizam o modelo biomédico em detrimento das questões subjetivas que assomam à mulher portadora de cardiopatia que engravida3.
Tal reducionismo pode implicar no aumento da morbidade materna agravando-se o problema de saúde pública em face da cronificação da patologia de base, além do distanciamento do sistema de saúde na perspectiva das relações de cuidado e das realidades psicossociais que permeiam o cotidiano da mulher.
Neste sentido, a tomada de consciência por parte dos profissionais de saúde requer uma relação assistencial que considere a pluralidade da gestante portadora de doença cardíaca, implicando no direcionamento do cuidado em saúde para o conhecimento das subjetividades. A partir de então, pode-se cuidar em uma perspectiva ampliada considerando tanto os fatos significados quanto os fenômenos vividos e vivenciados6,7.
Em tal direção reside a especificidade deste artigo, uma vez que ao levantar o estado da arte acerca do tema de interesse evidenciou-se que a ciência da enfermagem e da saúde de modo geral se pronunciou apartada do fenômeno, focalizando o factual da doença cardíaca e a condição de risco pela gestação. A repercussão da desatenção à dimensão subjetiva inibe as possibilidades de repensar modos de cuidado de enfermagem e de cuidado à saúde a partir da mulher e dos significados que ela confere à gravidez.
Deste modo, interrogou-se acerca do movimento existencial da mulher portadora de cardiopatia nas relações de cuidado que estabeleceu com os profissionais que a acompanharam no cotidiano da gestação de risco, tendo como referencial teórico-filosófico a fenomenologia de Martin Heidegger. De modo a responder tal questão, objetivou-se desvelar o cotidiano das relações assistenciais do ser-aí-mulherb na gravidez de alto risco por doença cardíaca.
MÉTODOS
Pesquisa de natureza qualitativa e descritiva, fundamentada no referencial teórico, filosófico e metódico da fenomenologia de Martin Heidegger. Tal referencial se mostra apropriado por se contrapor à circunscrição que as ciências naturais conferem às situações humanas8. Assim, o objeto em estudo aproximou-se do referencial por intencionar o enfoque das relações de cuidado em saúde na vivência/vivido da gestação como fenômeno que se anunciou para a mulher portadora de cardiopatia em um dado momento de sua vida.
Buscou-se acessar fenomenologicamente o ente, o qual representa o ser humano, sendo que somente este ser é dotado de possibilidade ôntico-ontológica, ou seja, movimenta-se da dimensão factual para a dimensão fenomenal, do ser. A esfera dos fatos se fundamenta na tradição, termo utilizado por Martin Heidegger para denominar as evidências das ciências naturais8.
Todavia, aquilo que é referente ao ser está na esfera ontológica em que os fenômenos são vivenciados de modo singular, os quais para a fenomenologia devem ser considerados primordiais por mostrarem a compreensão original de cada ser humano acerca de determinado fato ou ocorrência em sua vida. Em busca de tal compreensão, Heidegger desenvolveu um método estabelecendo o rigor científico a partir da redução dos pressupostos do investigador8.
O ente8 que foi acessado neste estudo foi a mulher que gestou sendo portadora de cardiopatia no cenário de pesquisa ou região de inquérito em que a mulher constituiu a vivência/vivido da gestação com a classificação do risco: uma instituição hospitalar de referência para risco materno na Região Sudeste do Brasil.
A etapa de campo ocorreu nos meses de julho a dezembro de 2014. Recorreu-se aos registros do acompanhamento das gestantes no serviço de pré-natal de alto risco, identificando os dados pessoais e contatos telefônicos das possíveis participantes. Utilizou-se como estratégia a busca retrospectiva de julho de 2014 a julho de 2013 das mulheres com o vivido da gestação - tomando-se como ponto de partida o diagnóstico de cardiopatia.
Incluíram-se mulheres portadoras de doença cardíaca que estavam vivenciando ou haviam vivenciado a gestação em algum momento de suas vidas, independente do tipo de cardiopatia; mulheres que realizaram o acompanhamento pré-natal no ambulatório hospitalar do referido cenário ou que tivessem internado na instituição durante o ciclo gravídico-puerperal; e ainda, mulheres que gestaram na condição de risco, independente da gravidez ter sido interrompida ou não. Excluíram-se mulheres portadoras de agravos mentais e menores de 18 anos.
Realizaram-se contatos telefônicos prévios com as possíveis participantes verbalizando acerca dos objetivos da pesquisa e convidando-as à participação voluntária. Dezessete mulheres aceitaram participar, agendando-se o encontro de acordo com suas preferências, sendo que a maioria preferiu ser entrevistada no próprio cenário de pesquisa.
As entrevistas foram gravadas em meio digital facilitando a transliteração e tendo em média a duração de 32 minutos. O número de 17 entrevistas foi considerado suficiente por permitir a emersão do fenômeno com suficiência de significados para atender ao objetivo da pesquisa.
Leituras e escutas atentivas foram realizadas quantas vezes se fizeram necessárias para a apreensão do fenômeno, a qual se deu em duas etapas metódicas. A primeira etapa derivou da aproximação aos significados ou trechos constituintes das entrevistas que se mostraram reveladores do cotidiano das relações assistenciais, permitindo a construção de duas Unidades de Significação.
Estas unidades permitiram alcançar a compreensão vaga e mediana. Para Heidegger, esta compreensão se dá na esfera factual e deve expressar a compreensão das participantes acerca do fenômeno interrogado8.
O segundo momento metódico também denominado de hermenêutica permite por sua vez, o desvelamento do fenômeno na instância ontológica por meio da interpretação dos sentidos à luz de conceitos Heideggerianos8.
Deste modo, a discussão deste artigo concentrou-se na hermenêutica do ser-aí-mulher-que-gestou-sendo-portadora-de-cardiopatia - conjugada a outros autores que discutem a problemática em estudo.
A fim de preservar a identidade das participantes e ter garantido o anonimato, privacidade e sigilo das informações observadas ou reveladas adotou-se um código alfanumérico representado pela letra "P" seguido do número correspondente e sequencial das entrevistas (P1, P2, P3... P17).
Em se tratando de pesquisa com seres humanos, seguiram-se os preceitos da Resolução nº 466/2012, sendo a etapa de campo conduzida de modo ético com aprovação e deferimento dos Comitês de Ética em Pesquisa, por meio dos pareceres de número 1.103.165 e 1.139.507.
RESULTADOS
Entre as dezessete participantes a média de idade foi de 30 anos. O número médio de gestações, partos e abortos foi de 2,4; 1,7 e 1,2, respectivamente. Ressalta-se que seis mulheres tiveram abortos prévios. Em média, o número de dias de internação durante a gestação de nove mulheres foi de 16 dias.
Os diagnósticos da cardiopatia prévia à gravidez concentraram-se em cardiopatia reumática (6) sendo três respectivamente concomitantes à sopro, insuficiência mitral e lesão valvar mitral; cardiopatia isquêmica (2) sendo uma acompanhada de arritmia; cardiopatia congênita (1); arritmia (2) sendo uma delas Síndrome de Wolff Parkinson-White; insuficiência mitral (4); miocardiopatia dilatada (2) com uma acompanhada de cardiopatia periparto.
Em resposta à questão norteadora e ao objetivo deste estudo, o movimento analítico hermenêutico permitiu a construção de duas Unidades de Significação: Terem sido cobradas pelos médicos por engravidarem; Saberem que o cardiologista dá o parecer, mas o obstetra é quem vai decidir a via de parto.
Estas Unidades advieram dos significados expressos a partir do movimento existencial da mulher portadora de cardiopatia nas relações de cuidado que estabeleceu com os profissionais que a acompanharam no cotidiano da gestação de risco.
Em Terem sido cobradas pelos médicos por engravidarem, as participantes fizeram referência à reação do cardiologista durante a consulta em que contaram sobre a gravidez:
Foi um susto para ela (médica), que não falou que não podia, que os riscos que eu estaria correndo, mas falou: Agora que você está no tratamento, você vai engravidar? (P1).
[...] o médico de lá da clinica olhou para mim e falou: você é maluca, você é doida, um coração deste tamanho ficar grávida? (P3).
A minha cardiologista, quando eu falei para ela que eu estava grávida, ela quase infartou no meu lugar, mas ela falou: já que aconteceu, tem que suspender todos os seus remédios e me encaminhou para cá (P10).
E até os médicos falaram assim: você sabia que não podia engravidar, eu falei: eu sei que é muita responsabilidade, eu sei que eu não poderia engravidar (P13).
Eu ouvi até de uma profissional de saúde: você tem problema de coração, é celíaca, para que você engravidou? (P17).
De outro modo, as mulheres explicitaram que os médicos cardiologistas alertavam antes de engravidarem sobre os riscos que corriam, pois a gestação atrapalharia o problema cardíaco. Compreenderam que apesar de em algumas situações eles não terem falado diretamente que não poderiam engravidar, falaram para tomarem muitos cuidados, conforme as significações:
[...] Porque os médicos falavam que eu não tinha mais condições de ser mãe, por causa do problema cardíaco que eu tenho, porque forçava a válvula mecânica e eu tenho a pressão alta, tenho colesterol alto [...] (P4).
[...] Porque o meu cardiologista falou assim para mim: se um dia você voltar a engravidar, você engravida até os quarenta, porque depois você não tenta mais não (P5).
Os médicos, eles sempre foram muito claros assim nessa parte em falar essas coisas, não me esconder, por isso que eu fiquei mais preocupada [...] Aí o médico falava que eu tinha risco de vida, não tinha como eu levar a gestação até o final, então teria que interromper enquanto estava no começo para poder fazer essa cirurgia de peito aberto que era muito mais arriscada [...] (P6).
[...] Porque ela falou assim: já que você tem esse risco, eu se eu fosse você não tentaria ter mais filhos. Ela falou para mim e para o meu esposo: o que você tem é sério e cada dia que passa pode ficar mais sério ainda (P14).
[...] (a determinação do médico) Era o não desde que eu tive a minha filha em 2007 depois que eu enfartei. Aí veio o laudo: você não pode isso [...] Eu ouvia muito assim: adota, é tão bonito (P15).
Em Saberem que o cardiologista dá o parecer, mas o obstetra é quem vai decidir a via de parto, as mulheres rememoraram que foram os médicos cardiologistas que deram o parecer quanto ao melhor tipo de parto em cada caso de acordo com a cardiopatia. Constituintes a seguir que denotam esta compreensão:
[...] o médico (obstetra) queria levar até 41 semanas para ser parto normal [...] (o cardiologista falou) Não, o seu parto tem que ser cesárea, porque com a dor eles vão ficar malucos, eles não vão saber quem salva, se pega o filho, se pega a mãe porque seu coração não vai agüentar, ele vai acelerar [...] eu não posso falar para eles faz o parto cesariana porque eu entendo de coração e eles entendem de bebê, eu tenho que dar o meu parecer, mas quem tem que decidir a via são eles (P2).
Não podia ser cesárea, a médica (cardiologista) falou para mim que a minha gravidez era melhor fazer parto normal do que uma cesárea, porque mais risco de hemorragia (P4).
Eles estavam com medo de fazer cesárea, foi normal (P9).
Primeiro foi normal, eu fiz tudo que eles pediram [...] só que como não teve progressão, eu tive que fazer cesárea (P11).
A pressão 23x 10, o médico falou: então vamos fazer o parto. Eu falei: doutor é arriscado? Ele falou: é, se você confia em Deus é o momento de você orar, pedir a ele. A gente está aqui para fazer o melhor, a gente faz de tudo para poder salvar a mãe e a criança (P12).
A doutora que me atendeu aqui na emergência achou melhor eu conversar com a minha doutora do parto, eles entraram em um acordo para poder me internar e me induziram (P14).
O cardiologista me indicou o parto normal com anestesia... eu cheguei aqui a médica: você é uma benção, já veio preparada, já está com quatro de dilatação (P15).
É cesariana. Eu preferia o normal, mas como teve que fazer esse protocolo por causa da diabetes gestacional, então a gente tem que se submeter (P17).
DISCUSSÃO
A hermenêutica em Martin Heidegger como compreensão interpretativa do ser-aí-mulher-que-gestou-sendo-portadora-de-cardiopatia alcançou o desvelamento dos sentidos que se configuram no referencial teórico como publicidade, impropriedade, impessoalidade, ocupação e ser-com.
Ao gestar sendo-portadora-de-cardiopatia se abrem para a mulher possibilidades de relações próprias da condição de uma gestação de alto risco, as quais estabelece consigo, com seus familiares e com os profissionais que dela cuidam. Estas aproximações aos conceitos heideggerianos desvelam respectivamente relações de cuidado em seu mundo próprio, mundo circundante e mundo público8.
Tais dimensões de mundo não se conjugam no aspecto geográfico, mas como instâncias ontológicas - do Ser - em que a mulher se vê diante de si mesma com possibilidades de ser própria, tomando decisões e se responsabilizando ou delegando a outros entes que a circundam tal cuidado. Estes outros podem estar mais próximos ou mais afastados no caráter do público8.
Ao descobrir-se grávida foi vista pelo prisma da cardiopatia e se mostrou na publicidade regida pelo obscurecimento desde a revelação da gravidez ao médico, porquanto o diálogo profissional privilegiou os aspectos factuais da gestação de risco sem se atentar ao fenômeno, ou seja, de como foi para a mulher gestar-sendo-portadora-de-cardiopatia. Assim, a relação assistencial limitada à condição de risco dominou a possibilidade da relação existencial que considera também as subjetividades na perspectiva do relacionamento intersubjetivo.
O cotidiano de cuidados ao ser-aí-mulher contribuiu para o movimento existencial de velamento de si na impropriedade. No acompanhamento da gestação "tudo" já estava decidido pelo "todos" representado pelos protocolos vigentes e pelos diálogos técnicos contemplados pela tradição. Estas questões ditavam para ela e por ela a possibilidade do não e do sim; e afastavam-na de ser ela própria em sua gestação.
Em paralelo, impessoalmente, reproduziu em sua fala classificações diferenciadas do risco a partir da compreensão que possuíam pelo relato dos médicos. Para a ciência que funda o modelo biomédico assistencial, a classificação do risco depende do grau de capacidade funcional do sistema cardiovascular: quanto maior a insuficiência do órgão mais arriscado se torna engravidar, gestar, parir e nascer com disfunções3,9. No nivelamento que classifica as gestantes portadoras de doença cardíaca, o originário perde seu valor singular e tudo se torna "nivelado como algo de há muito conhecido". A impessoalidade que afasta o ser tornando-o nivelado reafirmam o público8:184.
Entretanto, cabe ressaltar que a mulher não se mostrou impessoal e imprópria deturpando ou distorcendo o que compreendeu a partir da publicidade da gestação de risco. Ela se movimentou existencialmente assim por serem os modos que vigoram na convivência do mundo público e que a assegura, pois 'todas' fazem como ela estava fazendo8.
A avaliação de uma gestação em mulheres portadoras de cardiopatia no contexto multidisciplinar de aconselhamento e manejo, consiste em estratificar e estimar o risco gestacional informando-o à mulher e orientando-a caso decida planejar ou evitar a gravidez. Destaca-se neste processo diminuta atenção aos valores familiares e culturais quando comparada à valorização do impacto de uma gestação no curso da doença de base10.
Em seu mundo circundante - o qual fez vir ao encontro a partir de ser-aí-mulher-portadora-de-cardiopatia - desvelou-se o modo de ser cotidiano da ocupação com o acompanhamento ao ciclo gravídico-puerperal no qual lidou com o risco de gestar. Sendo assim, ocupou-se junto ao encaminhamento à instituição de porte para o risco gestacional, junto às consultas com diversos profissionais, junto aos medicamentos mantidos, introduzidos ou suspensos para a cardiopatia, junto aos exames e junto às internações, conforme orientam e recomendam os manuais técnicos3.
Por meio desta ocupação, as demais pessoas do mundo circundante se aproximaram, desvelando-se o sentido de ser-com, em que estabeleceu relações de preocupação. Na hermenêutica heideggeriana, preocupação diz respeito a um modo de ser que se estabelece em toda e qualquer relação humana, podendo se apresentar como relação de preocupação deficiente e positiva8.
Na relação estabelecida com os médicos desvelou-se o sentido da preocupação deficiente8 denotando a indiferença para com a gestante, uma vez que esta se compreendeu cobrada pelos médicos por engravidar. O foco da atenção profissional cardiológica e obstétrica foi centrado no risco gestacional por cardiopatia e não na mulher, no ser-em-si. Desde que souberam da gravidez, os profissionais mostraram-se no modo da ocupação que vigora no cotidiano assistencialista. A preocupação profissional não projetou a mulher para o autocuidado. A promoção à saúde manteve-se velada no ambiente hospitalar.
Em face disto, as perspectivas dos profissionais se direcionaram às condutas prescritivas de seguimento das gestações de risco, dispondo sobre as possibilidades da mulher, tutelando-a. Nesta relação, os profissionais se mostraram como ser-com "desconsiderado que conta os outros sem levá-los em conta seriamente, sem ter algo a ver com eles"8:182.
Porquanto, encontravam-se movidos pela técnica como interpelação que se sobrepõe ao ser11, ou seja o modelo biomédico predominou sobre as subjetividades como meio e fim para alcançar melhores resultados na perspectiva do cuidado pretendido pela tradição obstétrica à gestação de risco.
Nesta perspectiva, detiveram o domínio técnico sobre o controle medicamentoso, laboratorial, imagenológico, cirúrgico, de interrupção da gravidez, de decisão sobre indução do parto e via do mesmo, secundando a mulher às tecnologias. Isto porque "este querer dominar torna-se tanto mais urgente quanto mais a técnica ameaça a escapar do controle do homem"11:376.
Contudo, por mais valorizada que seja a técnica, é interessante registrar que no contexto da gestação de alto risco por diabetes mellitus como condição crônica tal qual a doença cardíaca, cuidados essenciais no pré-natal foram negligenciados. O estudo que analisou 50 prontuários de gestantes diabéticas evidenciou ausência de avaliação da glicemia, pressão arterial, altura uterina e batimentos cardíacos fetais em 32% das pacientes, além de 60% das mulheres não haverem participado de atividades de educação em saúde12.
O descumprimento das orientações fornecidas pela equipe de saúde e a dificuldade para aceitar o diagnóstico configuram como os principais motivos de não adesão ao tratamento de gestantes diabéticas. Sugere-se a partir desta evidência que a comunicação entre o profissional e a mulher possa se dar de forma mais efetiva, na perspectiva da abertura para o diálogo, buscando-se ouvir e compreender dificuldades vivenciadas, crenças e valores. Tais dificuldades podem advir das situações familiares junto aos afazeres domésticos, condições socioeconômicas, privações de lazer e outras limitações13,14.
De outro modo, as internações frequentes durante o ciclo gravídico-puerperal de mulheres portadoras de cardiopatia, despertam sentimentos de medo, estresse, ansiedade, dúvidas, tristeza e isolamento social. As interações maiores se dão com a equipe multiprofissional, pois os familiares nem sempre têm a possibilidade de estarem presentes15. Destaca-se a dificuldade da interação médico-paciente, especialmente quando as condições clínicas são imprevisíveis no curso gestacional e no parto, dada a labilidade da condição cardíaca.
A par das percepções acerca das inter-relações durante as internações de gestantes de alto risco, um estudo foi conduzido com 52 mulheres e 26 médicos. Destes, 50% tiveram dificuldades em ser empáticos e 35% julgam importante a presença de psicólogos como mediadores ou facilitadores da comunicação e como um suporte emocional para os pacientes e equipe. A maioria dos profissionais sentiu que deveria prestar mais atenção às pacientes, oferecendo-lhes maior consideração, encorajando-as mais frequentemente e sendo mais próximos emocionalmente16.
CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA
Ao desvelar o cotidiano das relações assistenciais do ser-aí-mulher na gravidez de alto risco por doença cardíaca, encontrou-se que este se revela na publicidade, impropriedade, impessoalidade, ocupação e ser-com.
Tais indicações apontam direcionamentos importantes que implicam na prática clínica do gestar e do parir. Evidenciou-se que os profissionais mais diretamente ligados às gestantes de alto risco foram os médicos e que a relação assistencial foi pautada na ótica fisiopatológica de acompanhamento ao ciclo gravídico-puerperal. O diálogo e os pronunciamentos médicos anunciados por meio dos significados das participantes sugerem a necessidade de ampliação do olhar clínico que considere também as subjetividades inerentes ao Ser de quem se cuida.
Em paralelo, cabe ainda mencionar a invisibilidade da equipe de enfermagem. É certo que a condição patológica de base direciona a mulher majoritariamente para o acompanhamento pré-natal junto à equipe médica, porém tanto no nível de atenção secundário quanto no terciário, a equipe de enfermagem representa os profissionais que estão com as gestantes pelo maior tempo das 24 horas do dia e em todos os dias da semana.
Se por um lado os resultados deste estudo apontam a necessidade de transcender a relação assistencial pautada no modelo biomédico para uma relação existencial pautada na consideração da mulher como ser-aí dotada de possibilidades, por outro anuncia a importância do cuidado de enfermagem congruente às necessidades objetivas e subjetivas de gestantes portadoras de cardiopatia na perspectiva de se fazer percebido e anunciado pelo ser-cuidado.
Divisa-se ainda com estes apontamentos, sugestionar a aplicabilidade na prática assistencial de métodos de cuidados que considerem a esfera ontológica, considerando os conceitos da fenomenologia Heideggeriana como importante subsídio na relação assistencial-existencial entre gestantes de alto risco e profissionais de saúde em face do cuidado que não é fim, mas sim meio que contribui para o poder-ser mais próprio da mulher.
REFERÊNCIAS