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ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 20, Número 4, Out/Dez - 2016



DOI: 10.5935/1414-8145.20160085

REFLEXÃO

Autonomia profissional da enfermeira: algumas reflexões

Cristina Maria Meira de Melo 1
Tatiane Cunha Florentino 1
Nildo Batista Mascarenhas 2
Karolline Santos Macedo 1
Mariana Costa da Silva 1
Sara Novaes Mascarenhas 1


1 Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil
2 Universidade do Estado da Bahia. Senhor do Bonfim, Bahia, Brasil

Recebido em 18/03/2016
Aprovado em 04/07/2016

Autor correspondente:
Nildo Batista Mascarenhas
E-mail: nildomascarenhas@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Refletir sobre a autonomia profissional da enfermeira no contexto do modelo assistencial biomédico.
MÉTODOS: Reflexão construída a partir do referencial teórico sobre o processo de trabalho em saúde e em enfermagem.
RESULTADOS: Identificou-se que no modelo biomédico a autonomia profissional da enfermeira é limitada e condicionada pelas decisões do profissional médico (cujo processo de trabalho ordena o consumo de ações e serviços de saúde), pela frágil construção de um corpo de saberes próprio à profissão e pela crescente divisão técnica do trabalho em saúde e em enfermagem.
CONCLUSÃO: A enfermeira poderá ampliar sua autonomia profissional em outros modelos assistenciais que permitam a construção de saberes próprios ao campo da enfermagem, como os campos da Saúde Mental, da Obstetrícia e da Atenção Primária em Saúde. Esses são espaços propícios para a enfermeira desenvolver uma prática profissional autônoma e consoante com o cuidado integral em saúde.


Palavras-chave: Autonomia Profissional; Enfermeira; Trabalho

INTRODUÇÃO

O objetivo desse artigo foi refletir sobre a autonomia profissional da enfermeira no contexto do modelo assistencial biomédico. Este modelo, contemporaneamente considerado hegemônico, impacta na organização do processo de trabalho em saúde e, consequentemente, restringe a autonomia técnica da enfermeira. Para iniciar essa reflexão, delimitou-se o significado dos termos "autonomia" e "autonomia profissional".

Na sua acepção mais ampla, o termo autonomia refere-se à capacidade de uma pessoa ou grupo em fixar e submeter-se a suas próprias normas e leis, de modo a "imprimir orientação às suas ações, por si mesmo, e com independência"1:467. Nesses termos, a autonomia é concebida como a capacidade de autodeterminação de um sujeito ou coletividade1. Vale ressaltar que a autonomia de uma pessoa ou grupo é exercida numa sociedade e, por isso, não é possível excluir a influência do contexto social e de suas características particulares em cada tempo e lugar2.

Em razão disso, a autonomia não deve ser compreendida como algo absoluto, ilimitado e autossuficiente, mas como uma "condição" que se concretiza no mundo e não apenas na consciência dos sujeitos. Nessa perspectiva, a construção da autonomia "(...) envolve dois aspectos: o poder de determinar a própria lei e também o poder ou capacidade de realizar"2:12.

Com relação à autonomia profissional, Eliot Freidson3 afirma que ela é procurada por todos os grupos profissionais, sendo representada pela liberdade de uma profissão em relação a outras e pela liberdade desta para executar o trabalho da maneira que achar conveniente. Neste sentido, a autonomia profissional deve ser expressa no componente técnico do trabalho, demandando dos profissionais o controle sobre as intervenções e procedimentos técnicos que compõem suas atividades3. Na perspectiva desse mesmo autor "a autonomia técnica está na essência daquilo que é único às profissões", sendo que essa autonomia "confere [...] o meio pelo qual um profissional pode ser 'livre', mesmo se for dependente do Estado para estabelecer e sustentar sua autonomia"3:65-66.

Considera-se que certo grau de autonomia é fundamental para o desenvolvimento do trabalho profissional, especialmente no campo da saúde, no qual o trabalho é coletivo e desenvolvido de forma compartilhada ou complementar por diferentes categorias profissionais e trabalhadores que têm formação e práticas distintas. No caso de profissionais, o exercício é regulado por legislação própria, que permite o controle parcial do processo de trabalho e algum grau de autonomia profissional4.

No campo da enfermagem, discute-se que a obtenção de um grau elevado de autonomia profissional pela enfermeira poderá conferir valorização e reconhecimento social sobre seu trabalho e sobre a profissão. Contudo, pondera-se que na sociedade brasileira o trabalho da enfermeira é organizado e executado a partir de determinações históricas, sociais e sanitárias, dentre as quais o modelo assistencial biomédico5.

O modelo assistencial biomédico ainda é hegemônico no Brasil, com base em sustentação política, ideológica e econômica sólida. Esse modelo baseia-se na demanda espontânea, na intervenção sobre a doença e o corpo doente, como também em procedimentos e serviços especializados. Ademais, o modelo biomédico tem como lócus privilegiado o hospital e como principal agente o médico, sobretudo o especialista, cujo trabalho é complementado pelos nomeados paramédicos6.

Sob a influência da organização capitalista do trabalho no setor de saúde, o modelo biomédico reforça a posição do médico como ordenador do processo de trabalho e consolida sua hegemonia no ato assistencial. Além disso, nesse modelo assistencial, o médico é socialmente e legalmente reconhecido como detentor do saber no campo da saúde e assume posição central no ato assistencial, situação esta que coloca todos os demais profissionais da saúde executando suas práticas como subsidiárias à prática médica5.

No desenvolvimento histórico das profissões da saúde, a emergência e consolidação do modelo biomédico, somadas ao aprofundamento da divisão técnica do trabalho médico, demandaram força de trabalho numerosa e qualificada para assegurar a continuidade da atenção e a implementação das ordens médicas. Neste contexto, a profissão da enfermeira foi conformada para responder a essa demanda e, principalmente, sustentar o trabalho dos médicos no combate à doença e no controle biológico e social dos corpos7.

À luz dessas considerações iniciais, a reflexão construída neste artigo partiu do pressuposto de que no modelo biomédico e no contexto da reestruturação produtiva do trabalho flexibilizado e precarizado, a autonomia profissional da enfermeira é limitada e por vezes anulada no interior das organizações de saúde. Isso se explica porque, além da sua prática técnica ser determinada a partir da prática médica, a enfermeira ocupa nas relações sociais de produção o lugar de funcionária assalariada, detentora apenas da força de trabalho e destituída dos meios de produção e de outra forma de capital, conforme afirma Santos5. Tal situação impõe à enfermeira a venda da sua força de trabalho ao capital, atendendo às exigências de quem a emprega e também aos determinantes sociais do seu trabalho, com destaque para a reestruturação produtiva e a precarização do trabalho.

No contexto da precarização do trabalho, a enfermeira se torna ainda mais vulnerável e menos autônoma, pois se submete a condições de trabalho inadequadas, baixos salários, jornadas extensas e intensas de trabalho, além de assumir múltiplas e distintas atividades (polivalência no trabalho) e acumular vínculos de trabalho como forma de aumentar os rendimentos5,8.

Cabe salientar que no campo da saúde a autonomia dos profissionais não é absoluta, dado que o processo de trabalho é coletivo e o seu objeto de trabalho (as necessidades humanas socialmente construídas) é complexo e demanda ação coletiva e compartilhada no trabalho das distintas profissões5,9. Sendo assim, os profissionais da área devem trabalhar com certo grau de autonomia, pois cada ato assistencial é singular e requer a decisão de condutas adequadas às necessidades de saúde apresentadas pelos usuários.

Pressupõe-se também que não há possibilidade de autonomia plena por parte das enfermeiras, pois essa anularia o sentido técnico e social do seu trabalho, que é atender às necessidades de saúde demandadas pelos usuários, e impediria que suas atividades fossem tecnicamente subordinadas à prática médica, como definido na organização do trabalho no modelo taylorista-fordista. Por outro lado, para executar seu trabalho, especialmente o componente gerencial, a enfermeira exerce algum grau de autonomia profissional, principalmente para tomar decisões e definir normas e rotinas internas, o que denota controle sobre o componente técnico do seu trabalho e a apropriação de um saber próprio para executar o processo de trabalho gerencial.

AUTONOMIA PROFISSIONAL DA ENFERMEIRA NO MODELO BIOMÉDICO

Para refletir sobre a autonomia profissional da enfermeira no modelo biomédico é preciso, inicialmente, caracterizar os elementos predominantes do processo de trabalho em saúde.

O processo de trabalho em saúde compõe o setor de serviços, sendo executado por diferentes categorias profissionais com funções técnicas variadas e cujas ações se conectam e se complementam. Uma peculiaridade sua é que exige uma intensa interação entre profissionais de saúde e usuários, como também entre os próprios profissionais. Esta característica revela sua natureza coletiva e a necessidade de garantir espaços de autonomia para que os profissionais possam responder às demandas e enfrentar as incertezas que envolvem o encontro com os usuários. Nesse sentido, a autonomia é necessária no processo de trabalho em saúde e sua abrangência é variável a depender da legitimidade técnica e social do saber que fundamenta a ação dos profissionais10.

No modelo assistencial biomédico, o médico é o profissional que goza de maior grau de autonomia no processo de trabalho em saúde, agindo como ator central e determinando o processo de trabalho dos demais profissionais da área. Peduzzi10 elucida que cada campo profissional da saúde constitui um processo de trabalho peculiar, com objetos e instrumentos próprios. Entretanto, no conjunto, se estruturam sob a normatividade médica e, em consequência, ocupam um lugar secundário no processo de trabalho, já que esses organizam e executam suas atividades a partir das decisões e da demanda criada pelos médicos no processo de trabalho assistencial10.

Isso resulta da organização capitalista do trabalho na saúde, na qual o médico desenvolve a função de ordenador do consumo de serviços e ações, impulsionando a indústria da saúde e gerando a demanda por consumo de medicamentos, insumos e procedimentos5. Em razão disso, os médicos têm maior poder de decisão no interior do processo de trabalho em saúde, fato que lhes confere maior autonomia técnica, pois essa "encontra expressão na possibilidade de tomada de decisão e não na implementação da decisão"10:46.

Importa destacar que a divisão técnica do trabalho em saúde, no bojo do modelo biomédico, reforçou o papel dominante e determinante do médico no campo da saúde e reservou a esse profissional o núcleo "mais intelectual" (diagnóstico de doenças e prescrição de medicamentos, além de certas técnicas privilegiadas) do processo de trabalho em saúde, enquanto à enfermeira coube tarefas "mais manuais" e complementares, voltadas para assegurar a continuidade do processo terapêutico9.

Embora no modelo biomédico seja evidente a centralidade do médico no processo de trabalho em saúde, isso não significa que esse profissional é autossuficiente e goza de autonomia profissional plena, pois "a autonomia não é um atributo absoluto, uma vez que, além de imperativo técnico, também reflete a dimensão social do modo de inserção dos agentes na organização dos serviços e nos processos de trabalho"10:47. Ademais, "à medida que ambas as dimensões, técnica e social, mudam, também se reestrutura a autonomia profissional"10:47.

Por exemplo, ao passo que nos serviços de saúde, especialmente nos serviços hospitalares, registra-se uma crescente incorporação de tecnologias que auxiliam a delimitação de diagnósticos e tratamentos de doenças, há uma perda relativa de autonomia profissional por parte do médico11, já que se amplia o controle sobre o seu processo de trabalho. Além disso, "tanto o usuário como os profissionais não médicos podem ter acesso a informações e procedimentos que antes se mantinham apropriados exclusivamente pelo médico, e, com o uso intermediário da tecnologia, passam a ter transparência para os demais"10:47.

Ainda que na execução do trabalho médico esteja assegurado um elevado grau de autonomia profissional10, sua execução é compartilhada com outras categorias profissionais e com o usuário, que "não se limita a uma entidade passiva à espera da ação transformadora do trabalho, mas ao contrário é apreendido em sua potência, possui dinamismo capaz de incidir sobre todo o ciclo produtivo"11:191.

Essas constatações revelam que, no modelo assistencial biomédico, a autonomia profissional dos médicos é relativa, pois a contribuição do usuário e dos demais profissionais de saúde sempre será necessária para o alcance da finalidade do trabalho em saúde. Além disso, é preciso lembrar que os distintos trabalhos especializados em saúde constituem processos conexos e complementares que, na sua conjugação, ampliam as possibilidades de atenção e reconhecimento às necessidades de saúde dos usuários10.

Portanto, considerando a natureza coletiva do trabalho em saúde, depreende-se que nesse processo de trabalho há diferentes graus de autonomia profissional. Esses estão relacionados à legitimidade técnica e social do saber que fundamenta a ação e ao poder de decisão do profissional na execução do seu trabalho. O fato dos médicos terem maior poder de decisão e maior autonomia técnica não exclui o fato de que os demais profissionais da saúde, particularmente as enfermeiras, também decidem e definem condutas para executar seu trabalho e enfrentar as incertezas que permeiam a atenção à saúde da população.

Em relação à enfermeira, seu trabalho no modelo biomédico garante a intervenção continuada sobre os corpos doentes, tendo como base para a organização do processo de trabalho assistencial as decisões tomadas pelos médicos e expressadas a partir da definição do diagnóstico e da prescrição médica. Por outro lado, no modelo biomédico a enfermeira desfruta de autonomia profissional, mesmo que limitada, pois, como lembra Peduzzi10, no processo de trabalho em saúde não há possibilidade de se desenhar um plano assistencial prévio e definitivo, fato que reserva a essa profissional um espaço de julgamento, decisão e criatividade, e cujas ações vão interferir na tomada de decisão do médico quanto ao diagnóstico e tratamento. Ademais, no interior da divisão social e técnica do trabalho em saúde, cada área profissional constitui saberes e atividades próprias e apenas parte dessas ações é regulamentada por meio de leis do exercício profissional10.

Ressalta-se que, no Brasil, a Lei do Exercício Profissional em Enfermagem12, em que pese sua importância na delimitação das fronteiras formais e legais do campo, não apoia a expansão ou consolidação da autonomia profissional da enfermeira pelos seguintes motivos:

  • Esta Lei é frágil e o seu conteúdo não explicita com clareza as atribuições de cada categoria de trabalhadoras do campo da enfermagem;

  • Não contempla a natureza coletiva do trabalho em saúde e em enfermagem;

  • Seu conteúdo é desatualizado, considerando as mudanças na produção do conhecimento técnico-científico e a constituição do Sistema Único de Saúde;

  • Não considera que a autonomia de uma profissão está relacionada à maior ou menor autoridade técnica, o que não é estabelecida apenas tecnicamente;

  • Não considera que a autonomia de uma profissão também se relaciona com a amplitude da dimensão intelectual do trabalho10 e com a legitimidade do saber que fundamenta a execução do trabalho profissional. Convém lembrar que no modelo biomédico, o profissional médico é reconhecido socialmente como detentor do saber no campo da saúde, sendo que a dimensão intelectual do seu trabalho se sobrepõe às das demais profissões da saúde10. Nega-se, assim, que tanto o trabalho da enfermeira quanto o trabalho médico são, em muitas circunstâncias, um trabalho manual e mesmo artesanal, relembrando que antes de ser ciência, a medicina foi arte, tanto quanto a enfermagem. Apesar disso, devido ao lugar de poder social que os médicos ocupam, os saberes que fundamentam sua ação também são legitimados socialmente e sobrepõem-se aos dos demais profissionais da saúde;

  • A maioria das normas e leis que regulamenta a profissão da enfermeira é realizada sob hegemonia do modelo biomédico e, por isso, tanto tais normas quanto a prática da enfermeira são subsidiárias desse modelo assistencial;

  • Por fim, no modelo biomédico, os saberes apropriados pela enfermeira para fundamentar a execução do seu trabalho estão intimamente relacionados à medicina, e é ainda frágil a construção de um corpo singular de saberes e práticas da enfermeira.

Nesse contexto, considera-se que no modelo assistencial biomédico a autonomia profissional da enfermeira está cerceada pelas demandas direcionadas pela decisão do médico, cujas ações nucleares de diagnose e prescrição medicamentosa tornam o médico o principal mediador entre as necessidades dos usuários e a oferta de serviços10. Isto contribui para que esse profissional permaneça numa posição hegemônica e seu trabalho com maior valor econômico e social, fato que reduz a possibilidade de ampliação da autonomia profissional da enfermeira.

No hospital, onde se centra a assistência no modelo biomédico, o conjunto de saberes e atividades próprias que poderiam conferir autonomia à enfermeira relacionam-se à organização do espaço e ao gerenciamento tanto dos recursos necessários à articulação do processo de trabalho em saúde quanto do processo de trabalho em enfermagem. No entanto, o trabalho gerencial da enfermeira é invisível, dado que esta profissional não é paga pela execução das atividades gerenciais do seu trabalho5.

Convém destacar que no Brasil, assim como em outros países da América Latina, registra-se uma progressiva ampliação das fronteiras do trabalho da enfermeira, sobretudo na Atenção Primária em Saúde (APS). Isso decorre, especialmente, das rápidas mudanças no perfil sociodemográfico e epidemiológico da população, como também da incorporação acelerada de conhecimentos e tecnologias ao processo de trabalho em saúde e em enfermagem13,14. Como resultado dessa ampliação, incorporam-se práticas ao processo de trabalho da enfermeira que antes eram exclusivas de outras categorias profissionais, a exemplo da prescrição de medicamentos.

A prescrição de medicamentos por enfermeiras brasileiras está prevista na Lei do Exercício Profissional da Enfermagem e em outros dispositivos legais do Conselho Federal de Enfermagem, sendo realizada exclusivamente na APS e conforme os protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde ou por instituições congêneres. Embora a prescrição de medicamentos por enfermeiras esteja legalmente prevista desde 1987, contemporaneamente essa prática é pouco legitimada e discutida no campo da enfermagem, além de ter forte oposição da categoria médica15 e ser comumente reduzida à "transcrição" de medicamentos16, dado que a enfermeira não pode alterar a posologia ou indicar outro medicamento que não esteja previsto nos protocolos que embasam o seu ato prescricional17.

Vale esclarecer que o limite imposto ao ato prescricional da enfermeira não confere maior autonomia profissional, já que essa prática, por ser uma conduta embasada em um processo de análise e decisão dentro dos parâmetros estabelecidos em protocolos, não garante intervir nos problemas que ultrapassam os limites dos protocolos. Ou seja, mesmo que a enfermeira identifique a necessidade de alterar a posologia ou indicar outro medicamento que não esteja previsto nos protocolos, é necessário que o usuário seja encaminhado ao profissional médico para que este adeque a terapêutica farmacológica.

Assim, questiona-se: o quanto o ato de indicar medicamentos apoiado em parâmetros técnico-científicos de autoridades sanitárias aporta ao grau de autonomia da enfermeira, especialmente quando o protocolo não atende às necessidades apresentadas pelo usuário? Chama-se o médico ou não? Este ato, entre outros similares, confere autonomia à enfermeira a partir de que modelo de cuidado?

Um estudo internacional sobre a prática da enfermeira na APS do Sistema Nacional de Saúde inglês (NHS)18 identificou que a prescrição de medicamentos por enfermeiras foi favorável ao NHS porque se reduziram os custos da assistência à saúde da população, devido a menor remuneração da enfermeira em comparação ao médico. Já para as enfermeiras, houve melhor reconhecimento profissional e aumento do poder técnico18.

No entanto, ainda que reconhecendo a ampliação do poder técnico da enfermeira, registraram-se como resultados desfavoráveis a sobrecarga de trabalho, pois a enfermeira continua a executar atividades rotineiras tradicionais e as práticas clínicas adicionais; a inclusão da prescrição de medicamentos no processo de trabalho da enfermeira não correspondeu a um aumento salarial equivalente; e a permanência de conflitos no trabalho com outros profissionais e com médicos, que não reconhecem a capacidade técnica da enfermeira. Somado a isso, "se, por um lado, o NHS incentiva essa prática (a prescrição de medicamentos por enfermeiras), por outro, nos serviços de saúde, a necessidade de supervisão ("mentoring") manteria o controle da prática na categoria médica"18:188.

Tais resultados apontam que, mesmo com maior poder técnico, as enfermeiras inglesas continuam limitadas e não conquistaram maior autonomia profissional ao prescrever medicamentos dentro de um modelo assistencial biomédico e com relações de poder que se mantêm inalteradas. Sendo assim, a perspectiva de que "(...) a prática prescricional, no cotidiano da consulta de enfermagem traz autonomia e valorização profissional"16:747 deve ser questionada, pois o poder de decisão da enfermeira ao prescrever medicamentos com base em protocolos é limitado e não lhe possibilita agir com autonomia quando a demanda do usuário ultrapassa o limite dos protocolos. Por fim, este panorama conduz a questionar o que a nomeada prática avançada da enfermeira, em voga em muitos países, contribui para atribuir autonomia técnica para a enfermeira.

Com base no exposto, afirma-se que a autonomia profissional da enfermeira poderá ser ampliada em outro modelo assistencial, em razão dos limites impostos no modelo assistencial biomédico. Para tanto, é fundamental identificar, construir e apropriar-se de conhecimentos que sejam próprios ao campo da enfermagem.

No Brasil, a Atenção Primária em Saúde, especialmente a Estratégia Saúde da Família, os Centros de Atenção Psicossocial e a atuação em enfermagem obstétrica são identificados como campos abertos para as enfermeiras construírem saberes próprios e ampliarem sua autonomia profissional, já que nestes espaços é possível construir conhecimentos e práticas pautadas na promoção da saúde, no cuidado, em conhecimentos alicerçados pela psicologia, antropologia e sociologia, numa relação estabelecida para além do patológico. Tais campos de atuação e de saberes não são valorizados no modelo assistencial biomédico e se constituem em espaços de construção de práticas e de produção de conhecimento singulares por parte das enfermeiras19.

Quando as enfermeiras executam práticas direcionadas para a promoção da saúde na APS extrapolam a ênfase na cura da doença do modelo biomédico e potencializam as ações desenvolvidas neste âmbito da atenção à saúde, de modo a projetar sua prática "com mais autonomia em relação à prática médica, consoante com o conceito ampliado de saúde e com o cuidado integral"19:993.

Cabe ressaltar que as práticas em enfermagem desenvolvidas na perspectiva da promoção da saúde são parte da APS e contribuem para a consolidação da promoção da saúde nesse âmbito. Nesta direção, os cuidados em enfermagem executados na perspectiva da promoção da saúde desenvolvem a capacidade de indivíduos, famílias e comunidade para identificar suas necessidades de saúde e participar, conjuntamente, na busca por soluções19. Em outras palavras, as enfermeiras passam a contribuir com a construção dos projetos de vida dos usuários, seja em âmbito individual ou coletivo.

Logo, a promoção da saúde é uma estratégia importante para ampliar a autonomia profissional da enfermeira, pois projeta seu trabalho para além dos limites impostos pelo trabalho médico e aproxima o processo de trabalho em enfermagem à promoção da vida. Não se pode deixar de dizer que a promoção da saúde é um campo que possibilita às enfermeiras construir um saber próprio, de modo a ressignificar o seu processo de trabalho e ampliar as fronteiras da sua autonomia profissional.

Para além da promoção da saúde, o trabalho da enfermeira nos campos da saúde mental e da obstetrícia guardam potencialidades de atuação com maior grau de autonomia. O contexto atual das políticas de saúde, influenciado pelo cenário político-econômico neoliberal, levou o Estado a investir na assistência ao parto pelas enfermeiras obstétricas, que envolve tecnologias leves e de baixo custo, em confronto com as representações e forças hegemônicas da categoria médica na assistência obstétrica20. Tornou-se, então, favorável ao resgate do lugar de poder que a enfermeira tem ao atuar junto à mulher no processo de partejamento, processo este que segue a natureza do corpo da mulher e serve, fora do conhecimento da medicina, para apoiar, aliviar e acompanhar a mulher num momento de cuidado de reprodução da vida.

Já no âmbito da saúde mental, a Reforma Psiquiátrica e o Movimento Antimanicomial apontam os campos em que novos saberes e práticas podem ser desenvolvidos, o que vai exigir das enfermeiras o desenvolvimento de pesquisas na direção da construção de práticas singulares no cuidado às pessoas e suas famílias.

Para além de favorecer a autonomia da enfermeira, a promoção à saúde poderá contribuir para a construção de projetos terapêuticos nos quais os usuários tenham um maior grau de autonomia sobre os seus corpos, de modo a escolher os hábitos de vida que considerem saudáveis e responsabilizarem-se também pelo seu processo saúde-doença-cuidado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões deste estudo permitem afirmar que no contexto do modelo assistencial biomédico, a autonomia profissional da enfermeira é limitada e condicionada pelas demandas do trabalho médico. Os motivos principais para isso são: 1) a organização capitalista do trabalho no setor saúde, reforçada pelo modelo assistencial biomédico, onde o médico assume lugar central no processo de trabalho em saúde como ordenador do consumo de ações e serviços de saúde; 2) no modelo biomédico, os saberes que fundamentam a execução do trabalho médico são socialmente legitimados, sobrepõem-se ao dos demais campos profissionais da saúde e consolidam a autoridade técnica da prática médica no ato assistencial. Ressalta-se que embora o médico tenha um elevado grau de autonomia profissional, ela não é absoluta, pois o seu processo de trabalho é também compartilhado com os demais profissionais da saúde e com os usuários.

Deste modo, no modelo biomédico não há espaço para a enfermeira ampliar sua autonomia profissional, pois o processo de trabalho dessa profissional continuará condicionado às demandas impostas pelo trabalho médico. É preciso afirmar que mesmo quando as enfermeiras incorporam a prescrição de medicamentos e outras práticas técnicas ao seu processo de trabalho, inclusive os que antes eram privativos do trabalho médico (a exemplo da execução técnica do eletrocardiograma e do cateter central de inserção periférica, como ocorre no Brasil, e do ato anestésico, como ocorre em algumas regiões dos Estados Unidos), não há avanços para o campo da enfermagem, pois a execução destes atos depende de solicitação e aprovação médica e negam o que Eliot Freidson afirma ser um requisito da autonomia profissional: o componente técnico do trabalho de uma profissão não pode ser avaliado nem controlado por outras profissões em sua divisão do trabalho. Tais configurações são as novas formas de ampliar a divisão técnica do trabalho em saúde.

Como contraponto, a ampliação da autonomia profissional da enfermeira poderá se concretizar em outro modelo assistencial que lhe permita construir um campo de saber próprio que não seja subsidiário da prática médica. Nesse sentido, os campos da Saúde Mental, da Enfermagem Obstétrica e da Atenção Primária em Saúde são espaços privilegiados para a enfermeira desenvolver um corpo de conhecimentos singulares que possibilitem o desenvolvimento de uma prática mais autônoma e consoante com o cuidado integral de pessoas, famílias e comunidades.

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