ISSN (on-line): 2177-9465
ISSN (impressa): 1414-8145
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 10, Número 3, Jul/Set - 2006

ENSAIO

 

Cuidar de pessoas com tetraplegia no ambiente domiciliário: intervenções de enfermagem na dependência de longo prazoa

 

Take care of people with quadriplegia at home environment: long-term nursing interventions

 

Cuidar de personas con tetraplégia en el ambiente domiciliario: intervenciones de enfermería en la dependencia de largo plazo

 

 

Ana Paula ScraminI; Wiliam César Alves MachadoII

IEnfermeira, Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Estadual de MaringáPR; Enfermeira Auditora da Secretaria de Saúde de MaringáPR. e-mail: anapaulascramin@uol.com.br
IIEnfermeiro, Doutor em Enfermagem pela UFRJ, Docente Bolsista Funadesp de Produtividade em Pesquisa 2004/2006. e-mail: wilmachado@uol.com.br

 

 


RESUMO

O crescente índice de acidentes de trânsito e a violência urbana contribuem para o aumento de pessoas com seqüelas neurológicas graves na coluna vertebral, fenômeno com reflexos diretos na relação de dependência de suas vítimas com cuidados sistemáticos de enfermagem. O presente estudo tem como objetivo chamar a atenção para conhecimentos do âmbito da reabilitação que interessam à Enfermagem, de maneira a contribuir para a promoção do cuidado domiciliário de pessoas com lesão medular em nível cervical, envolvendo seus familiares e cuidadores. A coleta de dados fez-se por meio de um levantamento bibliográfico dos últimos 10 anos, mediante pesquisa nos bancos de dados Lilacs (1996-2006); Mediline (1996-2006), além de terem sido consideradas referências do estudo de origem. Efetuada a análise dos dados, conclui-se que é preciso ampliar nosso conhecimento sobre cuidado de longo prazo no contexto da reabilitação do cliente com lesão medular alta, para atender à demanda social, em especial compartilhando experiências cotidianas com cuidadores domiciliares.

Palavras-chave: Enfermagem em Reabilitação. Cuidado de Enfermagem. Pacientes Domiciliares. Tetraplegia. Promoção de Saúde.


ABSTRACT

The increasing rate of automobile accidents and the urban violence contribute to the growth in the number of persons with serious neurological injuries in the spinal cord, a phenomenon demanding systematic nursing care for these people. This study aims to focus attention on the rehabilitation acquirements that are of particular interest for the nursing professionals to provide homecare services to persons with spinal cord injuries, involving their families and homecare attendants. Data were collected by surveying publications of the last 10 years, found through data banks such as the Lilacs (1996-2006) and the Mediline (1996-2006), as well as through references of a study that has originated this article. Data analysis led to the conclusion that it is necessary to increase our knowledge on long-term nursing interventions in the rehabilitation process of a client with high-level spinal cord injuries, in order to attend to social demand, especially by sharing our daily experiences with domiciliary caregivers.

Keywords: Rehabilitation Nursing. Nursing Care. Homebound Persons. Quadriplegia. Health Promotion.


RESUMEN

El creciente índice de accidentes de automóviles y la violencia urbana contribuyen para el aumento en el número de personas con graves lesiones neurológicas en la médula espinal, un fenómeno que exige cuidados sistemáticos de enfermería para estas personas. Este estudio tiene como objetivo llamar la atención sobre los conocimientos de rehabilitación que interesan a la Enfermería para la provisión de cuidados domiciliarios para personas con lesión medular, involucrando sus familiares y cuidadores domiciliarios. Las informaciones fueron cosechadas a través de una búsqueda en las publicaciones de los últimos 10 años, accesando las bases de datos Lilacs (1996-2006) y Mediline (1996-2006), bien así las referencias de un estudio que ha originado este artículo. Después de analizar los datos, se llegó a la conclusión de que es necesario ampliar nuestro conocimiento sobre intervenciones de largo plazo en el proceso de rehabilitación del cliente con lesión medular alta, para atender a la demanda social, especialmente compartiendo nuestra experiencia diaria con los cuidadores domiciliarios.

Palabras clave: Enfermería en Rehabilitación. Atención en Enfermería. Personas Imposibilitadas. Cuadriplejia. Promoción de la Salud.


 

 

INTRODUÇÃO

Cuidar de pessoas com deficiência nos ambientes domésticos ou institucionalizados constitui tema relevante para a enfermagem contemporânea, pois envolve o domínio de um conhecimento pouco abordado em seus diversos níveis de formação profissional, não obstante as freqüentes demandas nos contextos de prática assistencial que requerem intervenções do enfermeiro junto aos clientes, familiares e cuidadores. Tal conhecimento é imprescindível para que não se recorra a improvisos, mas se adotem medidas terapêuticas de enfermagem e intervenções específicas para o cuidado de clientes com deficiência, de forma a enfocar a orientação no autocuidado com o máximo de aproveitamento do potencial de funcionalidade do cliente, assim como envolver familiares, pessoas significativas e cuidadores no processo de cuidar adequadamente desse segmento da sociedade 1.

O presente ensaio tem por objetivo chamar a atenção para conhecimentos do âmbito da reabilitação que interessam à enfermagem, de maneira a contribuir para a promoção do cuidado domiciliário de pessoas com lesão medular em nível cervical, envolvendo seus familiares e cuidadores. Foi realizado um levantamento bibliográfico dos últimos 10 anos, mediante pesquisa nos bancos de dados Lilacs (1996-2006) e Medline (1996-2006). Para tanto, foram utilizadas as seguintes palavras-chave: enfermagem em reabilitação, tetraplegia, cuidado domiciliário, promoção da saúde (rehabilitation nursing quadriplegia, domiciliary care, health promotion). Nas publicações encontradas, categorizaram-se abordagens relativas à relação entre o cuidado domiciliário e a dependência de longo prazo do cliente tetraplégico. Mediante análise dessas publicações, acrescidas das referências discutidas no estudo de origema, foi possível concluir que precisamos ampliar nosso conhecimento sobre cuidar no contexto da reabilitação para atender à demanda social.

 

VIOLÊNCIA QUE GERA NECESSIDADE DE CUIDADO

O tema violência, do ponto de vista de sua causa, é difícil de ser esgotado, em virtude, principalmente, dos múltiplos fatores que intervêm em sua gênese. Ao se incursionar por suas raízes, sejam as históricas, as econômicas ou as sociais, é possível mostrar quão diverso é o espectro que o constitui 2. Trata-se de um fenômeno biopsicossocial que tem seu espaço de criação na vida em sociedade. Embora não seja ele um problema específico da área da saúde, é sobre esta que vai recair o maior ônus de todas as suas conseqüências 3.

É praticamente unânime a idéia de que a violência é um complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial; portanto, para entendê-la, há que se apelar para a especificidade histórica. Daí se conclui também que, na configuração da violência se cruzam problemas da política, da economia, da moral, do direito, da psicologia, das relações humanas e institucionais e do plano individual 3. A este último acrescentamos o plano familiar e o coletivo que implicam em cuidados de enfermagem.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), ao publicar, em 2002, o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, estimou, para 2000, a taxa de 28,8 mortes violentas por 100 mil habitantes, em índice mundial ajustado por idade. Países de menor renda representaram 91,1% do total dessas mortes, percentual em que prevalecem os homicídios. Estes também variam por sexo e idade: 77% dos homicídios ocorrem entre os homens, e sua taxa é mais que três vezes superior à das mulheres, sendo maior nas faixas etárias de 15 a 29 anos (19,4 por 100 mil) e 30 a 44 anos (18,7 por 100 mil). Dos suicídios, 60% ocorrem entre homens, taxa que aumenta com a idade, sendo, na faixa etária de 60 anos ou mais, duas vezes maior que a das mulheres (44,9 por 100 mil contra 22,1 por 100 mil das mulheres) 4:114.

As deficiências físicas e/ou lesões incapacitantes resultantes de acidentes de trânsito trazem graves prejuízos ao indivíduo (financeiros, familiares, de locomoção, profissionais etc.) e para a sociedade (gastos hospitalares, diminuição de produção, custos previdenciários etc.). As estimativas da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS) apontam que, no mundo, 6% das deficiências físicas são causadas por este tipo de acidente. Do total de portadores de deficiências atendidos pelo Hospital das Clínicas de São Paulo, por exemplo, 5,5% são casos de vítimas de acidentes de trânsito 5:16.

Ademais, os acidentes de trânsito que resultam em lesões incapacitantes de motoristas e passageiros na cidade do Rio de Janeiro evidenciam a carência quanto à formação de recursos humanos e à reabilitação 6.

Há vários estudos e ações que enfatizam a infra-estrutura pré-hospitalar e hospitalar de atendimento ao trauma, procurando melhorar a disponibilidade e a qualidade de atendimento ao cliente lesionado, com atuação restrita, a fim de amenizar as conseqüências das lesões já sofridas. No que tange à atuação da Saúde Pública no combate e prevenção das causas externas de morte, ressalta-se a prevenção dos acidentes e das violências como o meio mais importante para evitar a morbimortalidade por causas externas 2. Competiria ao setor saúde, em primeiro lugar, desenhar o quadro epidemiológico de cada tipo de acidente/violência e, depois, reconhecer os grupos ou instituições que intervêm na sua gênese, definindo parceiros com os quais deverá enfrentar o problema.

Os indicadores nacionais e internacionais mostram percentuais bastante elevados de pessoas portadoras de algum tipo de deficiência. A propósito deste ensaio, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) incluiu nos questionários do censo 2000 um item específico às pessoas com deficiência. Pela primeira vez, o Brasil conhece e tem uma radiografia da população de pessoas com deficiência: 14,5% da população. Até pouco tempo atrás, o país usava os dados estimativos da Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo a qual cerca de 10% da população de qualquer país, em tempo de paz, apresenta algum tipo de deficiência; e, em cima desses dados, os governantes executavam as suas plataformas administrativas 7. Talvez por isso, hoje entendemos por que nunca foram suficientes os recursos aplicados nesta área. Segundo a OMS, as deficiências se dividem em: deficiência física (tetraplegia, paraplegia e outras), deficiência mental/intelectual (leve, moderada, grave e profunda), deficiência auditiva (total ou parcial), deficiência visual (cegueira total e visão reduzida) e deficiência múltipla (duas ou mais deficiências associadas) 8:36.

Há uma discrepância significativa entre os dados da OMS e a realidade fática do Brasil 8. Em nosso país, há cerca de 24,6 milhões de cidadãos que merecem mais atenção quando do planejamento e execução da maioria dos programas de formação profissional de enfermagem, e, conseqüentemente, do cuidado específico às suas múltiplas necessidades. São rotineiras situações na prática assistencial em que os enfermeiros recorrem ao improviso, seja no atendimento a este tipo de clientes, seja nas orientações a seus familiares, cuidadores e pessoas significativas para o desempenho do cuidado de longo prazo.

 

CUIDAR DE PACIENTE COM TETRAPLEGIA: RESGATE DA REABILITAÇÃO EM ENFERMAGEM

Um estudo sobre como oito homens convivem com a tetraplegia constatou, em seus relatos, quão negligentes se mostraram as equipes de enfermagem no que concerne ao preparo dos clientes, seus familiares e/ou pessoas significativas, para o inevitável cotidiano do cuidado em casa. Além de estarem despreparadas para o atendimento e cuidado no pós-acidente imediato, mediato e tardio, como as demais categorias da equipe de saúde, não se prestam ao trabalho de orientar aqueles que irão assumir cuidados extramuros institucionais, demonstrando uma clara falta de compromisso social e domínio de conhecimento específico no âmbito da enfermagem em reabilitação, realidade que é preciso mudar 8. A assistência de enfermagem na reabilitação tem como principais objetivos auxiliar o cliente a se tornar o mais independente possível dentro de suas condições físico-funcionais, promover e incentivar o autocuidado através de orientações e treinamento de situações, preparar a pessoa com deficiência para conviver social e familiarmente da melhor maneira possível e com qualidade 9.

Ressaltamos que, no atendimento às necessidades da pessoa que adquiriu uma lesão medular, os cuidados em nível domiciliário vão demandar um cuidador pessoal, que pode ser um membro da família ou uma pessoa contratada para tal função. A família estabelece uma nova rotina. Desta forma, a expectativa, o grau de incapacidade da deficiência, o momento em que esta ocorre tanto na vida do indivíduo como na dos outros membros, bem como o papel que esse indivíduo exercia na família antes do trauma, é que irão determinar quanto a família terá que se organizar1. A reabilitação faz parte dos cuidados de enfermagem enquanto um modelo assistencial e como uma especialidade. Os princípios de reabilitação são essenciais para o cuidado, mesmo na ausência da deficiência física e suas incapacidades devendo considerar o modelo assistencial da reabilitação, sobretudo o preventivo e o educativo, com a abordagem do binômio cliente/cuidador familiar 9.

Necessário se faz, não obstante, que familiares não percam sua identidade e referência dentro do sistema. Imperativo, também, é que haja flexibilidade na estrutura familiar, para garantir que os membros desempenhem seus papéis e assumam outros apenas quando isso for necessário para lidar com as mudanças ocasionadas. Caso contrário, os papéis podem se confundir, e a estrutura, ficar prejudicada.

Diante da situação de crise, a família tem chance de repensar valores e formas de se relacionar, propiciando afeto e assistência a todos os membros. Antigos conflitos podem ser resolvidos pelos sentimentos de união e ajuda mútua que surgem. As mudanças, sejam negativas ou positivas, implicam no estabelecimento de uma nova rotina para o sistema familiar. Os pontos de transição na família são considerados estressores, pois envolvem conflito e acomodação a um novo funcionamento, já que as velhas normas são questionadas. As mudanças envolvem perdas das situações conhecidas e estáveis e ganhos que nem sempre são inicialmente percebidos, pois o novo gera incertezas.

Delegar à família a função de cuidar exige clareza sobre a estrutura familiar, o tipo de cuidado a ser executado, o tempo necessário, as características da lesão e o acompanhamento profissional1. Tomando-se como referência o papel da família na continuidade do cuidado domiciliar da pessoa com lesão medular, é relevante enfatizar a necessidade do treinamento dessa família, através do planejamento de atividades (envolvendo a equipe de saúde) durante seu processo de internação. É preciso orientá-la, mostrar-lhe de forma mais organizada os cuidados necessários, esclarecer suas dúvidas e certificar-se da incorporação das orientações dadas a ela.

Em nosso entender, o cuidador de pessoas dependentes precisa ser alvo de orientação sobre como proceder nas situações mais difíceis, e receber em casa periódicas visitas de profissionais, como enfermeiro, médico, equipe de enfermagem, de fisioterapia e outras modalidades de supervisão e capacitação. Este apoio é fundamental. É preciso, também, chamar a atenção dos profissionais de saúde que orientam cuidados domiciliares a pessoas dependentes para a necessidade de considerarem as mudanças sociais e econômicas que estão transformando as estruturas familiares nas cidades brasileiras e como estas podem afetar a posição e o papel tradicional do cuidador de pessoas fragilizadas e dependentes. Ademais, o binômio cliente/cuidador domiciliário carece de novos enfoques por parte das políticas públicas de saúde.

Diante da necessidade de construir modelos alternativos de cuidado, mas também de oferecer suporte para os atendentes informais, especialmente os familiares, destacamos a necessidade de oferecer a estes um programa de apoio na estrutura de um serviço público de saúde. A assistência domiciliar a pessoas cuja capacidade funcional esteja comprometida requer orientação, informação e assessoria de profissionais, considerando-se que a tarefa de cuidar de um adulto dependente é desgastante e implica riscos de o atendente também se tornar doente e dependente.

Assim, podemos antever que a função de prevenir perdas e agravos à saúde deverá abranger, igualmente, a figura do atendente domiciliar, e para tanto, devem ser desenvolvidos programas destinados a prevenir a sobrecarga e o impacto emocional negativo que podem afetar a saúde e qualidade de vida de atendentes informais e de outras pessoas dependentes.

Para compreender melhor a complexidade do cuidado de enfermagem e suas implicações para e com pessoas tetraplégicas, necessário se faz uma incursão nos aspectos específicos da lesão medular e suas seqüelas. É imperativo considerar que a lesão medular é uma condição grave e incapacitante, que constitui um grande desafio à reabilitação, pois a medula, além de ser a via de comunicação entre as diversas partes do corpo e o cérebro, também é um centro regulador que controla importantes funções e órgãos, como a respiração, a circulação, a bexiga, o intestino, controle térmico e atividade sexual 10.

 

PECULIARIDADES DA LESÃO MEDULAR EM NÍVEL CERVICAL QUE REQUEREM CUIDADOS ESPECIAIS

As lesões traumáticas da coluna cervical exigem tratamento de urgência. No socorro à vítima de acidente ou violência, com suspeita de lesão cervical, deve haver cuidado especial para que não sejam realizados movimentos de flexão, extensão, rotação ou lateralização da cabeça. O sujeito deve ser transportado em decúbito dorsal, sobre superfície rígida, tendo a cabeça protegida por coxins para evitar movimentos de rotação. O ideal seria a colocação imediata de colar cervical 8.

Como o cuidado domiciliar implica mudanças no contexto e ambiente familiar, assinalamos que por cotidiano se entende o lócus onde se expressam não somente as experiências de vida, na perspectiva individual que o termo possa conter, mas também contextos de relações distintas que envolvem tanto pessoas como coletividades e instituições, em espaços e tempos determinados 11. Essa conjuntura nos impele a revisitar conceitos-chave decorrentes das lesões medulares em nível cervical, diretamente relacionados com necessidades de cuidados de enfermagem de longo prazo, exatas intervenções que se dão no contexto e cotidiano das interações entre o deficiente e seus cuidadores domiciliares. Refletir sobre suas implicações e evidências para o exercício da função social do enfermeiro, seu papel e compromisso como cidadão consciente e educador para a saúde da sociedade, tornou-se premente para a restauração da imagem profissional e credibilidade social para futuras gerações.

Primeiramente, chama-nos a atenção a espasticidade ou hiperatividade reflexa medular, que é caracterizada pelo aumento do tônus muscular e de movimentos automáticos seguindo um padrão flexor ou extensor decorrente da lesão medular, que não pode ser considerada uma complicação, visto que todas as lesões do neurônio motor superior levam a esse quadro. Situações como distensão vesical ou intestinal, infecções, úlcera por pressão, vestuário ou calçado apertado, entre outros, agravam sobremaneira a espasticidade. Portanto, para amenizar o quadro, deve-se iniciar pela eliminação desses fatores, e, quando necessário, o médico indicará medicação específica 10-1. Cumpre conhecer esse quadro para se planejarem intervenções adequadas e adquirir habilidade para executá-las.

Acerca das complicações respiratórias, ressaltamos que nas lesões entre a 1ª e a 2ª vértebras cervicais (C1 a C2), as pessoas apresentam paralisia total da musculatura respiratória e necessitam de intubação no local do acidente, pois ocorrem paralisia diafragmática e flacidez da musculatura abdominal. As lesões entre a 1ª e a 3ª vértebras cervicais (C1 a C3) comprometem a atividade respiratória, que envolve a região inervada pelo nervo frênico e a respiração espontânea. As lesões entre a 3ª e a 5ª vértebras cervicais (C3 a C5) podem mostrar alguma contração do diafragma, principal músculo da inspiração, a qual, somada à da musculatura acessória, pode retardar o quadro de insuficiência respiratória. Lesões abaixo da 6ª vértebra cervical (C6) têm função diafragmática 12.

Já as alterações vasculares irão requerer intervenções preventivas para que não surja algum dos quadros descritos a seguir.

Trombose venosa profunda (TVP): deve-se, principalmente, à ausência de ação de bombeamento da musculatura dos membros inferiores, a qual aumenta a estase venosa nas pernas. Para prevenir a TVP, deve-se atuar profilaticamente com as seguintes ações: mudanças freqüentes de decúbito; movimentação passiva suave dos membros paralisados e hidratação adequada 10. Os cuidados de enfermagem ao cliente com trombose venosa profunda devem ser formulados considerando-se a ausência do reflexo motor e a imobilidade apresentadas pelo paciente tetraplégico ou paraplégico, ou seja, devem incluir posicionamento adequado no leito, com ligeira elevação, bem como movimentação passiva 13.

Hipotensão ortostática (HO): no caso da lesão medular cervical, a regulação central do sistema nervoso autônomo (SNA) é interrompida, com conseqüente perda do controle vasomotor, tanto no nível dos vasos periféricos como no da circulação visceral abdominal. Mudanças bruscas de decúbito horizontal para a posição ereta levam ao quadro de HO, caracterizado por: visão turva, vertigem, fraqueza, taquicardia e cefaléia. Portanto, quando o indivíduo está liberado para abandonar o decúbito horizontal, a posição sentada deve ser assumida de forma lenta e progressiva, com auxílio de travesseiros no próprio leito; em seguida, convém sentá-lo na borda do leito e, posteriormente, fora do leito. O uso de prancha ortostática com inclinação progressiva também é de grande valor. Convém orientar o paciente a realizar inspirações profundas e recorrer ao uso de faixa abdominal elástica e meias elásticas 10-8.

Crise autonômica hipertensiva (CAH) ou disreflexia autonômica (DA): esta síndrome, de instalação brusca, caracteriza-se clinicamente por rubor facial, manchas na pele, congestão nasal (vasodilatação cutânea na cabeça no pescoço), bradicardia, hipertensão, ansiedade, cefaléia intensa, hipersudorese e piloereção, entre outras manifestações mais graves - inclusive a morte - que surgem como resposta exagerada a estímulos capazes de desencadear esta resposta vasomotora maciça. Destacamos os seguintes estímulos desencadeantes: distensão da bexiga, infecção do trato urinário, estimulação anal, úlcera por pressão, roupas apertadas, distensão intestinal, causas psicológicas etc. É considerada uma emergência, e, para reverter o quadro, é preciso identificar o estímulo que desencadeou tal síndrome, para removê-lo. Diante do início das manifestações clínicas, deve-se sempre avaliar o grau de distensão vesical, por ser este o principal fator desencadeante da CAH; neste caso, faz-se necessário o esvaziamento da bexiga mediante cateterismo. Na ausência dos estímulos desencadeantes mais freqüentes e diante da persistência dos sinais de CAH, cumpre checar a existência de outros fatores, como, por exemplo, infecção urinária10.

Outro aspecto relevante a se considerar reporta-se à regulação térmica, uma vez que a função das glândulas sudoríparas depende dos estímulos aferente e eferente provenientes dos sistemas nervosos central (SNC) e periférico, entre os quais a medula, suas raízes e a inervação pré e pós-ganglionar apresentam uma importância fundamental. A interrupção provocada pela lesão medular leva a alterações na homeotermia do cliente, especialmente nas lesões cervicais. Por esta razão, os clientes com lesão cervical apresentam grande intolerância às temperaturas extremas. A incapacidade de reagir com calafrios e vasoconstrição no frio, assim como o déficit de sudorese e vasodilatação diante do aumento da temperatura, produz grande desconforto. Por esta razão, é de grande importância o controle da temperatura ambiente, já que de sua regularidade dependerá a homeotermia do cliente. Em casos de hipertermia por infecção, enquanto se aguarda o efeito do medicamento, devem-se ter cuidados especiais para facilitar a maior perda de calor através de compressas de água fria, ventilador e banho. Em lesões completas, a anidrose, observada nos segmentos corporais abaixo da lesão, associa-se à intensa hiperidrose acima desta 10-8.

No que diz respeito à disfunção gastrointestinal, deve-se evitar a formação de fecalomas, mediante aplicação cuidadosa de enemas, quando, pelo toque retal, se observarem, na ampola retal, fezes sólidas que não possam ser extraídas digitalmente. A reeducação intestinal deve iniciar-se tão logo a pessoa se alimente, através de dieta rica em fibras e de técnicas de esvaziamento intestinal10-8. A regularização da função intestinal é indispensável à reabilitação do cliente, não só por permitir um adequado convívio social, mas também por proporcionar melhores condições gerais e evitar agravamento de certos sinais e sintomas relacionados à obstipação, como aumento da espasticidade e disreflexia autonômica. Na fase inicial, deve-se buscar um ritmo diário de evacuação, podendo-se, para facilitar a evacuação, colocar supositório de glicerina e, após 15 a 20 minutos, e sempre que possível, conduzir o cliente ao vaso sanitário, pois em outros decúbitos a função de evacuação se torna difícil. O ortostatismo e a atividade física são fatores importantes para o estímulo da função intestinal8.

Por outro lado, a disfunção vesical decorre da bexiga neurogênica, que é a perda da função normal da bexiga provocada pela lesão de uma parte do sistema nervoso. A disfunção da bexiga é classificada de acordo com a localização da lesão da medula: se esta ocorrer no neurônio motor superior (NMS), a bexiga é espástica (reflexa ou automática); e se ocorrer no neurônio motor inferior (NMI), a bexiga é flácida (atônica, não reflexa ou autônoma). Na fase de choque medular, deve-se ter o cuidado de evitar hiperdistensão vesical, utilizando sonda vesical de demora. Devem-se evitar também infecções e outras complicações do trato geniturinário inferior. Após esta fase, passa-se à reeducação vesical, que deve ser adequada a cada cliente. Faz-se então necessário uma avaliação urológica precedendo a reeducação vesical, para se fazer opção pelo método mais apropriado a cada tipo de lesão8-14.

Alterações metabólicas surgem em forma de ossificações paraarticulares ou calcificação heterotópica paraarticular, comprometendo o mecanismo pelo qual ocorre a transformação de tecido conjuntivo periarticular em tecido ósseo, mecanismo que ainda é obscuro. Mas, algum fator constitucional associado a pequenas hemorragias produzidas por movimentos bruscos nos estágios iniciais do tratamento pós-lesão seria responsável por esta complicação. Quando ocorre anquilose e esta é um fator impeditório de evolução reabilitacional, a cirurgia é uma solução; no entanto, a exérese da massa calcificada só é possível em alguns casos, pois a ossificação paraarticular envolve a articulação globalmente14.

Osteoporose: para amenizar a descalcificação, orienta-se dieta rica em cálcio e aumento da permanência do cliente em cadeira de rodas e posição ortostática14. Devem-se ainda ter cuidados com a intensidade das mobilizações e com as transferências.

Quanto à função sexual, vale destacar que, em lesões completas acima do centro reflexo do cone medular, ocorrem ereções automáticas em resposta à estimulação local14. O aconselhamento sexual é parte importante e integrante do programa de reabilitação. Na disfunção sexual masculina, há indivíduos que necessitam de tratamento para sustentar a ereção, para induzir a ejaculação e ainda para preservar ou melhorar a qualidade do sêmen e a oportunidade de procriar 8-15.

O inevitável comprometimento da estrutura da pele está no grupo das complicações mais freqüentes na pessoa com lesão medular, por surgir como resultado do repouso prolongado no leito ou permanência por longo período na mesma posição1-8-14. Dentre os vários fatores de risco para o desenvolvimento de escaras de decúbito, destacam-se a limitação de movimentos ativos, perda de sensibilidade tátil e/ou térmica, etc., além da falta de atenção e cuidado dos encarregados de ajudar a pessoa nas mudanças de decúbito. Os primeiros sinais aparecem na forma de áreas hiperemiadas, localizadas perto de grandes proeminências ósseas, como a região sacrococcígea, os calcâneos, os joelhos, as escápulas, as nádegas, os trocanteres e outras. Nas pessoas tetraplégicas, as medidas preventivas devem ter mais destaque, em virtude, muitas vezes, da total incapacidade de exercer qualquer força muscular e coordenação/controle de movimentos voluntários, o que requer do prestador de cuidados atenção redobrada na prevenção de escaras, com sistemática implementação de mudanças de decúbito na fase aguda. Alguns importantes fatores de risco a serem considerados no caso da lesão medular são: alterações da motricidade e sensibilidade, incontinência urinária, alterações no turgor e elasticidade da pele e presença de pressão em proeminências ósseas. Em face destes fatores de risco, a intervenção de enfermagem para prevenção do problema que mais se destacou foi orientar/treinar o cliente enfocando a mudança de decúbito, posicionamento no leito, higienização, alimentação e hidratação da pele 1-8.

A reabilitação visa ao retorno do indivíduo às suas condições anteriores à incapacidade, permitindo a recuperação de seu papel e status dentro da família e da comunidade. Não visa avaliar o grau de invalidez do indivíduo, mas sim, o seu potencial, buscando reintegrá-lo social e profissionalmente, utilizando, para isso, não apenas meios clínicos e farmacológicos, mas também recursos físicos, ocupacionais, cinesiológicos e ergométricos, além de técnicas fonoaudiológicas e psicológicas como terapia. A equipe e a família devem estar atentas aos cuidados anteriores, bem como estimular o cliente a retomar gradativamente suas atividades, pois, com o auxílio de tecnologia assistiva e de familiares/cuidadores e com perseverança, é possível ele retomar seu papel na família e na sociedade 10-1.

Para que se obtenha êxito no reajuste físico e psicológico da pessoa com lesão medular, faz-se necessário um processo gradual de reabilitação, que exige a participação de uma equipe interdisciplinar, como meio de ajudar o sujeito e seus familiares a enfrentar e superar as limitações físicas, emocionais, sociais e econômicas decorrentes da lesão medular. O tratamento da pessoa com lesão medular consta basicamente de: treinamento motor, prevenção e correção de complicações, acompanhamento psicológico, orientação sexual, orientação educacional e/ou profissional e curso teórico-prático sobre lesão medular. Essa interação da equipe com o sujeito e família é muito importante, pois a fase de reajuste ainda traz muitas dúvidas e inquietações acerca de possibilidades e limitações, de cuidados básicos e até de informações sobre qualidade de equipamentos e legislação pertinente 8.

Deixamos propositadamente abertos espaços para que sejam propostos diagnósticos e intervenções de enfermagem no sentido geral de cada quadro anterior, na intenção de fazer valer a singularidade dos sujeitos quando se está diante da experiência prática cotidiana ou ocasional de cuidar, momento em que as características da pessoa e do próprio ambiente determinarão medidas terapêuticas de enfermagem adequadas a cada realidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esperamos, como fruto deste estudo, que ele possa contribuir para uma nova compreensão e o fortalecimento do conhecimento no âmbito do cuidado de enfermagem em reabilitação, especialmente no que tange aos profissionais afins que atuam junto às pessoas com deficiência física adquirida, como lesão medular em nível cervical e suas necessidades de cuidados, assim como para que os enfermeiros assimilem a premência de assumir seus papéis e responsabilidades sociais no escopo do ensino, pesquisa, assistência e educação para a saúde. Enfocamos aspectos essenciais à compreensão da premência em ampliar conhecimentos no âmbito de enfermagem em reabilitação, saberes imprescindíveis aos processos de cuidar de pessoas com lesão medular em nível cervical ou tetraplégicas, dimensionando-os aos familiares e eventuais cuidadores para o exercício e domínio de habilidades relativas ao cuidado no contexto domiciliário.

Ênfase também foi atribuída ao papel do enfermeiro como responsável direto pela orientação dos clientes, desde o mais precoce momento pós-lesão. Esse profissional deve estar em condições de apreender conteúdos relativos às necessidades de cuidado em casa, tendo em vista vislumbrar potencial caráter dependente, a longo prazo, de cuidados de enfermagem, ainda que tais cuidados sejam executados por cuidadores no ambiente doméstico, por razões implícitas nas limitações físico-funcionais próprias da seqüela medular em nível cervical.

Pessoas com lesão medular trazem consigo uma série de aspectos que necessitam cuidado e atenção. Eles podem desenvolver uma série de complicações, principalmente durante o período de hospitalização. Existe uma grande necessidade da continuidade do cuidado ao sujeito após a alta hospitalar, sendo necessária assistência e preparo da alta com qualidade, inserindo, nesse processo, a família, através da participação ativa no cuidado durante o período de internação.

Acreditamos também que a promoção do cuidado de enfermagem às pessoas com seqüelas de lesão medular alta tetraplégicos, passa inevitavelmente por um processo dinâmico de reaprender através do compartilhar experiências com o próprio cliente, seus familiares e/ou pessoas significativas, considerando serem os cuidadores de longo prazo no contexto domiciliário sujeitos mais próximos da realidade cotidiana dessas pessoas.

 

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Nota

aTrabalho extraído da dissertação: CONVIVENDO COM A TETRAPLEGIA: da necessidade de cuidados à integralidade no cotidiano de homens com lesão medular cervical, apresentada ao Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Maringá/PR.

 

 

Recebido em 22/05/2006
Reapresentado em 25/09/2006
Aprovado em 31/10/2006

 

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