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ISSN (impressa): 1414-8145
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem Escola Anna Nery Revista de Enfermagem
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Ministério da Educação
CAPES

Volume 20, Número 1, Jan/Mar - 2016



DOI: 10.5935/1414-8145.20160013

PESQUISA

O trabalho do enfermeiro na atenção primária à saúde

Heletícia Scabelo Galavote 1
Eliane Zandonade 1
Ana Claudia Pinheiro Garcia 1
Paula de Souza Silva Freitas 1
Helena Seidl 1
Priscilla Caran Contarato 1
Maria Angélica Carvalho Andrade 1
Rita de Cássia Duarte Lima 1


1 Universidade Federal do Espírito Santo. Vitoria, ES, Brasil

Recebido em 19/04/2015
Aprovado em 21/10/2015

Autor correspondente:
Heletícia Scabelo Galavote
E-mail: heleticia.galavote@ufes.br

RESUMO

OBJETIVO: Descrever a organização do trabalho do enfermeiro na atenção primária à saúde nas regiões brasileiras.
MÉTODOS: Estudo transversal de dados secundários oriundos da avaliação externa do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ) que englobou 17482 ESF e outros modelos de atenção básica, aderidos ao programa, em 3.972 municípios participantes, abrangendo todos os estados da Federação.
RESULTADOS: Destacam uma posição diferenciada do profissional enfermeiro na equipe da Atenção Primária à Saúde, apontando para a ampliação dos limites de atuação profissional, agregando as atividades administrativas às práticas da assistência direta ao usuário.
CONCLUSÕES: A inserção do enfermeiro em equipes da atenção primária à saúde tem suscitado novas modelagens na produção do cuidado com um novo padrão de produção de cuidados, que alteram não apenas o modo de organização do processo produtivo, conforme os interesses do capital, mas inverte o núcleo tecnológico do cuidado.


Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde; Saúde da Família; Avaliação em Saúde; Enfermagem

INTRODUÇÃO

A garantia da qualidade da atenção e gestão apresenta-se atualmente como um dos principais desafios do Sistema Único de Saúde (SUS) e deve, necessariamente, compreender os princípios da integralidade, universalidade, equidade e participação social1.

O Ministério da Saúde tem priorizado a execução da gestão pública com base em ações de monitoramento e avaliação dos processos, da estrutura e dos resultados. São muitos os esforços empreendidos para o estabelecimento de iniciativas que garantam a qualidade dos serviços de saúde ofertados à sociedade brasileira, estimulando a ampliação do acesso qualificado nos diversos contextos existentes no país2. Dentre essas iniciativas, destaca-se o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ) que tem o objetivo de assegurar que a Atenção Primária à Saúde (APS) se configure como a porta de acesso preferencial para o sistema de saúde. Esse programa tem em vista que a organização da APS tenha potencial resolutivo para a maioria dos problemas e necessidades de saúde da população através de ações de promoção, proteção e reabilitação. Seu objetivo é desenvolver uma atenção integral que tenha impacto na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades2.

Assim, esse nível de atenção deve ser operacionalizado por meio do exercício de práticas de cuidado e de gestão democráticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipe dirigido às populações de territórios definidos e orientada pelos princípios e diretrizes do SUS, a partir das quais assumem funções e características específicas1. A APS deve, ainda, utilizar tecnologias de cuidado complexas e variadas para auxiliar no manejo das demandas e necessidades de saúde de maior frequência e relevância em seu território, observando critérios de risco, vulnerabilidade e resiliência e o imperativo ético de que toda demanda, necessidade de saúde ou sofrimento devem ser acolhidos1.

Nesse contexto, a organização do processo de trabalho na APS é fundamental para que a equipe possa avançar na garantia tanto da universalidade do acesso quanto da integralidade da atenção e da melhoria do bem-estar e do próprio trabalho2. Assim, a APS requer profissionais com uma ampliação do seu núcleo de saberes que, além da competência técnica, desenvolvam as dimensões políticas e de gestão do trabalho em saúde, assumindo o papel de autogestionários.

O trabalho em saúde, enquanto constituição de saberes e práticas que emergem do espaço da micropolítica, apresenta o potencial de revelar a forma como é governada a produção do cuidado através de fluxos de competências, produção e reapropriação de necessidades, desejos, demandas, soluções e limites que circundam o cotidiano dos serviços de saúde3. Assim, considerando a relevância da apropriação do conhecimento sobre o processo de trabalho em saúde na APS, destaca-se a importância de avaliar o trabalho dos profissionais que agregam conhecimento sobre o processo e quais as possíveis implicações na construção das linhas de cuidado que conformam o trabalho em saúde.

Os dados produzidos no âmbito do PMAQ, no contexto da APS no país, representam o eixo analisador com ênfase nas atividades realizadas pelo enfermeiro no cenário do serviço, reconhecendo a pertinência da produção científica internacional sobre a APS e sua pluralidade enquanto forma de organização do sistema de saúde com peculiaridades de programas e serviços específicos do Brasil4.

Dessa forma, este estudo tem por objetivo descrever a organização do trabalho do enfermeiro na APS nas regiões brasileiras.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo descritivo transversal com base em dados secundários oriundos da avaliação externa do PMAQ que englobou 17.482 Estratégias Saúde da Família (ESF) e outros modelos de atenção básica, aderidos ao programa, em 3.972 municípios participantes, abrangendo todos os estados da Federação.

O PMAQ foi instituído pela Portaria nº 1.654 GM/MS, de 19 de julho de 2011, e tem como propósito a ampliação da oferta qualificada dos serviços de saúde no âmbito do SUS. Prioriza a avaliação como estratégia permanente para a tomada de decisão e ação central para a melhoria da qualidade das ações de saúde no âmbito do SUS. Está organizado em quatro etapas: adesão e contratualização, desenvolvimento, avaliação externa e recontratualização2.

A etapa de avaliação externa do PMAQ foi conduzida por instituições de ensino e/ou de pesquisa contratadas pelo Ministério da Saúde para o desenvolvimento dos instrumentos de coleta dos dados e dos trabalhos de campo, mediante a aplicação de diferentes processos avaliativos.

A coleta dos dados ocorreu no período de junho a setembro de 2012, nas unidades que aderiram ao Programa de Avaliação e que estabeleceram a contratualização. Cada município pôde incluir todas ou apenas uma parte de suas equipes, respeitando o limite máximo de adesão equivalente a 50% de suas Equipes de Saúde da Família. A equipe de campo para a coleta de dados foi composta por um supervisor e de três a quatro entrevistadores de profissões diversas que participaram da aplicação dos módulos de avaliação compostos de questões fechadas.

Os dados apresentados neste artigo são provenientes do Modulo II do PMAQ, que contempla as entrevistas com informantes-chave, ou seja, aqueles profissionais indicados pela equipe para responder as questões sobre a estrutura e a organização do processo de trabalho. Assim, os enfermeiros foram escolhidos majoritariamente como informantes-chave para responder o questionário que contemplava questões referentes ao seu trabalho e ao da equipe na APS. Os dados referentes ao trabalho da equipe foram excluídos após a seleção dos dados específicos que contemplam o objetivo deste estudo.

As informações obtidas do instrumento de pesquisa deu origem a um banco de dados que foi armazenado no software Microsoft Excel 2010 e que serviram de base a este estudo. Os dados foram transferidos para o programa estatístico SPSS 20.0 para a realização das análises descritivas por meio de frequência absoluta e relativa, e apresentados em formato de tabela.

Os dados de frequência foram organizados em quatro tabelas.

  1. A Tabela 1 apresenta as respostas afirmativas para três variáveis: se o respondente era enfermeiro; se o coordenador era enfermeiro; e seu tempo na equipe, caso o respondente fosse enfermeiro. Os percentuais totais de cada variável somam 100%. Há somente a resposta 'sim' para as duas primeiras variáveis.

    Tabela 1. Frequência absoluta e percentual do respondente enfermeiro do Módulo 2 do PMAQ
    UF Respondente Enfermeiro coordenador Tempo na equipe (Enfermeiro)
    Enfermeiro (a) < 1 ano 1 a 4 anos 5 anos e +
    N % N % N % N % N %
    AC 31 97% 27 87% 9 29% 16 52% 6 19%
    AL 320 94% 273 85% 69 22% 133 42% 118 37%
    AM 159 92% 152 96% 66 42% 70 44% 23 14%
    AP 44 88% 38 86% 23 52% 11 25% 10 23%
    BA 1433 93% 1341 94% 475 33% 759 53% 199 14%
    CE 870 96% 783 90% 228 26% 389 45% 251 29%
    DF 23 82% 20 87% 8 36% 9 41% 5 23%
    ES 281 88% 264 94% 79 28% 140 50% 62 22%
    GO 629 93% 594 94% 206 33% 302 48% 115 18%
    MA 106 95% 101 95% 42 40% 37 35% 27 25%
    MG 2739 94% 2623 96% 730 27% 1387 51% 619 23%
    MS 172 93% 158 92% 47 27% 81 47% 44 26%
    MT 213 97% 202 95% 83 39% 86 41% 42 20%
    PA 348 99% 332 95% 143 41% 142 41% 61 18%
    PB 571 91% 465 81% 129 23% 265 46% 177 31%
    PE 934 93% 844 90% 208 22% 512 55% 213 23%
    PI 340 92% 311 91% 45 13% 161 48% 128 38%
    PR 905 91% 850 94% 255 28% 375 42% 272 30%
    RJ 888 85% 820 92% 269 30% 467 53% 152 17%
    RN 387 94% 343 89% 98 25% 194 50% 95 25%
    RO 90 93% 87 97% 16 18% 54 61% 19 21%
    RR 33 97% 27 82% 12 36% 10 30% 11 33%
    RS 734 90% 655 89% 170 23% 351 48% 210 29%
    SC 1041 94% 976 94% 328 32% 511 49% 200 19%
    SE 209 85% 153 73% 48 23% 90 43% 71 34%
    SP 2100 92% 1962 93% 560 27% 1123 54% 412 20%
    TO 276 90% 246 89% 95 35% 114 41% 66 24%
    Tabela 1. Frequência absoluta e percentual do respondente enfermeiro do Módulo 2 do PMAQ

  2. A Tabela 2 apresenta as variáveis sobre a formação complementar: se possui formação complementar; se possui especialização 1; especialização 2; mestrado 1; e mestrado 2. Cada resultado apresentado corresponde apenas à resposta 'sim' de cada variável e cada percentual é o percentual de respostas 'sim' em relação ao total de respondentes. Não pudemos somar os percentuais.

    Tabela 2. Frequência absoluta e percentual da formação complementar do enfermeiro espondente
    UF Formação Complementar Especialização 1 Especialização 2 Mestrado 1 Mestrado 2
    N % N % N % N % N %
    AC 22 71% 9 41% 8 36% 0 0% 0 0%
    AL 278 87% 71 26% 133 48% 1 0% 1 0%
    AM 129 81% 43 33% 43 33% 1 1% 2 2%
    AP 29 66% 15 52% 7 24% 0 0% 0 0%
    BA 1175 82% 393 33% 442 38% 10 1% 17 1%
    CE 768 88% 438 57% 168 22% 11 1% 8 1%
    DF 20 87% 12 60% 9 45% 2 10% 1 5%
    ES 272 97% 124 46% 99 36% 0 0% 7 3%
    GO 469 75% 209 45% 149 32% 6 1% 9 2%
    MA 93 88% 71 76% 22 24% 1 1% 0 0%
    MG 2218 81% 1492 67% 531 24% 26 1% 21 1%
    MS 158 92% 92 58% 43 27% 1 1% 0 0%
    MT 164 77% 60 37% 58 35% 3 2% 0 0%
    PA 240 69% 71 30% 49 20% 0 0% 2 1%
    PB 512 90% 296 58% 194 38% 5 1% 12 2%
    PE 849 91% 398 47% 332 39% 5 1% 13 2%
    PI 297 87% 172 58% 125 42% 2 1% 0 0%
    PR 766 85% 332 43% 223 29% 3 0% 12 2%
    RJ 716 81% 387 54% 113 16% 6 1% 19 3%
    RN 329 85% 109 33% 81 25% 9 3% 4 1%
    RO 81 90% 41 51% 22 27% 2 2% 0 0%
    RR 29 88% 22 76%2 3 10% 1 3% 1 3%
    RS 618 84% 368 60% 199 32% 8 1% 9 1%
    SC 858 82% 505 59% 204 24% 11 1% 8 1%
    SE 178 85% 63 35% 58 33% 0 0% 1 1%
    SP 1814 86% 1131 62% 464 26% 17 1% 23 1%
    TO 203 74% 67 33% 66 33% 3 1% 4 2%

    Especialização e Mestrado 1: em Saúde da Família.

    Especialização e Mestrado 2: em Saúde Pública ou Saúde Coletiva.

    Tabela 2. Frequência absoluta e percentual da formação complementar do enfermeiro espondente

  3. A Tabela 3 apresenta os resultados de somente uma variável: os tipos de vínculos por Unidade Federativa (UF).

    Tabela 3. Frequência absoluta e percentual dos principais tipos de vínculos dos respondentes enfermeiros
    UF Servidor público estatutário Cargo comissionado Contrato temporário Empregado público CLT Contrato CLT
    N % N % N % N % N %
    AC 13 42% 0 0% 5 16% 3 10% 9 29%
    AL 201 63% 3 1% 45 14% 28 9% 40 13%
    AM 30 19% 6 4% 119 75% 0 0% 1 1%
    AP 10 23% 0 0% 27 61% 0 0% 2 5%
    BA 389 27% 34 2% 747 52% 53 4% 130 9%
    CE 413 47% 46 5% 293 34% 21 2% 34 4%
    DF 23 100% 0 0% 0 0% 0 0% 0 0%
    ES 136 48% 9 3% 59 21% 10 4% 63 22%
    GO 317 50% 15 2% 251 40% 8 1% 32 5%
    MA 19 18% 9 8% 63 59% 11 10% 3 3%
    MG 1034 38% 59 2% 1292 47% 77 3% 237 9%
    MS 124 72% 5 3% 29 17% 4 2% 8 5%
    MT 129 61% 18 8% 37 17% 0 0% 24 11%
    PA 106 30% 2 1% 193 55% 3 1% 40 11%
    PB 369 65% 7 1% 159 28% 6 1% 22 4%
    PE 303 32% 28 3% 461 49% 4 0% 128 14%
    PI 226 66% 3 1% 59 17% 31 9% 9 3%
    PR 508 56% 21 2% 49 5% 227 25% 84 9%
    RJ 104 12% 63 7% 219 25% 26 3% 419 47%
    RN 110 28% 25 6% 224 58% 6 2% 20 5%
    RO 81 90% 3 3% 3 3% 1 1% 2 2%
    RR 1 3% 2 6% 28 85% 0 0% 1 3%
    RS 466 63% 10 1% 58 8% 62 8% 118 16%
    SC 610 59% 40 4% 115 11% 194 19% 77 7%
    SE 128 61% 4 2% 42 20% 32 15% 3 1%
    SP 472 22% 30 1% 33 2% 340 16% 1209 58%
    TO 174 63% 9 3% 76 28% 0 0% 13 5%
    Tabela 3. Frequência absoluta e percentual dos principais tipos de vínculos dos respondentes enfermeiros

  4. A Tabela 4 apresenta as respostas afirmativas para cinco variáveis relativas às atividades exercidas pelos enfermeiros na amostra dos enfermeiros respondentes: acolhimento; marcar usuários na agenda; agendas compartilhadas; consulta do puerpério; e cuidado domiciliar. Os percentuais totais de cada variável somam 100%. Apresentamos, para todas as variáveis, somente a resposta 'sim'.

    Tabela 4. Frequência absoluta e percentual por Unidade da Federação das principais atividades exercidas pelos enfermeiros em amostra de enfermeiros respondentes
    UF Acolhimento Marca usuários na agenda Agenda compartilhada Consulta do puerpério Cuidado domiciliar
    N % N % N % N % N %
    AC 13 42% 0 0% 21 68% 31 100% 28 90%
    AL 250 78% 1 0% 250 78% 318 99% 319 100%
    AM 77 48% 0 0% 88 55% 155 97% 150 94%
    AP 26 59% 0 0% 36 82% 44 100% 44 100%
    BA 1068 75% 4 0% 944 66% 1417 99% 1421 99%
    CE 639 73% 2 0% 767 88% 858 99% 862 99%
    DF 19 83% 1 4% 23 100% 22 96% 22 96%
    ES 212 75% 0 0% 253 90% 251 89% 280 100%
    GO 391 62% 10 2% 382 61% 581 92% 620 99%
    MA 79 75% 0 0% 94 89% 106 100% 105 99%
    MG 2409 88% 30 1% 2130 78% 2310 84% 2707 99%
    MS 132 77% 1 1% 132 77% 152 88% 171 99%
    MT 108 51% 1 0% 167 78% 197 92% 203 95%
    PA 230 66% 2 1% 263 76% 339 97% 335 96%
    PB 315 55% 1 0% 397 70% 565 99% 565 99%
    PE 534 57% 3 0% 782 84% 930 100% 928 99%
    PI 144 42% 0 0% 299 88% 327 96% 330 97%
    PR 670 74% 1 0% 604 67% 704 78% 894 99%
    RJ 804 91% 9 1% 659 74% 815 92% 878 99%
    RN 247 64% 0 0% 309 80% 381 98% 379 98%
    RO 30 33% 1 1% 74 82% 85 94% 86 96%
    RR 7 21% 0 0% 25 76% 32 97% 32 97%
    RS 595 81% 1 0% 499 68% 528 72% 724 99%
    SC 857 82% 0 0% 841 81% 821 79% 1037 100%
    SE 120 57% 0 0% 155 74% 209 100% 209 100%
    SP 1974 94% 1 0% 1630 78% 1829 87% 2084 99%
    TO 148 54% 0 0% 248 90% 269 97% 274 99%
    Tabela 4. Frequência absoluta e percentual por Unidade da Federação das principais atividades exercidas pelos enfermeiros em amostra de enfermeiros respondentes

O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública sob o parecer 32012, em 06/06/12.

RESULTADOS

A Tabela 1 apresenta as frequências absolutas (N) e relativas (%), por UF para as variáveis relacionadas ao respondente. No processo de coleta, na avaliação externa do PMAQ, identificou-se que a maioria dos profissionais indicados pelas equipes para informar sobre a organização do processo de trabalho foi o profissional enfermeiro. Nota-se que o menor percentual de respondentes enfermeiros foi no Distrito Federal (82%) e o maior foi no Pará (99%). Desses enfermeiros, a maior parte era coordenador de equipe, com uma variação percentual de 81% (Paraíba) a 97% (Roraima).

A Tabela 2 apresenta a formação complementar dos enfermeiros respondentes. Os resultados apresentados são para os cursos concluídos ou em andamento.

Observam-se altos percentuais para a formação complementar, variando de 71% no Acre até 97% no Espírito Santo. Os resultados de Curso de Especialização concluído ou de Curso em Saúde da Família apresentaram percentuais significativos, variando de 26% em Alagoas até 76% no Maranhão e em Roraima. Para a Especialização em Saúde Pública ou em Saúde Coletiva, os percentuais são menores, variando de 10% em Roraima até 48% em Alagoas.

Na Tabela 3, verificam-se os principais tipos de vínculos empregatícios do respondente enfermeiro, aspecto importante a ser considerado, uma vez que pode dificultar o estabelecimento de vínculo do profissional com o serviço e com a população atendida, característica indissociável do trabalho.

Em relação a essa variável os resultados alteram segundo a UF, mas, na maior parte, encontra-se o vínculo servidor público estatutário como o prevalente. As exceções são os estados do Amazonas, Amapá, Bahia, Maranhão e Roraima, onde prevalecem os contratos temporários e o Rio de Janeiro, em que o principal vínculo é o contrato por Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Na Tabela 4, buscou-se analisar se, nas unidades onde os enfermeiros eram os respondentes, as seguintes funções estavam sendo exercidas por eles: participa do acolhimento, marca consultas de usuários em sua agenda e participa da agenda compartilhada e do cuidado domiciliar.

Os resultados aqui apresentados evidenciam que o trabalho do enfermeiro é multidimensional, entrelaçando práticas de cuidado e gerenciamento, e apontam para o reduzido percentual de participação com relação à atividade de agendamento dos usuários.

DISCUSSÃO

Os resultados destacam, para o universo deste estudo, uma posição diferenciada do profissional enfermeiro na equipe da APS, apontando para a ampliação dos limites de atuação profissional e agregando as atividades administrativas às práticas da assistência direta ao usuário, confirmando estudos anteriores que apontam para a intensificação e ampliação das atividades do enfermeiro na ESF, tanto na área da assistência e da educação em saúde quanto do gerenciamento dos serviços de saúde5.

Os dados do PMAQ evidenciam que, na APS, os profissionais graduados delegaram ao enfermeiro o papel de autoridade cognitiva na passagem de informações sobre os processos de organização do trabalho. Frequentemente, além da coordenação do trabalho da enfermagem e da supervisão do trabalho dos agentes comunitários de saúde, muitas das atividades de manutenção e controle dos serviços estão sob a gestão desse profissional, estando a unidade, de forma geral, sob a responsabilidade do enfermeiro.

No contexto desta pesquisa, dentre as mais diversas atividades desenvolvidas pelo enfermeiro na prática cotidiana, destacaram-se as atividades administrativo-burocráticas. Nesse sentido, Waldow6 afirma que a enfermagem no Brasil tem se afastado gradativamente das atividades estritamente assistenciais e focado seu processo de trabalho nas atividades administrativas, com ênfase na organização do serviço, no planejamento e no controle do trabalho da equipe. O grande número de atividades na APS e no trabalho em rede com equipes multiprofissionais, com atuação interdisciplinar e articulação intersetorial, pode, aparentemente, distanciar o enfermeiro da assistência direta e do contato com o usuário.

A gestão não é apenas a organização do processo de trabalho, mas o que se passa entre os "vetores-dobras" que o constituem. É lugar de produção de saberes no qual o planejar, o administrar, o gerir, o decidir, o executar e o avaliar não se separam7.

No contexto do cuidado integral, afirma-se que a atividade de gestão faz parte das práticas de cuidado, ou seja, o cuidar e o gerir não são atividades excludentes, mas sim complementares, podendo ser realizadas por meio de ação direta do profissional de saúde com o usuário e por meio de delegação e/ou articulação com outros profissionais da equipe de saúde3.

De acordo com Matumoto et al.8, o trabalho do enfermeiro na APS está pautado em duas vertentes: produção do cuidado e gestão do processo terapêutico; e atividades de gerenciamento do serviço de saúde e da equipe de enfermagem. Os autores referem que o desenvolvimento de ações gerenciais predomina na atuação do enfermeiro em Unidades Básicas de Saúde e reconhecem os conflitos e tensões constitutivas do cotidiano de trabalho em relação às disputas de espaço de produção e de saberes com os outros profissionais e com as limitações técnicas e prerrogativas determinadas pelas normas e protocolos de exercício profissional e da própria organização do processo de trabalho das equipes da APS.

Assim, a gestão faz parte do cuidado e deve ser desenvolvida de modo responsável e compromissado com as necessidades de saúde, a fim de efetivar as práticas de cuidado, que têm o coletivo e a família como focos de atenção.

Além disso, na perspectiva ampliada do cuidado com a família, segundo Oliveira e Marcon5, o processo de trabalho deve ser estruturado a partir de ações e relações dos profissionais junto às famílias, pois estabelecer e manter relações com a família interfere na qualidade da assistência. Em relação às competências necessárias, essas autoras ressaltam a importância do conhecimento técnico-científico (saber-fazer) e principalmente do saber relacionar-se (saber-ser) com as famílias e com os membros da equipe, demonstrando comprometimento, envolvimento e postura ética, aspectos mais facilmente alcançados quando se está afetado, solidário e implicado naquilo que se faz.

Em relação ao tempo de atuação na equipe, observou-se que cerca de 50% dos enfermeiros atuam na equipe de um a quatro anos. A análise dos estados separadamente mostra que o percentual de enfermeiros atuando há menos de um ano na equipe varia de 13% no Piauí a 52% no Amapá. Ainda que, na maior parte dos estados, os enfermeiros estejam na equipe há mais de um ano, vale ressaltar que a rotatividade desses profissionais compromete o seu vínculo com a comunidade e a qualidade da assistência. Além disso, mudanças constantes dos trabalhadores na equipe acarretam sobrecarga de trabalho para os que permanecem e exige o treinamento de novos profissionais, aumentando os custos e fragilizando os processos de trabalho9.

Os enfermeiros respondentes apresentaram percentuais abaixo de 10% de mestrados, concluídos ou em curso, em Saúde da Família e Saúde Pública ou Saúde Coletiva. Apesar de ressaltar a necessidade de melhorar o serviço prestado à população pelos profissionais de saúde, tendo como base a qualificação, a capacitação e o aprimoramento de seu desempenho, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) alerta sobre os currículos universitários que referenciam a formação profissional pautados em um paradigma curativo, hospitalocêntrico e fragmentado do conhecimento e da abordagem da saúde, ao valorizarem as especialidades sem a compreensão global do ser humano e do processo de adoecer. Assim, a qualidade da formação do profissional pode fortalecer uma atuação baseada na concepção de modelo assistencial ou organização do serviço ou prática de trabalho deformada, onde se observa a desvalorização ou mesmo inexistência de proposta de ação de saúde coletiva no interior da comunidade10.

Ressalta-se a importância da Educação Permanente, que deve se iniciar desde o treinamento introdutório na equipe, por todos os meios pedagógicos e de comunicação disponíveis, assim como de acordo com as realidades de cada contexto, partindo do pressuposto de que esse processo deva ser privilegiado a partir da realidade das práticas concretas de saúde, através de metodologias ativas, considerando seus determinantes e limitantes, no sentido de buscar interação com as exigências do trabalho10.

Na APS, o enfermeiro tem incorporado, progressivamente, atividades administrativas como, por exemplo, a manutenção dos serviços e programas de saúde, identificados como atividades burocráticas. Jonas et al.11, em um estudo da função gerencial do enfermeiro na ESF, aponta que a função de gerência do enfermeiro é reduzida às atividades de natureza burocrática de organização dos serviços, o que acarreta sobrecarga do profissional que se posiciona em uma tensão de captura do trabalho na vertente assistencial de produção do cuidado pelo trabalho administrativo burocrático de gestão de pessoas e insumos. Os autores relatam que, com a burocratização, o trabalho do enfermeiro torna-se mecanizado, alertando para o risco de prejuízo ao usuário, já que a gestão é uma atividade meio que propicia a assistência e o cuidado representa a atividade fim. Assim, há a necessidade de uma gestão de processos compartilhada entre toda a equipe para que o trabalho do enfermeiro não seja aprisionado por atividades que, em sua essência, não contemplam o seu objeto de intervenção.

Tendo como cenário um hospital pediátrico, Laignier e Lima12 identificaram que o afastamento do enfermeiro da assistência direta está relacionado com o esvaziamento do conteúdo das atividades historicamente exercidas por esse profissional, que tem cada vez mais direcionado as suas atividades para procedimentos vinculados: organização da unidade hospitalar, visita aos pacientes, supervisão dos cuidados exercidos pelos demais membros da equipe de enfermagem e outras atividades burocráticas. Além disso, com o surgimento de outras profissões, tais como a fisioterapia e a fonoaudiologia, reforça-se esse distanciamento pelas disputas de práticas e saberes na primazia de alguns cuidados historicamente associados ao trabalho da enfermagem.

Portanto, dar conta do dia a dia dos serviços em suas várias dimensões de organização e a possibilidade de falar pela equipe da APS, conforme observado nos resultados apresentados, pode ser interpretado por diversos olhares. Dentre eles, destacam-se: a falta de disponibilidade dos outros profissionais para se deterem sobre o conjunto dos processos de trabalho da equipe; a perspectiva dos profissionais de serem responsáveis apenas pela parcela do trabalho afeto à corporação a que estão ligados; a maior dedicação e preocupação com o andamento dos fluxos de trabalho; o abandono do cuidado direto, que nos hospitais pode estar sendo transferido para o profissional de enfermagem de nível médio e, no caso da atenção básica, para os agentes comunitários de saúde; e a busca, por meio de um perfil mais gerencial e menos cuidador, por maior reconhecimento e status profissional diante da equipe e da sociedade, apontando para uma reconfiguração das práticas ou mesmo para uma nova reestruturação produtiva, conforme enunciado por Franco3.

Os resultados apresentados revelam as mudanças no processo da institucionalização profissional do enfermeiro, tradicionalmente uma prática assistencial que passa a apresentar novos desafios com sua inserção em equipes de atenção básica, cuja atuação passa a incluir práticas administrativas mais afetas aos processos gerenciais tradicionais. Tais mudanças apontam para uma diversificação das possibilidades do mercado de trabalho, das exigências do capital e para a necessidade de definição de políticas relacionadas ao trabalho em saúde na atenção básica e à formação de profissionais qualificados para atuar em saúde coletiva.

Em relação aos vínculos de trabalho, esses resultados vão ao encontro do estudo de Girardi et al.9, sobre vínculos de trabalho na ESF, entre 2000 e 2010, que aponta para uma tendência de desprecarização do trabalho. Contudo, a realização de contratos temporários por 70% dos municípios estudados pelos autores demonstra que a precarização dos vínculos ainda se constitui em importante problema a ser enfrentado.

Para Cotta et al.10, existe uma grave crise da situação de trabalho dos profissionais de saúde atuantes no âmbito do SUS e, dentre os principais fatores agravantes, no Brasil, encontra-se a proliferação dos contratos informais de trabalho e o não pagamento, por muitos empregadores, dos encargos sociais de sua responsabilidade para, enfim, privar os trabalhadores de direitos garantidos a eles pela lei, como férias, fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS), licenças, décimo terceiro salário e aposentadoria. As autoras afirmam que esses profissionais permanecem à mercê da instabilidade político-partidária e de diferenças entre governos que se sucedem no poder, tão presentes na realidade dos municípios brasileiros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora o objetivo de estudo do PMAQ, isoladamente, não tenha sido o trabalho dos enfermeiros, os dados obtidos no trabalho de campo com vistas à avaliação da atenção básica e no diagnóstico da infraestrutura por meio do censo nas unidades da APS no Brasil sinalizam a forma como os enfermeiros se fizeram presentes em quase a totalidade dos serviços nos estados brasileiros como informantes-chave.

A coleta dos dados não nos permite uma análise mais qualificada sobre esse achado, mas nos indica que pode estar em curso uma reconfiguração nos modos como esse profissional vem reorganizando seu processo de trabalho, afastando-se do modelo tradicional que tem dado suporte à formação e à própria historicidade da profissão.

A inserção em equipes da APS tem suscitado novas modelagens de produção do cuidado, uma vez que, nesse nível de atenção, o modelo tecno-assistencial em disputa requer também o manejo das tecnologias leves, inscritas tanto nas relações quanto no vínculo, na escuta qualificada e no acolhimento.

Essas configurações tecnológicas estão afetas a processos de reestruturação produtiva, ou seja, são reveladoras de que podem estar em andamento transformações que vêm sendo introduzidas nos sistemas produtivos, impactando os processos de trabalho, gerando mudanças no modo de elaborar os produtos e efetivamente modificando as formas de assistir às pessoas. Ao mesmo tempo, percebeu-se também a produção de certa transição tecnológica, dada por um novo padrão de produção de cuidados, que alteram, não apenas o modo de organização do processo produtivo, conforme os interesses do capital, mas o núcleo tecnológico do cuidado, invertendo-o, em particular no que diz respeito às tecnologias leves. Essas situações têm sido geradoras de sentimentos ambíguos, que tanto podem levar a tensões, disputas e escolhas reveladoras das diferentes intencionalidades, quanto à sensação de reconhecimento e valorização, conforme parece ter sido delineado neste estudo, a partir das muitas particularidades da produção do trabalho em saúde na atenção básica.

A análise do trabalho em saúde na APS aponta para uma busca necessária de superação da fragmentação do processo de trabalho, das relações entre os diferentes profissionais e do entendimento de saúde como simples ausência de doença (cultura sanitária biomédica), bem como para a ampliação e o fortalecimento da concepção de saúde como produção social, econômica, cultural e de qualidade de vida.

REFERÊNCIAS

Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Auto avaliação para a Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica: AMAQ 2012. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ): manual instrutivo 2012. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
Franco TB, Merhy EE. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde. São Paulo: HUCITEC, 2013.
Galavote HSG et al. Análise da organização da Atenção Básica no Espírito Santo: (des) velando cenários. Saúde em Debate. 2014; Número Especial (38): 221-236.
Oliveira RG, Marcon SS. Trabalhar com famílias no Programa de Saúde da Família: a prática do enfermeiro em Maringá-Paraná. Rev. Esc. Enferm. USP. 2007; 41 (1): 65-72. Link DOILink PubMed
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Matumoto et al. A prática clínica do enfermeiro na atenção básica: um processo em construção. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2011; 19(1): 1-8.
Girardi S et al. O Trabalho Precário em Saúde: Tendências e Perspectivas na ESF. Divulgação em Saúde para Debate. 2010; 45: 11-23.
Cotta RMM et al. Organização do trabalho e perfil dos profissionais do Programa Saúde da Família: um desafio na reestruturação da atenção básica em saúde. Epidemiol. Serv. Saúde. 2006; 15(3): 7-18.
Jonas et al. A função gerencial do enfermeiro na Estratégia Saúde da Família: limites e posibilidades. Rev. APS. 2011; 14(1); 28-38.
Laignier MR, Lima RCD. O processo de trabalho e as implicações na saúde dos profissionais de enfermagem em um hospital pediátrico de Vitória: relações e intercessões na produção cotidiana do cuidar. Saúde em Debate. 2010; 34(86): 504-14.

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