Volume 19, Número 3, Jul/Set - 2015
PESQUISA
Teoria do autocuidado na desintoxicação química de gestantes em uso do
crack: contribuições da enfermagem
Thalissa Nicolli
1
Maria Helena Gehlen
1
Silomar Ilha
2
Claudia Maria Gabert Diaz
1
Karine de Freitas Cáceres Machado
1
Elisabeta Albertina Nietsche
3
1 Centro Universitário Franciscano. Santa Maria - RS, Brasil
2 Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande - RS, Brasil
3 Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria - RS, Brasil
Recebido em 17/06/2014
Aprovado em 04/01/2015
Autor correspondente:
Silomar Ilha
E-mail:
silo_sm@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Identificar as contribuições das atividades promotoras do autocuidado
desenvolvidas com gestantes em desintoxicação química pelo uso do crack,
utilizando como referencial a Teoria de Dorothea Orem.
MÉTODOS:
Pesquisa descritiva, exploratória, qualitativa, realizada entre agosto e
novembro/2013 com cinco gestantes internadas na unidade de desintoxicação química
de um hospital geral da região central do Rio Grande do Sul. Os dados foram
coletados antes e após as atividades que foram desenvolvidas no período descrito,
por meio de entrevista semiestruturada e foram submetidos à análise de conteúdo,
após a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa local (Parecer nº 072/2010).
RESULTADOS:
Identificaram-se as categorias: da ausência à necessidade das atividades que
estimulem à prática do autocuidado; contribuições das atividades no estímulo e
aceitação da desintoxicação química e autocuidado; autocuidado realizado pelas
gestantes após a realização das atividades.
CONCLUSÃO:
As atividades desenvolvidas com gestantes mostraram-se potencializadoras para o
autocuidado das mesmas na realidade investigada.
Palavras-chave: Cocaína crack; Autocuidado; Gravidez; Cuidados de Enfermagem.
INTRODUÇÃO
A gravidez é um evento complexo e uma experiência repleta de sentimentos intensos, pois se caracteriza como um momento em que ocorrem alterações físicas e psicológicas na mulher, as quais podem gerar variadas reações emocionais1. A associação da gravidez com o uso de drogas é um fator que coloca em risco a maternidade, e a preocupação com esse fenômeno vem se elevando à medida que aumenta a prevalência do uso de substâncias psicoativas pelas mulheres grávidas, fato que vem ocorrendo durante as últimas décadas2.
O uso de drogas, incluindo o crack durante a gestação pode desencadear abortos espontâneos, prematuridade, diminuição no crescimento do feto, entre outras alterações perinatais. Além disso, aqueles que nascem vivos podem apresentar retardo ou outros transtornos mentais e comportamentais que trarão sérias consequências à vida do bebê e da família3. Em relação ao seu efeito teratogênico, o crack atravessa rapidamente a barreira placentária sem sofrer metabolização, agindo diretamente na vascularização fetal, podendo ocorrer malformação urogenitais, cardiovasculares e do sistema nervoso central3.
O abuso de drogas no período gestacional é de etiologia multifatorial, pois está associado a fatores de risco tais como: autoestima baixa, sistemas de apoio inadequado, barreiras socioeconômicas, envolvimento em relacionamentos abusivos e história pregressa de doença psiquiátrica4. Nesse sentido, é premente a utilização metodológica do processo de enfermagem no estímulo ao autocuidado das pessoas que buscam a promoção da saúde, tratamento, recuperação, reabilitação e reinserção social, dentre elas, as gestantes com necessidades decorrentes do uso de crack5.
Vale destacar que a trajetória percorrida no desenvolvimento da ciência de enfermagem está pautada numa ampla estrutura teórica, e o processo de enfermagem é o modelo por meio do qualessa estrutura é efetivada no cuidado. O processo de enfermagem à luz da teoria do autocuidado de Dorothea Orem estimula a pessoa a participar de forma ativa no cuidado terapêutico, pois enfatiza a importância do engajamento do cliente para o autocuidado6.
O autocuidado pode ser compreendido como a prática de atividades que as pessoas realizam em seu próprio benefício, com o objetivo de manter a vida, a saúde e o bem-estar. Tem como propósito, a efetivação de ações, que, seguindo um modelo, contribui de maneira específica, na integridade, nas funções e no desenvolvimento humano7.
Dessa forma, a Teoria do Autocuidado de Orem, fornece uma estrutura para a atuação da enfermagem com ampla visão nos aspectos relativos ao levantamento das necessidades particulares das pessoas, neste caso, das gestantes em situação de desintoxicação química, devido ao uso do crack. Além disso, é uma metodologia, que facilita o planejamento do cuidado de enfermagem às gestantes em situação de desintoxicação química, estimulando a participação ativa na reabilitação, encorajando-as ao autocuidado, proporcionando a reinserção social e, assim, um viver saudável8.
O enfermeiro, ao se apropriar da teoria do autocuidado e aplicá-la na desintoxicação química das gestantes, poderá desenvolver a comunicação dialógica, pois essa teoria permite estabelecer relações de confiança que contribuam para identificar causas, fazer um diagnóstico preciso, discutir soluções que se coadunem melhor com o estilo de vida de cada pessoa5. Quanto à conduta de enfermagem à gestante sabe-se que o pré-natal de baixo risco é um cuidado que pode ser realizado pelo(a) enfermeiro(a). Ele(a) pode receber a gestante para realizar a consulta de Enfermagem com o objetivo de conhecer, intervir sobre os problemas, situações e doenças e fazer a solicitação de exames de rotina e complementares4.
O principal objetivo da atenção ao pré-natal e puerperal é acolher a mulher desde o início da gravidez, assegurando, no fim da gestação, o nascimento de uma criança saudável, garantindo o bem-estar materno e neonatal9. No entanto, quando se trata de gestantes com necessidades decorrentes do uso de crack, deve-se dar ênfase não só à inclusão de ações educativas que se fazem sob o modo de orientações dialógicas, oficinas, atividades lúdicas entre outros, como também destacar à importância, nesse contexto, do processo de desintoxicação química.
Alguns estudos vêm sendo desenvolvidos com gestantes com necessidades decorrentes do uso do crack2,3. No entanto, há uma lacuna do conhecimento acerca da teoria do autocuidado no atendimento a essas pessoas, reforçando a importância desse estudo no que concerne à construção de um conhecimento a ser agregado aos dos já existentes acerca da temática crack e outras drogas. Essa pesquisa justifica-se, ainda, por acreditar que o desenvolvimento de atividades que estimulem à aceitação do tratamento e promovam o autocuidado das pessoas, nesse caso, das gestantes no período de desintoxicação química poderá estimularo viver saudável da mãe e do bebê durante e após o tratamento, dentro de seu contexto e escolhas10.
O viver saudável pode ser entendido como um processo singular e multidimensional que não pode ser apreendido e definido como algo objetivo, estático ou como um fim em si mesmo. Como um fenômeno complexo, cuja compreensão implica o reconhecimento das condições do meio em que o ser humano está inserido e no qual vivencia concretamente o seu viver11.
Com base no exposto, questiona-se: como as atividades promotoras de autocuidado embasadas na Teoria de Dorothea Orem contribuem para as gestantes no processo de desintoxicação química pelo uso do Crack? Na tentativa de responder o questionamento e na possibilidade de ampliar olhares acerca do processo de desintoxicação química pelo uso do crack, sob a perspectiva do referencial do autocuidado, objetivou-se identificar as contribuições das atividades promotoras do autocuidado desenvolvidas com gestantes em processo de desintoxicação química pelo uso do crack, utilizando como referencial a Teoria de Dorothea Orem.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa descritiva, exploratória de abordagem qualitativa12, desenvolvida levando-se em consideração as contribuições das atividades do projeto: "Cuidado lúdico: estratégia educativa inovadora na promoção de saúde integral".
Tal projeto tem como objetivo, desenvolver o cuidado lúdico em saúde, por meio da integração do ensino, da pesquisa e da extensão, com vista à educação e promoção da saúde. É desenvolvido em uma unidade de internação para desintoxicação química do crack e outras drogas, de um hospital geral de médio porte da região central do Rio Grande do Sul, por docentes e discentes do curso de graduação em enfermagem de uma instituição de ensino superior e utiliza como referencial a teoria do autocuidado de Dorothea Orem.
O estudo foi realizado com gestantes em processo de desintoxicação química pelo uso do crack em uma unidade de tratamento para dependência química do referido hospital. Essa unidade destina, aproximadamente, 24 leitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), para dependentes químicos: um leito infantil (para menores de 10 anos), quatro leitos para adolescentes (dos 14 aos 18 anos e abaixo de 14 anos somente com acompanhante), 10 leitos para mulheres adultas (acima de 19 anos) e 10 leitos para homens adultos (acima de 19 anos). Nessa unidade, o atendimento das necessidades das pessoas é desenvolvido por profissionais da área das ciências da saúde e humanas.
Estabeleceram-se como critérios de inclusão dos sujeitos do estudo: estar em período gestacional e em processo de desintoxicação química pelo uso de crack e possuir 18 anos ou mais. Como critérios de exclusão consideraram-se: gestantes que, durante a operacionalização da pesquisa, estivessem hipersexualizadas, com risco de agressão, fuga, homicídio, suicídio, surtos psiquiátricos, mutilados, com agravos contagiosos como a tuberculose ou terem menos de 18 anos. Das seis mulheres internadas para o tratamento no período em que se desenvolveu o estudo, uma era menor de 18 anos, não atendendo, portanto, aos critérios de inclusão, formando o corpus desse estudo cinco gestantes.
Os dados foram coletados antes e após as atividades promotoras de autocuidado desenvolvidas pelo projeto supracitado no período de agosto a novembro de 2013. Inicialmente, realizou-se entrevista semiestruturada individual, contemplando questões abertas acerca dos cuidados e autocuidados realizados no dia a dia na unidade de desintoxicação química.
Posteriormente, foram planejadas e realizadas atividades educativas por meio de rodas de discussão, oficinas terapêuticas utilizando cartazes, álbum seriados, objetos e artefatos lúdicos (maquiagens, bonecos, roupas e adereços coloridos) e, oficinas de embelezamento estético, como um estímulo ao viver saudável. Durante as atividades, as gestantes receberam explicações acerca do crack; a importância do cuidado e autocuidado; tiveram a oportunidade de tirar suas dúvidas junto aos profissionais e acadêmicos de enfermagem, bem como relatar suas experiências das necessidades decorrentes do uso da crack ao grupo.
Após as atividades, foram realizadas novas visitas a unidade e as entrevistas foram refeitas com as gestantes com objetivo de avaliar a aplicabilidade e contributo das atividades para o estímulo a prática do autocuidado realizados pelas gestantes no dia a dia na unidade de desintoxicação química.
Os dados coletados foram organizados e após analisados com base na análise de conteúdo13, que consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença ou frequência acrescentem perspectivas significativas ao objeto de estudo em questão. A noção da temática está associada a uma afirmação que diz respeito a um determinado assunto, podendo ser apresentada por uma palavra, frase ou ideia13.
Desse modo, a operacionalização do processo de análise seguiu as três etapas do método. Na primeira etapa, denominada de pré-análise, se buscou fazer uma leitura exaustiva dos dados, seguida da organização do material e da formulação de hipóteses. Na sequência, foi realizada a exploração do material, ou seja, se buscou codificar os dados brutos. Na terceira e última fase, os dados foram interpretados e delimitados em eixos temáticos, de acordo com os significados atribuídos13.
Foram considerados os preceitos éticos e legais que envolvem a pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução 466/2012 do Ministério da Saúde14, as participantes foram identificadas por nome de flores e o projeto de pesquisa obteve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Franciscano, sob o nº 072.2010.
RESULTADOS
A partir da análise dos dados, emergiram três categorias, quais sejam: da ausência à necessidade das atividades que estimulem à prática do autocuidado; contribuições das atividades no estímulo e aceitação da desintoxicação química e autocuidado; o autocuidado realizado pelas gestantes, após a realização das atividades.
Da ausência à necessidade das atividades que estimulem à prática do autocuidado
Ao buscar identificar se/como eram realizadas as atividades de (auto)cuidado às/pelas gestantes no dia a dia na unidade de desintoxicação química, antes das atividades promotoras de autocuidado, observou-se que a teoria não era utilizada no cotidiano da unidade investigada, visto que não haviam praticas educativas que estimulassem o autocuidado e a educação em saúde sobre as necessidades biológicas, cognitivas, emocionais e espirituais no vínculo do binômio mãe-bebê, conforme os relatos:
Eu durmo bastante para a hora passar mais rápido, não vejo a hora de sair deste lugar, vem poucas pessoas com atividades, gostaria de me envolver mais. (Orquídea)
Não realizo nenhum tipo de cuidado aqui, só penso em sair daqui, entregar essa criança e fumar crack, eu sei que esse é meu destino, morrer pelo crack. (Violeta)
A minha rotina aqui não existe, eu só durmo, e peço remédio pra dormir. Tenho muita saudade do meu marido que está preso. Aqui não tem muitas atividades e, quando tem, eu não participo, prefiro ficar nos meus pensamentos. (Margarida)
Nos relatos a seguir, observa-se o desconhecimento e desinteresse das gestantes em conhecer os efeitos do crack durante o período gestacional. Também desconheciam os cuidados básicos para o desenvolvimento saudável de seus bebês.
Não sei muita coisa sobre isso, porque eu não queria engravidar, afinal nem sei quem é o pai dessa criança, não gosto de estar grávida e não sou eu quem vai cuidar dessa criança, vou dar para adoção! (Orquídea)
Eu não sei nada sobre o que a pedra (crack) pode fazer para o bebê que está dentro de mim, e nem quero saber e me preocupar, afinal essa criança nem minha vai ser, sei que o juiz vai me tomar, então estou me lixando [...] (Margarida)
Outras gestantes, embora desconheçam o mal que o crack causa a elas e aos bebês, demonstram interesse e sugerem atividades de aprendizado. A seguir, têm-se os relatos:
Eu acho que nós poderíamos ter mais aprendizado sobre o bebê, sobre o que acontece com ele, eu sei que o crack que uso não faz bem a ele, mas os danos específicos eu não sei. (Azaleia)
Eu sei que o crack não faz bem para o meu bebê, por isso eu quero parar, quero me tratar, sei que se eu continuasse usando ele podia ficar doente [...] (Violeta)
Eu sei que tenho que me cuidar, e que todo esse pessoal do hospital está aqui para me ajudar, e me dão informações importantes, diariamente, sobre minha saúde. É bom saber que têm pessoas que acreditam na gente, acreditam no nosso potencial de conseguir vencer essa luta, depois que entrei aqui comecei a pensar muito nisso, quero ficar boa. (Camélia)
Pode-se observar ainda, que em dois dos três relatos as gestantes demonstram interesse em parar com o uso do crack, realizar o tratamento e ficar bem. No relato de uma das gestantes é possível perceber que a mesma reconhece os profissionais atuantes na unidade como pessoas que estão ali para ajudá-la, fornecer informações e apoiá-la no processo de desintoxicação.
Contribuições das atividades no estímulo e aceitação da desintoxicação química e autocuidado
Ao proceder novamente as entrevistas com as mesmas questões utilizadas anteriormente, porém, após as atividades promotoras de autocuidado embasadas na Teoria de Orem, realizadas pelos docentes e discentes no projeto de extensão desenvolvido na unidade de desintoxicação química, observou-se que as atividades estimularam as gestantes para o viver saudável e proteção do bebê, promovendo o autocuidado e aceitação da desintoxicação:
Achei bom, aproveitei bastante, pois as atividades foram educativas, aprendi várias coisas sobre o que pode acontecer com meu filho e comigo, hoje sou mais consciente. (Azaléia)
Acho bem interessante as atividades, pois elas nos ensinam a cuidar de nos mesmas, só acho que poderia ter algo mais específico para as gestantes, como aulas para aprender a dar banho e amamentar nossos futuros bebês, para quando eles nascerem a gente já saber como fazer. (Violeta)
Inferiu-se que a aplicabilidade das atividades propostas para estimular o autocuidado na unidade de desintoxicação química, beneficiou e valorizou as gestantes para que elas consigam aceitar que é necessário esse momento de hospitalização nas suas vidas, como um início da busca constante para ser feliz sem o uso do crack e com os seus filhos.
Com certeza, aqui eu sou ouvida, tenho atenção, as atividades tornam nosso dia mais alegres. Daqui de dentro tenho uma visão diferente da minha vida lá fora, só agora percebo como é fácil, basta eu tentar, e agora, tenho ajuda da minha família e do meu bebê, pois estou fazendo isso por ele também. (Camélia)
Eu gosto e me sinto estimulada a largar a pedra (crack) para sempre, quando tem as atividades que tem a ver com meu bebê. Esses dias, as gurias da enfermagem mostraram todas as fases do desenvolvimento do eto, do primeiro ao nono mês, foi muito emocionante. (Violeta)
Observa-se que o desejo de constituir família foi despertado nas gestantes durante a desintoxicação. Principalmente, após estas iniciarem as atividades promotoras de autocuidado, embora haja dificuldade de concentração para o cuidado próprio, em decorrência da baixa autoestima ocasionada pelo uso do crack.
Quando cheguei aqui não queria nada com nada, só pensava em fugir, até que fui me acalmando, fui participando das atividades e conversando com o pessoal e parece que agora as coisas certas estão entrando na minha cabeça, quero fazer tudo certo para poder ter meu bebê e meu marido de volta. (Azaléia)
Tem dias que me sinto para baixo, tenho vontade só de dormir, até peço, às vezes, para enfermeira me dar remédio para dormir, mas é complicado porque quero melhorar para sair daqui e ter minha família, minhas coisas e minha vida, quero me curar e ficar bem. (Violeta)
Percebe-se que estimular o autocuidado, ajuda na aceitação da importância da desintoxicação química, principalmente durante a gestação, a qual requer um cuidado de enfermagem e saúde com manejo que valorize a essência e a história de vida da pessoa hospitalizada, para que a mesma possa escolher conscientemente o viver saudável.
Autocuidado realizado pelas gestantes após as atividades promotoras de autocuidado
Para as entrevistadas, a prática do autocuidado a que elas foram estimuladas por meio das atividades do projeto no dia a dia durante a desintoxicação no período de internação, ajudaram na reorganização da rotina de viver sem o crack, embora ainda sintam o desejo de consumir a substância:
Eu costumo ler bastante para ocupar a cabeça, também faço bastantepalavras cruzadas. (Violeta)
Aqui eu tenho uma rotina de cuidados comigo, o que na rua não acontecia porque eu vivia "noiada" (sob o efeito da droga) e não sabia o que estava fazendo. Aqui eu acordo, tomo banho, assisto televisão, depois tomo mate e tenho uma interação boa com as meninas, nós conversamos bastante. (Azaléia)
É possível observar nos relatos a seguir que, mesmo sem saber exatamente o mal que a droga pode causar durante a gravidez, as gestantes já possuem a compreensão de que seu uso traz malefícios à saúde e demonstram interesse pelo filho e por viver sem o uso do crack.
Eu sei que não faz bem, não sei descrever quais os efeitos específicos, tentei diminuir o uso durante a gestação, mas não parei de usar[...] (Azaléia)
Eu sei que meu bebê pode ter problema na cabeça e pode nascer todo torto e, por isso, estou me tratando, quero meu filho sadio quando nascer. (Camélia)
Eu sei que o crack não faz bem para o meu bebê, quero parar[...] (Orquídea)
Percebeu-se que o estímulo a prática do autocuidado no período de desintoxicação química, auxiliou no processo de (re)organização da rotina das gestantes. Por conseguinte, os relatos:
Eu acordo, arrumo a cama, tomo banho e fico aguardando a hora de ir para o pátio. Quando voltamos, eu leio, assisto televisão [...] quando vem os acadêmicos aqui na unidade, temos atividades diferentes para fazer. (Violeta)
Eu acordo e vou direto para o banho, é a hora que mais gosto, porque ele (bebê) se mexe bastante. Depois do banho, passo bastante creme na barriga e converso comesse serzinho que está crescendo aqui dentro, parece que ele me entende, dá cada chute, coisa mais querida! (Camélia)
Pode-se observar nos relatos de duas gestantes, que o autocuidado realizado na unidade de desintoxicação química prepara para aceitação da condição de estar grávida bem como na formação do vínculo e afeto pelo bebê.
DISCUSSÃO
As substâncias psicoativas vêm se disseminando, constituindo um fenômeno alarmante, invasivo, colocando a sociedade em frente a um problema de saúde pública15. Esse fato contextualiza uma problemática que chama atenção tanto do poder público quanto dos órgãos de saúde privada, universidades e sociedade, na medida em que há tendência ao crescimento insustentável do consumo de crack, com significativas consequências educativas, físicas, emocionais, políticas, sanitárias e sociais16.
Dessa forma, torna-se importante a aplicação de teorias na prática clínico/assistencial dos profissionais de saúde em busca de resultados mais efetivos, tanto na promoção da saúde e prevenção de novos casos, como também no tratamento dos já existentes. Nesse cenário, se insere a Teoria do autocuidado de Dorothea Orem, que engloba o autocuidado, a atividade de autocuidado e a exigência terapêutica de autocuidado7.
O autocuidado é a prática de atividades educativas iniciadas e executadas pelos indivíduos em seu próprio benefício para a manutenção da vida e do bem-estar. A atividade de autocuidado constitui uma habilidade para engajar-se no autocuidado. A exigência terapêutica de autocuidado constitui a totalidade destas ações, por meio do uso de métodos válidos e conjuntos relacionados de operações e ações17.
Na unidade, onde se realizou o estudo, a teoria do autocuidado não era utilizada no cotidiano. As gestantes não realizavam atividades que as estimulassem, ou não havia a rotina de atividades e, por essa razão, dormiam o máximo possível para que as horas passassem rápido, e logo chegasse o dia delas irem embora. No modelo de Orem, a meta é ajudar as pessoas a satisfazerem suas próprias exigências terapêuticas de autocuidado o qual tem por objetivo fazer a pessoa crescer, desenvolver-se e, também, ajudar na prevenção, controle e cura de processos de enfermidades e danos17.
Estudo realizado na Região Noroeste do Rio Grande do Sul, com objetivo de descrever como as pessoas com necessidades decorrentes do uso de drogas percebem o uso das mesmas em sua vida, demonstrou que a atitude de mudança necessita emergir da própria pessoa; caso contrário a mudança não acontecerá. Quando a pessoa com necessidades decorrentes do uso de drogas não compreende a necessidade da mudança de atitude, a reabilitação não ocorre, uma vez que volta a fazer as mesmas coisas de antes do tratamento18.
Observou-se que as gestantes participantes desse estudo desconheciam e não demonstravam interesse em conhecer os efeitos do crack durante o período gestacional; algumas demonstraram, ainda, desinteresse pelo bebê e desconhecimento acerca dos cuidados básicos para o seu desenvolvimento saudável. Evidenciou-se, dessa forma, insatisfação quanto ao autocuidado, tanto atual, quanto futuro, que deveria ser sanada ou contornada. No entanto, a teoria do autocuidado de Orem pressupõe que o ser humano tem habilidades próprias para promover o cuidado de si mesmo, e que pode beneficiar-se com o cuidado da equipe de enfermagem quando apresentar incapacidade de autocuidado ocasionada pela falta de saúde17.
Dessa forma, para que as gestantes optassem por aceitar o tratamento de desintoxicação química e sentissem a necessidade do autocuidado foram realizadas atividades, que as estimularam o interesse por viver saudável e sem o uso do crack. Orem conceitua a enfermagem como um serviço humano para a ajuda de pessoas na obtenção e recuperação de habilidades e declara que os aspectos físicos, psicológicos, interpessoais e sociais da saúde são inseparáveis no indivíduo. Sua definição de pessoa refere-se a seres humanos que se diferenciam de outros seres vivos por sua capacidade de refletir acerca de si mesmos e de seu ambiente, possuindo capacidade para a aprendizagem e o desenvolvimento17.
Para as gestantes em processo de desintoxicação pelo uso do crack, as atividades propulsoras do autocuidado desenvolvidas na perspectiva do referencial da teoria de Orem, se mostraram promotoras do viver saudável, pois auxiliaram na compreensão acerca da situação em que se encontravam e da importância do autocuidado. Evidenciou-se que após as ações ligadas ao projeto de extensão que foram realizadas na unidade, as gestantes mudaram sua postura, passaram a promover o seu autocuidado, e por consequência disso, o cuidado do ser que estava sendo gerado por elas.
As atividades auxiliaram, ainda, no processo de (re)organização da rotina das gestantes, onde as mesmas manifestaram um maior cuidado de sí e do bebê, e por conseguinte, o interesse em viver sem crack, embora ainda sentissem o desejo de consumi-lo. Salienta-se, nesse contexto, que a assistência e o cuidado a gestante em dependência química, não deve se restringir às ações clínico-obstétricas, mas incluir as ações de educação em saúde na rotina da assistência integral, assim como aspectos antropológicos, sociais, econômicos e culturais, que devem ser conhecidos pelos profissionais que assistem as mulheres grávidas, buscando entendê-las no contexto em que vivem.
Assim, o profissional enfermeiro que atua na área de reabilitação e reinserção social pelo uso do crack, deve possuir além do conhecimento teórico-prático, uma atuação humanizada, que inicie no momento em que a pessoa chega à unidade, seguindo no processo de desintoxicação química e estendendo-se aos pacientes que se encontram em tratamento prolongado5.
CONCLUSÃO
Considera-se satisfatória a realização deste estudo, pois foi possível conhecer as contribuições das atividades promotoras do autocuidado desenvolvidas com gestantes em desintoxicação química pelo uso do crack, utilizando como referencial a Teoria de Dorothea Orem. Destacaram-se a aceitação da hospitalização, a reorganização da rotina e o estímulo à prática do autocuidado e do viver sem o crack, o restabelecimento do vínculo e proteção do bebê, bem como o desejo de constituir família.
Algumas fragilidades permearam a construção desta pesquisa, entre elas, a escassez de estudos com gestantes usuárias de crack, tendo como referencial a teoria do autocuidado. Como pontos positivos que auxiliaram na realização da mesma, destaca-se a receptividade das gestantes, que aceitaram e colaboraram com as atividades propostas. O referencial adotado possibilitou perceber as potencialidades das gestantes e o poder que estas detêm sobre suas ações na transformação consciente de sua situação saúde-doença. A teoria de Orem apresentou-se como fundamental estratégia para reflexão e discussão das situações de saúde, levando à tomada de consciência, o que conduziu a um melhor enfrentamento das situações vivenciadas.
Estes fatores contribuíram para efetivação desta pesquisa, que apresenta características que a tornam inédita e contributiva para o (re)pensar das práticas dos profissionais de enfermagem/saúde, reforçando a importância da mesma no que concerne a construção de um conhecimento a ser agregado aos dos estudos já existentes acerca da temática crack e outras drogas. As atividades desenvolvidas com gestantes mostraram-se potencializadoras para o autocuidado das mesmas na realidade investigada. Possibilitou explorar, individualmente, o potencial de cada uma das gestantes evidenciando suas qualidades que, muitas vezes, foram deixadas de lado em decorrência do crack. Estimulou-se o resgate do autocuidado, da família, da reconstrução de valores, e da possibilidade de uma vida diferente sem o uso do crack.
Acredita-se que o assunto abordado possa gerar impacto nas opiniões dos profissionais de saúde e sociedade, pois demonstra a contribuição efetiva no que concerne o resgate do autocuidado das gestantes em dependência química pelo uso do crack. Espera-se que estes dados venham a contribuir com a ciência da enfermagem/saúde no que concerne o cuidado de forma ampliada à gestantes com necessidades decorrentes do uso de crack por meio de referenciais que valorizem o potencial do ser humano.
Sugere-se a implementação da teoria do autocuidado proposta por Dorothea Orem no cotidiano de atuação dos profissionais de enfermagem/saúde na realidade investigada e em outros cenários de saúde. Este assunto não se esgota neste estudo, e muitos olhares poderão advir ao rever os dados apresentados. Considera-se de suma importância que novas pesquisas sejam realizadas acerca da contribuição da teoria do autocuidado à gestantes em processo de desintoxicação química pelo uso do crack.
REFERÊNCIAS