Volume 19, Número 2, Abr/Jun - 2015
PESQUISA
(Re)organização das famílias de idosos com Alzheimer:
percepção de docentes à luz da complexidade
Silomar Ilha
1
Dirce Stein Backes
1
Marli Terezinha Stein Backes
2
Marlene Teda Pelzer
1
Valéria Lerch Lunardi
1
Regina Gema Santini Costenaro
3
1 Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande - RS, Brasil
2 Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis - SC, Brasil
3 Centro Universitário Franciscano. Santa Maria - RS, Brasi
Recebido em 28/05/2014
Aprovado em 05/03/2015
Autor Correspondente:
Silomar Ilha
E-mail:
silo_sm@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Conhecer a percepção de docentes dos cursos da área da saúde que integram um
projeto universitário de apoio a familiares/cuidadores de idosos com a doença de
Alzheimer acerca da (re)organização familiar à luz da complexidade.
MÉTODOS:
Trata-se de uma pesquisa descritiva, exploratória de abordagem qualitativa,
realizada com docentes que participavam do grupo de apoio desenvolvido em uma
instituição universitária da região central do Rio Grande do Sul, Brasil. Os dados
foram coletados entre julho e agosto de 2013, por meio da técnica de Grupo Focal,
e submetidos à Análise Focal Estratégica.
RESULTADOS:
Identificaram-se três categorias: Alzheimer: Processo singular e multidimensional;
Fatores que fragilizam a (re)organização familiar; Estratégias que potencializam a
(re)organização familiar.
CONCLUSÃO:
Os docentes reconhecem que a (re)organização familiar é um processo complexo,
gradual e singular, compreendido à medida em que surgem as alterações geradas pela
doença.
Palavras-chave: Doença de Alzheimer; Dinâmica não linear; Pessoal de saúde; Enfermagem.
INTRODUÇÃO
Em decorrência das mudanças demográficas e do consequente processo de envelhecimento populacional, observa-se o aumento expressivo de demências, destacando-se a doença de Alzheimer (DA), que é responsável por aproximadamente 70% dos casos em pessoas idosas1. A DA, considerada como neurodegenerativa, progressiva e irreversível, apresenta início insidioso, acarretando a perda da capacidade funcional, desorientação espacial e declínio gradual da memória, inicialmente de fatos recentes2. As características do início insidioso e declínio gradual da memória, associado a outros fatores, dificultam o diagnóstico precoce.
Estudos vêm sendo desenvolvidos com o objetivo de encontrar um diagnóstico preciso para DA3,4. No entanto, até o momento, seu diagnóstico é impreciso, visto que a única forma de precisão diagnóstica ocorre por meio de análise histopatológica do tecido cerebral post mortem. Dessa forma, o diagnóstico tem sido realizado pela avaliação da história clínica do paciente associada a exames complementares como: tomografias, ressonâncias e exames laboratoriais, utilizados para apoiar a hipótese diagnóstica5.
Atingindo, inicialmente, a área cognitiva e, mais tarde, a motora, a DA não afeta somente a pessoa idosa com a doença, mas a família como um todo, sobretudo, os familiares cuidadores que, no contexto brasileiro, são a principal fonte de cuidado de seus membros6. Por comprometer o núcleo familiar de forma singular, a DA promove desordens físicas e emocionais no paciente que produzem reflexos em todos os membros, exigindo da família, constante (re)organização em sua estrutura funcional e relacional2.
Os profissionais de saúde devem visualizar a família como uma unidade complexa pelas interações existentes entre suas partes, para que as condutas profissionais tornem-se singulares e multidimensionais. Entende-se por "complexo" a união entre a unidade e a multiplicidade de algo que foi tecido junto. No caso da família, os diferentes elementos que se congregam simultaneamente e são inseparáveis e constitutivos do todo7. Nessa perspectiva, considera-se o cuidado de enfermagem complexo, ampliado, dinâmico, integrador e dialógico, ao possibilitar a coparticipação dos indivíduos. No processo de (re)organização familiar, a Enfermagem ocupa uma função importante pela compreensão que tem do ser humano como um ser integral e pela possibilidade de intermediar a rede de relações e interações sistêmicas8.
No entanto, para que as condutas profissionais contemplem de maneira singular e multidimensional a complexidade do cuidado a pessoa idosa com a DA e de seus familiares, é imprescindível a ligação/religação dos diversos saberes profissionais. Sob o enfoque da complexidade, é necessário que a Enfermagem interaja com os demais profissionais da área da saúde e com os familiares/cuidadores das pessoas idosas com Alzheimer, a fim de estabelecer uma teia de relações e interações, de modo que os familiares possam se (re)organizar para o convívio com a DA. Também se considera relevante que os profissionais de saúde e de enfermagem, em seu processo de formação, sejam preparados com vistas a uma atuação que valorize a família como uma unidade complexa.
As questões ligadas a DA, saúde do idoso e família são de grande importância no contexto atual das políticas públicas, sendo destacadas pelo Ministério da Saúde como prioridade de pesquisa no Brasil9. Alguns estudos vêm sendo realizados com o enfoque na saúde do familiar/cuidador de pessoas idosas com Alzheimer2,5. No entanto, pouco se tem investigado sobre o processo de (re)organização familiar com vistas ao enfrentamento dessa doença que possui índices crescentes, à medida que aumenta a expectativa de vida populacional. Há também, uma lacuna do conhecimento acerca da percepção dos docentes da área da saúde que atuam com familiares/cuidadores de pessoas idosas com DA, justificando, a necessidade e relevância dessa pesquisa.
Ao conhecer a percepção dos docentes da área da saúde que atuam com os familiares/cuidadores sobre a (re)organização familiar à luz da complexidade, tem-se a oportunidade de ampliar reflexões sobre essa temática e potencializar discussões entre os profissionais de saúde. Tal conduta pode resultar em um melhor cuidado não apenas à parte, ou seja, à pessoa idosa e seu cuidador, mas à família como uma unidade complexa, em constante processo de (re)organização.
A partir dessas constatações, questiona-se: Qual a percepção de docentes dos cursos da área da saúde de uma instituição de ensino superior sobre a (re)organização familiar no contexto da doença de Alzheimer? Para tanto, objetivou-se conhecer a percepção de docentes dos cursos da área da saúde que integram um projeto universitário de apoio a familiares/cuidadores de idosos com a doença de Alzheimer acerca da (re)organização familiar à luz da complexidade.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa descritiva, exploratória de abordagem qualitativa, que possui como referencial a teoria da complexidade, a qual guiou o pesquisador e os participantes da pesquisa a refletir sobre novas formas de articular as incertezas e as desordens às novas maneiras de (re)criar os métodos para a compreensão do fenômeno. A escolha do referencial ocorreu por compreender que "uma teoria não é o conhecimento; ela permite o conhecimento. Uma teoria não é uma chegada; é a possibilidade de uma partida. Uma teoria não é uma solução; é a possibilidade de tratar de um problema"10:335.
O estudo foi realizado com docentes dos cursos da área da saúde que participavam do Projeto universitário de apoio denominado "Assistência Multidisciplinar Integrada aos Cuidadores de Portadores da Doença de Alzheimer (AMICA)", desenvolvido em uma instituição privada de ensino superior da região central do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Tal projeto vem sendo desenvolvido, sistematicamente, desde o ano de 2007, por uma equipe interdisciplinar, composta por oito docentes dos cursos da área da Saúde: uma Enfermeira, uma Farmacêutica, uma Fisioterapeuta, duas Nutricionistas, uma Odontóloga, um Psicólogo e uma Terapeuta Ocupacional, além da participação de alguns discentes desses cursos.
Em um dos encontros do grupo, os integrantes foram convidados a participar do estudo. Os critérios de inclusão foram: ser docente dos cursos da área da saúde e estar participando ativamente do projeto há pelo menos seis meses. Excluíram-se os docentes que, por alguma razão, estivessem afastados do grupo. Com base nesses critérios, fizeram parte do estudo cinco docentes, dos quais: uma Enfermeira, uma Farmacêutica, uma Fisioterapeuta e duas Nutricionistas.
Os dados foram coletados por meio da técnica de Grupo Focal (GF), que se caracteriza como um grupo de discussão que dialoga a respeito de um tema particular, vivenciado e compartilhado por meio de experiências comuns, ao receber estímulos apropriados para o debate. A escolha dessa técnica de coleta de dados decorreu de sua possibilidade de promover a interação grupal, visto que a expressão coletiva serviu como elemento para explorar e ampliar a compreensão em torno do fenômeno sob investigação11.
O GF contou com a participação de um coordenador (pesquisador principal) e com uma observadora, convidada previamente, que auxiliou no processo de coleta, na gravação dos discursos coletivos, nas anotações e nas dinâmicas realizadas nos encontros. No total, foram realizados três encontros, entre os meses de junho e agosto de 2013, cada um com duração aproximada de duas horas.
Cada encontro foi norteado por um tema específico. No primeiro, buscou-se compreender a percepção dos docentes acerca da (re)organização familiar no processo de enfrentamento da doença de Alzheimer. Para tanto, o moderador realizou a leitura de um breve texto extraído da obra A Cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento7. A seguir, os sujeitos, foram convidados a expressar/registrar em uma folha de papel A4, a primeira ideia que lhes veio à mente ao refletir sobre a doença de Alzheimer, e posteriormente, a família. Na sequência, cada participante apresentou a suas ideias, as quais possibilitaram intensas discussões coletivas, que foram ampliadas gradativamente à luz do pensamento complexo. Ao final do encontro, realizou-se uma síntese, escrita por um dos participantes, o qual se disponibilizou a fazê-la, com a ajuda dos demais. A síntese foi recolhida pelo coordenador e realizaram-se também acertos e combinações finais para o próximo encontro.
No segundo encontro, retomaram-se alguns pontos discutidos na reunião anterior e dialogou-se acerca das potencialidades/forças e fragilidades/fraquezas vivenciadas no processo de cuidado aos familiares/cuidadores de pessoas idosas com Alzheimer. Inicialmente, os docentes foram convidados a refletir sobre os questionamentos: Como foi/está sendo para você conviver com os familiares/cuidadores das pessoas idosas com Alzheimer e como você percebe a (re)organização familiar com vistas ao enfrentamento da doença? Posteriormente, foram convidados a registrar em um papel, por meio de desenhos, ilustrações, escrita ou de qualquer outra forma, as principais potencialidades/forças que auxiliam o processo de cuidado/convivência com os familiares/cuidadores e as fragilidades/fraquezas encontradas no processo de cuidado aos familiares/cuidadores. Na sequência, realizou-se uma discussão coletiva a partir do que cada um havia registrado.
No terceiro encontro, retomou-se a síntese dos encontros anteriores, e prosseguiu-se ampliando as discussões em torno de oportunidades, desafios e ameaças encontrados pelos docentes no processo de apoio à (re)organização das famílias de idosos com a doença Alzheimer. Enquanto os participantes discutiam os elementos em questão, o moderador anotou alguns termos fortes das falas, montando um pequeno esquema. Na sequência, o moderador apresentou aos docentes os tópicos registrados, questionando-os sobre sua concordância e aceitação e se gostariam de acrescentar algo. Após a análise, elaborou-se uma estrutura complexa, envolvendo os elementos discutidos no encontro, como estratégias capazes de auxiliar os familiares cuidadores, estabelecendo-se alguns elementos referentes à DA que direcionam ao cuidado na perspectiva da complexidade.
A análise dos dados teve início com as sínteses coletivas de cada encontro. O pesquisador realizou uma análise teórica dessas sínteses com base na teoria da complexidade e uma análise metodológica com base na Análise Focal Estratégica (AFE)12, a qual propõe a participação ativa e cooperativa dos sujeitos da pesquisa. A AFE é uma técnica de análise que visa ampliar o fenômeno sob investigação, neste caso, a (re)organização familiar, a partir do aprofundamento coletivo com base em potencialidades e fragilidades, bem como em desafios, ameaças, oportunidades e estratégias relacionadas às vivências pessoais e coletivas. Assim, as falas dos sujeitos foram gravadas, transcritas e analisadas, dando origem às categorias de análise apresentadas e discutidas nos resultados.
Foram considerados os preceitos éticos e legais que envolvem a pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução número 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde13. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em duas vias, ficando uma com o participante e a outra com o pesquisador. O Projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande (CEPAS/FURG), pelo Parecer de nº 092/2013. Para manter o anonimato dos participantes, os mesmos foram identificados pela letra D (docente) seguida de um algarismo (D1, D2... D5).
RESULTADOS
Dos dados organizados e analisados, emergiram três categorias, quais sejam: Alzheimer: processo singular e multidimensional; Fatores que fragilizam a (re)organização familiar; Estratégias que potencializam a (re)organização familiar.
Alzheimer: processo singular e multidimensional
A DA é percebida pelos docentes como um processo singular, pois é diferente de outras doenças em que existe uma conduta única. Em decorrência de sua sintomatologia e evolução processual, apresenta-se de forma singular para cada indivíduo e, assim, a conduta profissional mostra-se igualmente singular e complexa:
A doença de Alzheimer é extremamente singular. O cuidado de cada um é muito individualizado, então por isso que talvez seja tão complexo de lidar, porque, diferente de algumas outras doenças, no Alzheimer não existe uma conduta única, um manejo, um tratamento que seja igual. (D4).
A doença por si só é incerta. Mas a doença de Alzheimer para mim é uma das doenças mais incertas, porque as outras doenças tu tem um medicamento que pode prolongar aquela vida ou te trazer a cura [...] mas à doença de Alzheimer a gente não tem nada disso. (D2).
Os relatos dos docentes demonstram que, em decorrência de suas características incertas e imprevisíveis, a DA extrapola o núcleo familiar, caracterizando-se como multidimensional, necessitando de cuidados de profissionais de saúde:
O Alzheimer é um problema tão crônico, que ele não fica só na família, precisa de cuidado de profissionais da saúde, da família em si e da própria sociedade na forma de aceitar o paciente e a suas limitações [...] (D1).
[...] eu vejo que ela é uma doença que está interconectada dentro de um sistema. Ela é uma doença que abrange não apenas a família, mas também a sociedade e os profissionais de saúde e todas essas pessoas formam um grande sistema [...]. (D3).
As falas demonstram a complexidade que envolve a DA e a incerteza que permeia cada situação em particular, uma vez que se trata de uma doença em que não existe uma conduta única para todos os casos. Esse fato, segundo os sujeitos do estudo, necessita de uma conduta integrada, que interconecte as partes, neste estudo entendidas como os diferentes elementos que compõem a família e os profissionais de saúde como um todo, ou seja, a sociedade formando um sistema complexo por meio de relações e interações e retroações entre o todo e as partes e entre as partes e o todo.
Fatores que fragilizam a (re)organização familiar
Observou-se, nas falas dos docentes, que vários são os fatores que fragilizam o processo de (re)organização das famílias dos idosos portadores de Alzheimer, dos quais destacam-se o desconhecimento, o medo do desconhecido e a negação da doença por parte dos familiares e da sociedade:
É uma doença degenerativa e nem todo mundo tem essa percepção, essa visão, até que isso aconteça dentro da família. Ao mesmo tempo é a negação, o não quero saber, ou eu sei, mas finjo não saber, então faz de conta que daqui a pouco ela ou ele vai ficar bom, isso a gente vê muito! (D3).
[...] a gente tem um pré-conceito da doença, e a gente não entende enquanto sociedade, enquanto grupo, como uma pessoa consegue perder tantos aspectos cognitivos e sua autonomia, principalmente. Como é difícil essa aceitação! (D1).
Em decorrência da falta de aceitação, ou do medo do desconhecido, alguns familiares podem se afastar e a (re)organização familiar ocorre de maneira que o ato de cuidar concentra-se em um único familiar. Esse fato pode ser decorrência do desconhecimento ou uma forma de os familiares se protegerem em relação ao desconhecido:
Eu vejo muito esse afastamento da família, numa família com mais de um filho normalmente o cuidado centra em um e os outros se afastam [...] numa forma de dizer: "Não é que a gente não queira cuidar, mas, quanto mais longe a gente fica, menos a gente sofre, eu não vejo, não sinto!" Quem está ali na luta é que está vendo a cada dia, que está vivenciando as perdas físicas e cognitivas, é um desgaste e tem toda uma desestruturação. (D3).
[...] as pessoas não têm a real noção do que significa a doença e no que ela implica e isso gera um afastamento. Eu não quero ficar sabendo o que eu vou passar mais adiante. Tem gente que já consegue, que lida melhor com isso, mas muita gente não quer saber. (D1).
A DA implica em uma (re)organização constante devido as modificações ocasionadas pela doença. Todavia, a (re)organização possibilita novas experiências, o que faz com que a nova ordem gerada seja diferente da existente. A seguir, um relato:
[...] essa reestruturação é muito longa, ela acontece, tu vai se ajustando às modificações que são contínuas até o óbito. Então a reestruturação da família como era, essa volta à "normalidade", só acontece depois e talvez nem aconteça da mesma forma em que era antes, porque tem toda uma vivência. (D2).
No relato, percebe-se que a (re)organização acontece constantemente na vida dos familiares, tratando-se de um processo longo que se estende até o óbito do portador da DA.
Estratégias que potencializam a (re)organização familiar
Os docentes reconhecem que a (re)organização familiar é algo difícil para a família em decorrência do impacto que a DA gera, em suas diferentes dimensões e realidades. Percebem, no entanto, que as redes de apoio, bem como a interligação dos diversos saberes se constituem estratégias importantes para a (re)organização familiar:
Os pacientes que desenvolvem a doença vêm de diferentes núcleos familiares, de diferentes sistemas, então para mim a (re)organização dessa família, desse doente, tem que se dar por meio de redes de apoio, não que seja assim, cada profissional na sua área, mas interligado, tentar fazer essa relação, porque o impacto inicial do diagnóstico já é muito doloroso para a família. (D2).
[...] poderia ter mais interconexão dos diferentes sistemas e subsistemas, os serviços, vamos chamar assim, os serviços de apoio, redes de apoio, unidades, enfim [...]. (D3).
Outro docente destaca os grupos de ajuda como estratégias para a (re)organização familiar, mas refere que o melhor seria adentrar no domicílio, fortalecendo a atuação do grupo como rede de apoio. Salienta ainda a importância da articulação entre as diversas redes de apoio, tais como grupos de ajuda, unidades básicas, hospitais e escolas:
[...] o grupo de ajuda é muito positivo, mas eu penso que entrar dentro desse domicílio também faria diferença enquanto rede de apoio, visitas integradas e conectar o nosso grupo com os outros sistemas que poderiam ser os subsistemas, as unidades básicas, o hospital e a escola. Acho que dessa maneira, só dessa maneira essa (re)organização poderá ser melhor e menos dolorosa para a família. (D1).
Na fala a seguir, é possível observar que existem dificuldades para trabalhar com a família como unidade, mesmo sabendo de sua importância:
Eu acho que realmente é muito difícil a gente trabalhar com a família, eu acho isso muito importante, é por aí que começa, mas é muito difícil tu abordar [...]. Só se a gente reunir a família e ir até lá (domicílio) [...] e aí é para isso que serviria a Estratégia de Saúde da Família. (D5).
Trabalhar com a família é algo que ainda precisa ser explorado por parte dos profissionais de saúde, conforme relato de um docente, ao referir que a visão dos profissionais é, predominantemente, pontual, linear e centrada na doença. Salienta também o trabalho que deveria existir por parte da Estratégia Saúde da Família:
A respeito da (re)organização familiar, eu acho que a gente ainda está engatinhando muito. Por décadas nós fomos centrados na doença, que é o modelo biomédico, a gente vê apenas a doença e esquece a pessoa que está saudável teoricamente, fisicamente ativa, porque está cuidando da outra. Esquece que por trás disso tem muita dor física, psíquica, e isso não é levado em consideração quando a gente não tem esse contato, a gente se preocupa com o doente. (D2).
No relato da docente, essa dificuldade em trabalhar com a família pode ser atribuída à influência do modelo biomédico, que leva em consideração apenas a parte, entendida neste caso como a DA, muitas vezes, se esquecendo do indivíduo saudável que está no papel de cuidador.
DISCUSSÃO
Ao apreender a (re)organização familiar de pessoas idosas com a DA na perspectiva da complexidade, os docentes apresentam mais inquietações do que respostas, uma vez que a DA é percebida como singular por acometer cada indivíduo de maneira particular, o que leva a considerar que o cuidado ofertado é igualmente singular, multidimensional e, portanto, complexo. Além disso, referem que a DA extrapola o núcleo familiar, necessitando de uma visão global por parte dos profissionais de saúde e da compreensão da sociedade como um todo.
O pensamento complexo é capaz de reunir, contextualizar, globalizar e, ao mesmo tempo, de reconhecer o individual, o singular e o concreto. Nesse entendimento, o todo, compreendido neste estudo como a família, é uma unidade complexa que não se reduz à soma dos elementos que a constituem14. Evidencia-se, assim, que os docentes dos cursos da área da saúde possuem conhecimento multidimensional acerca da doença, compreendendo a desordem vivenciada tanto individualmente por cada familiar/cuidador, quanto pelas famílias como unidades complexas.
Esse olhar para o todo, mas também para as partes, pode ser atribuído à participação ativa no grupo de apoio aos familiares cuidadores. Ao participarem do grupo, os profissionais ampliam conhecimentos, fato que lhes permite a compreensão de que a desordem está em ação por toda parte, permitindo encontros e desencontros, co-organizando e desorganizando, alternadamente e ao mesmo tempo, pois a desordem é sempre relativa a processos de interação (re)organizadores ou dispersivos15.
Evidencia-se, portanto, que as certezas e incertezas são uma constante na atuação dos docentes participantes desse estudo em relação ao apoio aos familiares/cuidadores de pessoas idosas com a doença de Alzheimer no processo de (re)organização familiar. Por um lado, tem-se a certeza do que a doença implica tanto às partes, ou seja, a cada membro dessa família, quanto para a família como um todo. Por outro, permanece a incerteza de como atuar de forma a atender a multidimensionalidade do todo complexo. A complexidade comporta justamente o reconhecimento de um princípio de incompletude e de incerteza, a partir das quais surge o desafio do cuidado para contemplar a integralidade e a multidimensionalidade do ser humano15.
Dessa forma, evidencia-se a necessidade do cuidado multidimensional, ou seja, direcionado não apenas à parte, mas ao todo que, nesse sentido, compreende a pessoa idosa com a doença, o familiar cuidador e a família16. É importante considerar ainda a rede de relações e interações sistêmicas dessas pessoas, pois ações profissionais voltadas ao todo poderão ajudar a família a conviver com as desordens inerentes a esse processo. Os docentes reconhecem que a (re)organização familiar é algo que precisa ocorrer para a convivência com a doença e entre a parte e o todo. Porém, referem que é difícil para a família em decorrência das desordens geradas pela falta de aceitação, o desconhecimento, e o medo do desconhecido que a DA proporciona tanto às partes individualmente, quanto ao todo.
Sob o enfoque da complexidade, é necessária a articulação entre os profissionais da área da saúde, as famílias e os familiares/cuidadores das pessoas idosas com Alzheimer, potencializando essa teia de relações e interações para que os familiares possam se (re)organizar para o enfrentamento do diagnóstico e convivência com a DA.
Dessa forma, ampliam-se e se fortalecem capacidades para implementação de estratégias e condutas de cuidados multidimensionais, que contemplem, portanto, não somente o bem-estar da pessoa idosa com a DA, mas também o viver saudável de seus familiares/cuidadores e a rede de relações e interações. Como possíveis estratégias, emergem as redes de apoio a familiares e pessoas idosas com condições crônicas de saúde, que têm despertado a atenção de profissionais da saúde em geral e da psicologia em particular, pois acreditam ser importante para o enfrentamento de situações de estresse e sofrimento17. Por meio de esforços conjuntos, pode-se ampliar as intervenções que garantam que o envelhecimento seja visto como uma conquista por meio da ressignificação dos valores negativos associados às demências e ao envelhecer18.
Os docentes sujeitos deste estudo sugerem como estratégias, a relação e a interligação dos saberes dos diferentes profissionais e a articulação entre as redes de apoio, tais como grupos para familiares/cuidadores, escolas, ESF e hospitais. As estratégias podem auxiliar no processo de (re)organização dessas famílias, pois se caracterizam, segundo Morin, como a arte de integrar informações e formar esquemas de ação, com o intuito de estar aptos para reunir o máximo de certezas para enfrentar a incerteza7. A estratégia traz em si a consciência da incerteza que vai ser enfrentada e, por isso mesmo, encerra uma aposta. Os profissionais devem ter consciência da aposta, de modo a não cair em falsas certezas7.
Tais estratégias podem potencializar a capacidade das famílias de se auto-organizarem para conviver com a DA. Essa auto-organização faz com que desenvolvam complexidade, autonomia e (re)organização contínua15. Nesse contexto, os familiares podem se (re)organizar internamente para atingir níveis sempre mais complexos de organização, o que contribui para o fortalecimento das relações e associações entre o todo e as partes e vice versa, auxiliando na compreensão das desordens. Essas formas de auto-(re)organização possibilitam a construção de estratégias de enfrentamento dos problemas sociais e de saúde por meio da emancipação de indivíduos e famílias como protagonistas da própria história.
CONCLUSÃO
O estudo permitiu conhecer a percepção de docentes dos cursos da área da saúde que integravam um projeto universitário de apoio a familiares/cuidadores de portadores da DA acerca da (re)organização familiar à luz da teoria da complexidade. A DA é percebida como singular, o que implica que para a (re)organização familiar é necessário pensar na multidimensionalidade, ou seja, na pessoa idosa com a doença de Alzheimer, seus familiares cuidadores, na família como unidade complexa e na sociedade como um todo.
Os docentes reconheceram que a (re)organização familiar é um processo complexo e que acontece constantemente, ou seja, os familiares vão se (re)organizando à medida que surgem as desordens geradas pela doença. Citam alguns fatores que dificultam a (re)organização familiar, como: a negação, o desconhecimento da doença e o medo do desconhecido. Tais fatores, segundo os sujeitos do estudo, implicam que a família que vivencia a situação da DA necessita ser assistida por redes de apoio, que devem estar interligadas para que possam ser atendidas as multidimensionalidades das partes e também do todo.
Este estudo proporcionou ainda refletir acerca da percepção pontual, focada nas partes que, por vezes ainda norteia a conduta dos profissionais da saúde, o que nos remete ao modelo biomédico ainda presente tanto no processo de formação desses profissionais, quanto nos seus locais de atuação. Os resultados possibilitaram compreender que a percepção dos docentes acerca da (re)organização familiar é mais complexa do que se imagina, pois percebem a multidimensionalidade que envolve esse processo difícil e necessário às famílias que cuidam de uma pessoa idosa com a doença de Alzheimer.
O estudo também possibilitou compreender parte das fragilidades encontradas neste processo de (re)organização familiar na percepção dos docentes, bem como sinalizar possíveis estratégias que possam contribuir para esse processo, como a articulação entre as redes de apoio existentes. Suscitou reflexões acerca do processo de (re)organização familiar de pessoas idosas com a DA, as quais podem possibilitar a interconexão dos diferentes saberes para auxiliar a família nesse processo.
Tendo em vista a complexidade que envolve o processo de (re)organização familiar com vistas à convivência com a pessoa idosa com a DA, afirma-se que o assunto não se esgota com essa pesquisa. Sugere-se a realização de novos estudos voltados à percepção multiprofissional e interdisciplinar acerca da (re)organização familiar de pessoas idosas com Alzheimer para que, em um futuro próximo, esta relação de ordem-desordem-(re)organização venha a ser menos conturbada e desarticuladora dos vínculos familiares e sociais.
As limitações desse estudo referem-se a coleta de dados ter sido realizada em uma única instituição que possui grupo de apoio à familiares/cuidadores de pessoas idosas com DA, o que não permitiu a comparação dos resultados com os encontrados em outras realidades no momento do estudo. No entanto, os dados desse estudo, foram discutidos com referencial que possibilitou conhecer a percepção dos docentes dos cursos da área da saúde acerca da (re)organização familiar a partir de uma perspectiva complexa e, assim ampliar o olhar sobre o fenômeno, permitindo visualizar a ordem-desordem-(re)organização como processos antagônicos e complementares, pela apreensão da desordem como propulsora de nova ordem.
REFERÊNCIAS