Volume 19, Número 1, Jan/Mar - 2015
PESQUISA
Gestão do cuidado de enfermagem ao adolescente que vive com
HIV/AIDS
Cintia Koerich
1
Fabiana Cristine dos Santos
1
Betina Hörner Schlindwein Meirelles
1
Alacoque Lorenzini Erdmann
1
1 Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis - SC, Brasil
Recebido em 11/02/2014
Aprovado em 06/10/2014
Autor correspondente:
Cintia Koerich
E-mail:
cintia.koerich@ig.com.br
RESUMO
OBJETIVO:
Caracterizar a gestão do cuidado de enfermagem ao adolescente que vive com
HIV/AIDS por transmissão vertical, frente ao processo de transição do atendimento
em Serviços de Referência no Tratamento de HIV/AIDS (infantil e adulto) em um
estado do Sul do Brasil, propondo estratégias para a transição deste
atendimento.
MÉTODOS:
Pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva. Os dados foram coletados por meio
de observação participante e entrevista individual semiestruturada, sendo
analisados e interpretados segundo Bardin.
RESULTADOS:
Da análise dos dados emergiram três categorias, que apontaram os desafios na
gestão do cuidado, o envolvimento incipiente do enfermeiro e as estratégias a
serem utilizadas na transição do adolescente.
CONCLUSÃO:
Revela a importância do enfermeiro nesse processo de transição, com participação
ativa no planejamento, gestão e execução das ações, em suas competências.
Palavras-chave: Gestão em Saúde; HIV; Adolescente; Cuidados de enfermagem.
INTRODUÇÃO
A gestão do cuidado constitui um complemento ao processo de trabalho do enfermeiro, devendo o cuidado ser gerenciado dentro das instituições com racionalidade e sensibilidade, ultrapassando os princípios tecnicistas. Visa à criatividade e autonomia do enfermeiro, sendo base para as ações de enfermagem, a fim de que haja mudança no modo de fazer gestão1 e nos modelos de cuidar.
A gestão do cuidado deve focar nas necessidades dos seres humanos envolvidos nas relações de cuidado e, auxiliando-o a promover e preservar a vida diante das sensações de conforto e desconforto, na esperança de novos momentos e de estar em situações que se modificam constantemente2.
No cenário da AIDS, o início da epidemia foi marcada pela busca da garantia de um prognóstico positivo às crianças que viviam com a doença, e não propriamente direcionada à melhoria da qualidade de vida. Hoje, diferente do cenário inicial da epidemia por HIV no país, um grande número de crianças infectadas pela transmissão vertical chega à adolescência e à idade adulta, a partir do uso da terapia antiretroviral (TARV)3. No entanto, apesar da disponibilidade da terapia, o tratamento ainda apresenta um grande desafio em especial aos adolescentes, sendo que mesmo diante da promessa de melhor qualidade de vida, reinserção social, profissional e afetiva, existe uma resistência à aderência no tratamento4.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define adolescência o período dos 10 aos 19 anos de idade, sendo este período marcado por turbulências, desafios e comportamentos de risco5. Nesse contexto, alguns enfrentamentos na continuidade do tratamento tornam-se relevantes no cuidado de adolescentes que vivem com HIV/AIDS, como a transição do serviço de saúde infantil para o serviço de saúde adulto6.
Tal mudança não envolve somente o rompimento do acompanhamento de um serviço, antes à mudança envolve a capacidade de adaptação às novas situações vivenciadas por esses adolescentes. Ainda a realidade dos adolescentes que vivem com HIV/AIDS é pouco desconhecida pelos profissionais de saúde e, o acompanhamento do adolescente é revelado pela literatura como um atual desafio na assistência à saúde, o que evidencia a necessidade de profissionais e serviços preparados para atender essa clientela5.
Nesse sentido, questiona-se como acontece a gestão do cuidado de enfermagem ao adolescente que vive com HIV/AIDS por transmissão vertical frente ao processo de transição entre os serviços de referência em HIV/AIDS infantil e adulto? Que estratégias podem ser propostas para o processo de transição do atendimento?
Objetivou-se com este estudo caracterizar a gestão do cuidado de enfermagem ao adolescente que vive com HIV/AIDS por transmissão vertical, frente ao processo de transição do atendimento em Serviços de Referência no Tratamento de HIV/AIDS (infantil e adulto) em um estado do Sul do Brasil, propondo estratégias para a transição deste atendimento, a partir da análise das ações realizadas por enfermeiros e percepções dos demais profissionais de saúde.
MÉTODO
Estudo, de natureza qualitativa, do tipo participante, de caráter exploratório e descritivo, realizado em dois Serviços de Referência Estadual (adulto e infantil), nos serviços de ambulatório e hospital-dia. A coleta de dados foi realizada no período de março a junho de 2012, por meio da observação participante, seguida de entrevista individual semiestruturada, utilizando-se do recurso de gravação digital de voz para o registro das falas.
Participaram do estudo enfermeiros e profissionais da equipe multidisciplinar envolvidos diretamente no cuidado/acompanhamento dos adolescentes vivendo com HIV/AIDS por transmissão vertical nos Serviços de Referência infantil e adulto, totalizando dez participantes, sendo cinco enfermeiros, destes dois gerentes de enfermagem, identificados pela letra "E", seguida do número ordinal respectivo à ordem da entrevista (E1, E2...) e, cinco outros profissionais de saúde, sendo uma psicóloga, um assistente social, dois médicos infectologistas e um técnico de enfermagem, identificados pela letra "P", seguida do número ordinal respectivo à ordem da entrevista (P1, P2...) garantindo-se, desta maneira, o anonimato dos participantes.
As entrevistas foram concedidas pelos participantes após explicação do objetivo da pesquisa e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Buscou-se entender por meio das entrevistas como o enfermeiro compreende e desenvolve a gestão do cuidado ao adolescente que vive com HIV/AIDS por transmissão vertical, e qual a percepção da equipe multidisciplinar em relação às ações desenvolvidas/vivenciadas pelo enfermeiro no processo de transição do adolescente a fim de propor estratégias para a transição deste atendimento.
Os dados foram analisados e interpretados utilizando-se o método de análise de conteúdo proposto por Bardin7. Assim, o material coletado foi codificado, categorizado e interpretado, originando as categorias e subcategorias. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Hospital Infantil Joana de Gusmão, sob o nº 004/2012, sendo que os aspectos éticos foram respeitados em todas as etapas de desenvolvimento da pesquisa, como previsto na Resolução 196/96, atualizada pela resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde.
RESULTADOS
Da análise dos dados emergiram três categorias com suas respectivas subcategorias, as quais são apresentadas na figura 1 a seguir:
A categoria 1. "Revelando os desafios para gestão do cuidado ao adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical" apresenta duas subcategorias: 1.1. "Apresentando as particularidades do cuidado ao adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical" que relata as especificidades de "ser" adolescente. Esta fase é considerada uma fase de dúvidas, questionamentos, conflitos, insegurança, descobertas e mudanças, psicológicas e corporais, que interferem diretamente na continuidade do tratamento, sendo esta caracterizada pela tomada de decisão do adolescente. Assim, percebe-se a preocupação dos profissionais em relação à adesão ao tratamento e a sexualidade, considerando que além de ter que conviver com as questões próprias da adolescência, esse adolescente precisa compreender sua condição de saúde, pois possui uma doença crônica estigmatizada, permeada por preconceitos e que exige atitudes de auto cuidado, como elucidam as falas a seguir:
Têm adolescentes que fazem o tratamento, que sempre fizeram bem o tratamento, de repente, chegam nessa fase resolvem não tomar mais [os medicamentos] [...] (E1).
[...] porque é uma fase da vida difícil, são coisas novas, tem alguns que ficam revoltados [...] tem toda a questão da sexualidade, do corpo que vai mudando [...] (E4).
Frente a tais particularidades a formação de vínculo com o adolescente foi citado como um processo delicado e por vezes tardio, fato relacionado muitas vezes ao histórico de vida do adolescente permeado por perdas afetivas relacionadas à doença e condição socioeconômica. Neste contexto, o vínculo é considerado essencial para gestão do cuidado, envolvendo confiança, intimidade, empatia e afetividade. Segundo os profissionais, os adolescentes precisam de um espaço particular para falar sobre coisas que não conseguem compartilhar, devido o sigilo que a doença demanda, necessitando de uma abordagem diferenciada, considerando sua singularidade, com foco no estreitamento do vínculo e desenvolvimento de laços afetivos, constatada na fala:
[...] tem paciente que a gente não consegue criar vínculo, e isso frustra às vezes [...] não sei se a abordagem não é adequada, o que dá certo para um não dá certo para outro, o que é ideal para um não é ideal para outro, porque nada é uma receita de bolo (E2).
A realidade social que esse adolescente vivencia, resultado de uma doença estigmatizada, relacionada ao empobrecimento, a marginalidade e a vulnerabilidade social é apontada como uma das principais dificuldades para a gestão do cuidado. Segundo os relatos, o adolescente com HIV/AIDS, em geral, é órfão, convive com uma desestruturação familiar e apresenta dificuldades para referenciar um cuidador. Questões que influenciam na adesão e continuidade no tratamento, como demonstra o depoimento:
[...] já tem toda uma família às vezes desestruturada. Então, a própria adesão ao tratamento também fica complicada, por isso eles estão completamente desestruturados nesse social [...] não adianta, às vezes, o médico vir aqui e passar a prescrição, tem toda uma realidade que transcende isso tudo e às vezes a gente tem um limite até aonde pode intervir e atuar, e é difícil encarar que tu chegou no teu limite [...] (P1).
Outra questão relevante é a revelação diagnóstica. De acordo com os profissionais conhecer o diagnóstico é um direito do adolescente, no entanto, a revelação do diagnóstico é um desafio, considerando a resistência que muitos pais apresentam, refletindo a culpa pela transmissão do vírus ao filho. Os profissionais buscam encorajar a família a revelar o diagnóstico e defendem ser necessária uma relação de transparência entre os membros da família, para que o adolescente tenha conhecimento da sua doença e, dessa forma, possa participar, ativamente, no seu tratamento, ilustrado pelas falas a seguir:
[...] o que a gente se preocupa mais é sobre o direito dele de saber sobre a doença que ele tem, o problema de saúde que tem, saber o nome. Porque isso não é uma coisa legal, eles tomam remédio e não sabem direito o que é! (P3).
[...] então agente faz um trabalho com as famílias para que eles consigam falar isso [o diagnóstico] e, também, depois no próprio momento da revelação, muitas famílias pedem que a gente participe junto [...] mas, infelizmente, muitas famílias estão deixando este momento se prolongar muito [...] (P3).
A subcategoria 1.2. "Enfrentando conflitos interpessoais dentro da equipe de saúde" revela a presença de conflitos no âmbito da equipe de saúde, os quais refletem na gestão do cuidado ao adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical. Os profissionais discutem a centralização do atendimento no profissional médico, o qual objetivando preservar o adolescente e manter o sigilo em relação ao diagnóstico evita o atendimento multiprofissional ou encaminhamento. A situação revela que as relações entre os membros da equipe multiprofissional precisam ser trabalhadas, no sentido de favorecer uma maior interação, discussão e busca por alternativas para o serviço, conforme depoimento a seguir:
A gente vem mudando essa questão do adolescente [atendimento], até porque é uma coisa urgente [...] mas é bem difícil mexer na questão da AIDS dentro do ambulatório. É uma coisa muito velada, fechada, os médicos fecham bastante isso. Quando os médicos abrem, a gente consegue fazer, e quem sai ganhando é o paciente (E3).
Os sentimentos revelados pelo enfermeiro em relação à profissão também aparecem como obstáculo na relação com os demais profissionais da equipe de saúde e na sua atuação como gestor do cuidado ao adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical. A sensação de despreparo em relação à temática do HIV, assim como de inferioridade e desvalorização profissional, desencadeia sentimentos de frustração e descontentamento com o trabalho interferindo na produção de novos modelos de cuidado a esse público específico. Fato este que aparece na fala:
Eu me arrependo de ter feito enfermagem, deveria ter feito outra coisa. A gente é muito desvalorizado, tem que botar a mão na massa, se não, não é boa (E1).
A categoria 2. "Atuando frente à família e adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical" apresentou duas subcategorias: 2.1. "Desenvolvendo ações frente à família e adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical" revela que no serviço de referência infantil o enfermeiro atende os adolescentes com HIV/AIDS por transmissão vertical, quando solicitado pelo médico ou quando percebe a necessidade diante da avaliação dos prontuários e exames, no entanto, não se observou um planejamento do processo de trabalho.
As consultas de enfermagem no serviço infantil, em geral, acontecem acompanhadas pelo psicólogo e assistente social. São realizadas ainda, busca ativa dos pacientes faltosos e abordagem das famílias quanto à revelação do diagnóstico ao adolescente. A atuação do enfermeiro no serviço infantil é favorecida pela constituição de uma equipe multiprofissional como suporte, apesar da necessidade de trabalhar questões de relacionamento interpessoal, como citado anteriormente, a equipe busca comtemplar às necessidades do adolescente e família em suas múltiplas dimensões. Constatado na fala:
[...] muitos médicos pedem para que a assistente social converse, a psicóloga e a enfermeira também [...] e a gente faz [consulta] em conjunto porque, às vezes, o mesmo paciente tem problema social, problema psicológico e problema de adesão [...] (E1).
No serviço de referência adulto, diferentemente do serviço infantil, não existe uma equipe multiprofissional exclusiva no ambulatório e as consultas de enfermagem, pré ou pós-consulta médica, encontram-se em processo de implementação. Ainda se comparado ao serviço infantil, este é um serviço novo, com pouca estruturação. Os profissionais reforçam que dentre as atribuições do enfermeiro as consultas de enfermagem tem grande relevância para a gestão do cuidado ao adolescente com HIV/AIDS, pois envolve orientações sobre adesão ao tratamento medicamentoso e sexualidade, buscando para isso aproximação do adolescente e responsabilizando-o pelo tratamento, conforme depoimento:
É importante [o atendimento do enfermeiro], eu considero importante. É óbvio, não tenho dúvida com relação a isso. A maior parte dos adolescentes dá para tocar sozinho, só que tem muitos que necessitam, de repente, não de uma pré, mas de uma pós-consulta, no sentido das tomadas de medicamentos, de trabalhar a adesão, de esclarecer as questões de sexualidade e de uso de preservativos (P2).
Tanto no serviço infantil como no adulto a equipe de saúde espera que o enfermeiro seja um articulador do serviço e da equipe de saúde. Existe uma expectativa em relação ao trabalho do enfermeiro como gestor do cuidado e das práticas de saúde nestes cenários. Segue o depoimento:
[...] vejo que tem um potencial muito grande o trabalho da enfermagem e disso ir derivando o trabalho dos outros profissionais e até subsidiaria o trabalho do próprio médico (P3).
A subcategoria 2.2. "Percebendo as lacunas na atuação do enfermeiro frente à família e adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical" revela os espaços de atuação a serem ocupados pelo enfermeiro durante o processo de transição e acompanhamento do adolescente nos serviços de referência. Percebe-se em especial a dificuldade na formação de vínculo e a pouca experiência do enfermeiro com o adolescente que vive com HIV/AIDS. Por vezes, o enfermeiro parece desconhecer sua importância no processo de transição desse adolescente resultando na baixa visibilidade das ações que desenvolve, conforme citado:
[...] eu não saberia te dizer quais ações específicas ele [enfermeiro] desenvolve [...] Porque na verdade ele é mais um profissional que está ali a espera do paciente. O adolescente, ele não faz distinção, com exceção do médico que ele conhece. Então ele não faz essa distinção, essa é enfermeira, essa é técnica de enfermagem [...] (P5).
Ambos os serviços, infantil e adulto, foram planejados e implementados por profissionais médicos. O enfermeiro atribui seu pouco envolvimento no processo de transição do adolescente ao fato de não ter participado do processo de planejamento e implementação do serviço, assim como à grande demanda do serviço e suas demais atribuições, considerando o número reduzido de profissionais atuando nos serviços de referência. Seguem os depoimentos:
Nós tínhamos um ambulatório que era geral envolvendo crianças de várias especialidades. A partir do momento que essas crianças [com HIV] cresceram e tornaram-se adolescentes nós [médicos] passamos a fazer um dia específico de ambulatório para adolescentes [...] (P5).
Eu não sei se é pela quantidade de serviço que tem ou se é pela ingerência do hospital pelo serviço que é oferecido [...] se a gente tivesse mais enfermeiros a gente conseguiria dividir as tarefas e cada um fazer a sua parte [...] mas essa coisa toda misturada dentro da nossa cabeça é sofrido [...] (E3).
Da categoria 3. "Desvelando estratégias de cuidado ao adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical frente ao processo de transição entre os serviços de referência infantil e, adulto" emergiram duas subcategorias: 3.1. "Descrevendo o processo de transição do atendimento entre os serviços de referência infantil e, adulto" revela que a transição do adolescente que vive com HIV/AIDS entre os serviços de referência teve início a partir da necessidade de dar continuidade ao acompanhamento no tratamento do adolescente após atingir a idade limite para ser atendido no serviço infantil, sendo esta de 15 anos. Observa-se que existe uma parceria entre os serviços, que embora seja constituída, especificamente, entre os médicos, garante a continuidade no acompanhamento do adolescente, conforme depoimentos:
[...] imagina você começar a vida sexual passando um vírus resistente para o companheiro. Então, tudo isso a gente pensou no sentido de abrir o ambulatório para acolher essas crianças. Na verdade eles vêm para gente como adulto jovem. Por que o serviço infantil estava ficando com adolescente de 17, 18 anos por não ter para onde transferir. Então eu comecei esse ambulatório com esse objetivo, de dar continuidade no acompanhamento [...] (P3).
Eles vêm com um encaminhamento para o médico. Para o enfermeiro, eles não são encaminhados. Chega aqui um paciente novo para nós, sem termos [equipe] conhecimento prévio do histórico (E5).
No serviço de referência adulto, a primeira consulta médica é agendada via telefone pela equipe do serviço infantil, onde é encaminhado um resumo do histórico do paciente ao serviço referenciado. A transferência entre os serviços de saúde infantil e, adulto é trabalhada com o adolescente e sua família durante as consultas com a equipe multiprofissional no serviço infantil um pouco antes da alta.
Destaca-se no processo de transição a preocupação do serviço infantil em revelar o diagnóstico de HIV/AIDS ao adolescente antes da transferência para o serviço adulto, considerando que no serviço adulto espera-se que o paciente já tenha conhecimento de sua doença, conforme elucidado nas falas:
Pela experiência que a gente tem, quanto mais tarde a revelação do diagnóstico, mais eles sofrem [...] Enquanto a criança não sabe o diagnóstico a nossa função é a de falar e preparar a família [...] (P4).
Cabe salientar que antes de existir o processo de transferência do adolescente entre os serviços de referência existiam muitos abandonos de tratamento, hoje, existem apenas pacientes faltosos. No entanto, considerando o acompanhamento dos adolescentes pela equipe do serviço infantil, desde o nascimento, alguns aspectos contribuem para sustentar que a transição entre os serviços não se constitui em processo fácil, pelo contrário, apresenta-se bastante doloroso tanto para a equipe de saúde quanto para o adolescente.
O "vínculo" existente entre o adolescente e alguns profissionais é bastante mencionando no serviço infantil, sendo este, elemento que dificulta a mudança de serviço e o rompimento de laços afetivos para alguns adolescentes. A transferência resulta na perda de referência com o serviço, pois o adolescente é conduzido a um serviço com pessoas desconhecidas, não havendo nenhum tipo de interação prévia com a nova equipe, conforme citado por um dos participantes:
Eu acho que para eles é um pouco difícil essa mudança de foco de referencial. Eu acho que lá dentro do serviço [infantil] eles tem uma pessoa de referência, e quando chegam aqui [serviço adulto] eles são tratados como mais um no meio da multidão (E3).
Ressalta-se assim, a falta de articulação entre os profissionais dos serviços de referência, considerando que a interação entre os serviços se restringe a equipe médica. Assim, como a falta de preparo e abordagem adequada no serviço de referência adulto para acolher estes adolescentes.
Na subcategoria 3.2. "Propondo estratégias de transição e acompanhamento do adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical nos serviços de referencia" foi observado que a questão central das ações propostas para a melhoria do processo de transferência do adolescente remete ao planejamento e gestão do serviço e do cuidado de enfermagem. Esse aspecto identificado é considerado o eixo principal para possíveis mudanças. A participação do enfermeiro no planejamento do serviço de referência é proposta por diferentes profissionais. Segue o depoimento de um deles:
Então eu acho que o enfermeiro deve ser aquela pessoa inteirada de tudo que se passa em uma unidade, porque ele é o gerente. Como em uma casa, a mãe, a dona de casa, deve saber o que se passa, da mesma forma o enfermeiro na unidade que ele gerencia (P4).
Contudo, os entrevistados apontam que o enfermeiro deve conhecer o serviço, manter-se atualizado, ter disposição e interesse para trabalhar com esse público, além de ser desprendido dos estigmas, preconceitos e julgamentos em relação ao HIV/AIDS:
Existe ainda muito preconceito, infelizmente, ainda existe. Então, você convida uma enfermeira para trabalhar no hospital dia, ela já fica com o pé atrás, já não gosta da ideia, porque já tem aquela marca (E5).
Destaca-se a proposta de uma comunicação entre os enfermeiros dos serviços infantil e, adulto, a fim de trocar informações a cerca do histórico do adolescente e conhecê-lo antes da transferência, contribuindo para uma transição mais humanizada, na qual o adolescente não seja mais um estranho ao chegar ao serviço adulto, como demonstrado a seguir:
Eu acho que a gente teria que ter uma continuidade, um contato antes de essas pessoas saírem do infantil e vir para a gente. Para eles conhecerem o grupo, a equipe que vai atender. Desmamar dessa equipe e começar a se inserir na outra (E2).
Ainda, quanto a atuação do enfermeiro, é proposto que o adolescente seja abordado em pré ou pós-consulta de enfermagem, no intuito de dar atenção a problemática da adesão ao tratamento, responsabilização do adolescente pelo seu processo de saúde e doença e questões que envolvam a sexualidade e, aumentem a possibilidade de criação de vínculo, conforme citado:
Eu acho que o adolescente tem que ter um espaço que não seja, exclusivamente, médico-paciente, mas de amigo, de falar coisas que ele não fala com ninguém. De falar sobre sexo, sobre camisinha, que ele não gosta de tomar remédio. Eu acho que nesse sentido me fez perceber a importância do enfermeiro (E3).
Quanto à equipe multiprofissional foi percebida a relevância e importância desta para o acompanhamento e continuidade da atenção à saúde do adolescente. A mesma demonstrou capacidade de contemplar o processo de saúde e doença do adolescente e compreender a importância do trabalho em equipe para uma abordagem integral, embora não trabalhem ainda de maneira interdisciplinar como demostra a fala de um dos profissionais:
Então esse trabalho em equipe pra mim significa cada profissional poder contribuir com uma parte, depois a gente troca sobre o caso. Então você não vê só em partes. Para mim, a forma, hoje, melhor de trabalhar, seria trabalhar em equipe interdisciplinar [...] fazer um trabalho integral, olhando o ser humano como um ser integral (P1).
O acompanhamento domiciliar ao adolescente pelo enfermeiro do serviço infantil é citado como alternativa de suporte durante o processo de adaptação ao serviço adulto, no sentido de evitar a ruptura brusca com o serviço. Seria uma maneira de facilitar a transição do adolescente, tornando-a menos dolorosa, além de permitir seu acompanhamento após a transferência, evitando o abandono ao tratamento, como ilustra a fala:
Ele [adolescente] poderia ser transferido, mas a enfermeira poderia o acompanhar a nível domiciliar, mesmo que ele não estivesse ainda em nosso serviço [adulto] [...] (E5).
Algumas estratégias como planejar o atendimento, possuir conhecimento e iniciativa dentro da equipe e serviço, abandonar os preconceitos, favorecer a comunicação entre os serviços de referência infantil e, adulto, realizar consultas de enfermagem e acompanhamento domiciliar e fazer parcerias com a equipe multiprofissional fazem parte da gestão do cuidado ao adolescente que vive com HIV/AIDS por transmissão vertical e podem favorecer o acompanhamento e transição entre os serviços de referência infantil e adulto, proporcionando uma experiência mais tranquila para o adolescente e sua família.
DISCUSSÃO
Diante do aumento da expectativa de vida, cronicidade da AIDS e necessidade de um acompanhamento contínuo a transição do adolescente com HIV/AIDS por transmissão vertical, do serviço de saúde infantil ao adulto se torna inevitável, trazendo consigo preocupação aos profissionais que acompanham esse público e um desafio ao enfermeiro para gestão do cuidado ao "ser" adolescente que vive com HIV/AIDS.
O adolescente que vive com HIV/AIDS assume uma postura comum a todos os adolescentes na maneira de agir, vivenciando as dúvidas, questionamentos, conflitos, insegurança, descobertas e mudanças que permeiam a fase da adolescência, contudo viver/conviver com uma doença crônica estigmatizada, constitui uma realidade diária, que exige sigilo e demandas de cuidado a esse adolescente e sua família8.
A realidade social com a qual a maior parte dos adolescentes com HIV/AIDS convivem, como orfandade, desestruturação familiar e consequente dificuldade para referenciar um cuidador e formar vínculo é revelada pela literatura, que atrelada a situação socioeconômica desfavorável encaminha o adolescente às perspectivas de futuro limitadas, que têm impacto direto e indireto para falhas e baixo índice de adesão no tratamento9. Fazer o tratamento traz a lembrança estigmatizada da doença, além dos aspectos negativos dos efeitos colaterais e regimes de múltiplas medicações4.
Nesse sentido, a fase de transição do serviço de saúde infantil para o adulto tem sido caracterizada por uma fase de abandono do tratamento, favorecido pelo desconhecimento ou conhecimento tardio em relação ao diagnóstico e, consequentemente, sobre o HIV/AIDS, compondo o processo de transição cercado por adoção de práticas e comportamentos protetores diminuídos e elementos de vulnerabilidade9 corroborando com os resultados deste estudo.
Diferentes fatores durante o processo de transição interferem na aceitação do adolescente desse processo de mudança, tais como a capacidade do adolescente se adaptar, a resistência em interromper o tratamento com a equipe que o acompanha e iniciar relacionamento em outro serviço de saúde com uma nova equipe de profissionais, ainda a revelação do diagnóstico precoce, além do engajamento familiar e o planejamento da transição pelos serviços de saúde infantil e, adulto, de modo que o conjunto, desses fatores, proporcionem condições favoráveis ou não ao adolescente que vivencia a transição de cuidado de saúde5.
A revelação do diagnóstico ao adolescente mostra-se um processo delicado e cercado por medos. Segundo estudos, a relação de medo pela revelação do diagnóstico está relacionada à possibilidade de mudanças negativas na família e a insegurança dos cuidadores a possibilidade de quebra do sigilo que envolve o HIV. Sendo ainda o sentimento de culpa pela transmissão do vírus ao filho uma das questões que motiva a família a postergar a revelação da condição ao adolescente10.
Nesse contexto, como algo natural entre jovens e adolescentes, a sexualidade reclama, sendo necessária uma abordagem no sentido de proteção e prevenção onde os mesmos possam participar como sujeitos conscientes da doença que possuem. As necessidades fundamentais, destes sujeitos, devem ser consideradas como parte da busca pela saúde integral e qualidade de vida10.
Assim, observa-se a necessidade de um espaço desenvolvido para receber essa clientela, com uma abordagem diferenciada, onde o adolescente tenha a possibilidade de discutir suas necessidades e trocar experiências, participando como sujeito e protagonista consciente do seu processo de saúde/doença, com foco na atenção a saúde integral e qualidade de vida e não no tratamento da infecção em si, centrado no modelo biomédico10,11.
A presença de conflitos dentro da equipe de saúde e sentimentos compartilhados pelos enfermeiros em relação à profissão aparecem como obstáculos para a gestão do cuidado a este paciente, refletindo no acompanhamento do adolescente e na própria equipe multiprofissional, o que revela necessário uma comunicação mais efetiva, uma divisão adequada de funções dentro da equipe de saúde e a compreensão do papel de cada um no cuidado ao adolescente12. Nesse sentido, é preciso que o profissional enfermeiro tenha clareza de sua identidade e percebendo a necessidade de transformação na sua atuação profissional, colocando sua competência a serviço do adolescente e de sua família e estando preparado para recebê-lo.
É percebido o baixo vínculo estabelecido entre o enfermeiro e adolescente e sua família, o que pode estar relacionado com a participação incipiente do enfermeiro nas discussões para a construção do processo de transição do adolescente nos serviços, caracterizando o enfrentamento da desvalorização e invisibilidade da atuação da enfermagem frente ao forte modelo biomédico ainda presente em alguns serviços, que é visível em especial no cenário hospitalar, devido a desorganização, confusão de papéis, precarização do ensino e, a insatisfação com postura de profissionais veteranos em relação a estas questões, podendo gerar baixa autoestima profissional e crônica crise de identidade, impedindo a expansão desses profissionais mantendo suas representações negativas12.
No cenário das instituições de referência, a consulta de enfermagem surge como uma necessidade apontada pelos profissionais de saúde e entendida pelo próprio enfermeiro como importante para o cuidado e acompanhamento do adolescente. A consulta de enfermagem é uma das atividades do enfermeiro com respaldo legal do Conselho Federal de Enfermagem desde 1986, podendo ser complementada por uma equipe interdisciplinar13. Possibilita ao profissional atuar de forma direta e indireta com o paciente e família de modo a desenvolver sua autonomia profissional, trocar saberes e estreitar laços, além de criar um espaço para que o adolescente se reconheça, sem juízos ou cobranças, onde possa narrar sua história e criar novas formas de pensar14.
Estudos internacionais discutem que a transição do adolescente para o serviço de saúde adulto varia de acordo com cada estado e de serviço de saúde, mas que a recomendação geral para que esse processo aconteça é em torno da idade de 15 a 22 anos6. Assim, surge como possibilidade de mudança e transformação na transição do adolescente, a realização de uma transição planejada, suave e sem interrupções, a fim de garantir uma evolução bem sucedida. Sendo a articulação entre as equipes dos serviços adulto e, infantil, sobretudo dos enfermeiros, importante para a construção deste processo. Ainda, é proposta, a participação do enfermeiro no processo de transição do adolescente entre os serviços, sendo considerada a pessoa mais capacitada para planejar a transição e preparar a equipe para receber o adolescente no serviço5.
É apontada ainda, a relevância de um acompanhamento domiciliar ao adolescente durante o período de adaptação ao serviço adulto. Estima-se que o contato mantido durante esse período favoreça a adaptação do adolescente a nova equipe, ponderando que o acompanhamento conjunto dos serviços ofereça um ambiente de apoio aos adolescentes que ainda não estão preparados para a transição5. Além disso, torna-se importante que o enfermeiro conheça as pessoas que compõem o círculo de relações do adolescente, potenciais cuidadores e integrantes da rede de suporte informal. Essas pessoas devem ser preparadas para a convivência com o membro soropositivo, para o tratamento e o contato frequente com a equipe15.
Em suma, a gerência do cuidado constitui um complemento ao processo de trabalho do enfermeiro, que precisa perceber o cuidado como foco possível de ser gerenciado, incorporando conhecimento e atitudes racionais e sensíveis. É considerada a expressão mais clara da boa prática da enfermagem, na qual há a articulação entre as dimensões gerenciais e assistenciais para entender as necessidades de cuidado aos pacientes, equipe de enfermagem e instituição16.
Frente a esse contexto, torna-se imprescindível destacar a liderança como um instrumento gerencial no processo de trabalho da enfermagem, sendo o alicerce para prática do cuidado consciente17. Cabendo ao enfermeiro o papel de desenvolver atividades que visam aprimorar a prática profissional e melhoria na qualidade de vida de pessoas que vivem com HIV/AIDS, compreendendo que a enfermagem assume a função de intermédio para consolidação do cuidado18.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados desta pesquisa descrevem a atuação do enfermeiro frente à família e adolescente que vive com HIV/AIDS por transmissão vertical considerando o processo de transição entre os serviços de saúde infantil e, adulto, assim como apresentam os desafios e estratégias para gestão do cuidado de enfermagem a este publico específico. Sendo o cuidado aos adolescentes em transição para o atendimento em serviços de saúde adulto um processo em construção e que ainda suscita discussões, não só com relação aos adolescentes que vivem com HIV/AIDS por transmissão vertical, mas também a outras condições crônicas que, devido aos avanços tecnológicos e da biomedicina, se prolongam da infância à idade adulta.
Tais resultados revelam a importância de um maior envolvimento do enfermeiro no processo de acompanhamento e transição, com participação ativa no planejamento, gestão e execução das ações, dentro das suas competências. Assim como, demonstram a importância da participação da equipe de saúde, com atuação interdisciplinar, de forma que o cuidado ao adolescente que vive com HIV/AIDS seja fundamentado em um cuidado integral.
O estudo limita-se a um cenário específico e às perspectivas dos profissionais de saúde evidenciando a importância de novas pesquisas que busquem desvelar a atuação do enfermeiro em outros cenários de cuidado ao adolescente em condições crônicas estigmatizadas e que considerem a perspectiva dos usuários destes serviços.
REFERÊNCIAS