Volume 19, Número 1, Jan/Mar - 2015
PESQUISA
Violência contra mulheres rurais: gênero e ações de
saúde
Marta Cocco da Costa
1
Marta Julia Marques Lopes
2
Joannie dos Santos Fachinelli Soares
2
1 Universidade Federal de Santa Maria. Palmeira das Missões - RS, Brasil
2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre - RS, Brasil
Recebido em 04/10/2013
Aprovado em 08/06/2014
Autor correspondente:
Joannie dos Santos Fachinelli Soares
E-mail: joannie_fachi@yahoo.com.br
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar, a partir da categoria analítica de gênero, as dimensões que a violência
contra mulheres rurais assume nas concepções de gestores, profissionais e
trabalhadores da saúde de municípios da metade sul do Rio Grande do Sul.
MÉTODOS:
Estudo qualitativo, realizado com 56 participantes, constituídos de gestores
municipais, profissionais e trabalhadores da saúde que atuam em áreas rurais. A
geração de dados ocorreu por entrevista semiestruturada. Foi utilizada análise de
conteúdo temática.
RESULTADOS:
Observou-se o poder e a autoridade do homem como provedor e chefe da casa. A
mulher rural é vista sob a ótica da relação de serviço, subordinação e obediência.
A presença dos preconceitos e das desigualdades concretas de gênero estimula as
práticas discriminatórias, justifica a violência doméstica e limita os direitos
das mulheres.
CONCLUSÃO:
Conclui-se que para a maioria dos entrevistados a violência contra as mulheres
rurais é naturalizada, tornando-se uma problemática de difícil inserção no campo
da saúde.
Palavras-chave: Violência Contra a Mulher; Gênero e Saúde; Saúde da População Rural; Atenção Primária a Saúde.
INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher constitui um fenômeno que tem interfaces com a Saúde Coletiva, pois desponta como uma contradição na vida das mulheres, gerando tensão e resultando em alterações de saúde e adoecimento1.
Situando o contexto rural, os poucos estudos sobre o tema apontam para o desconhecimento da situação das mulheres em aspectos gerais de saúde e quanto às especificidades e peculiaridades de vida, seja no contexto familiar, social e laboral. Em decorrência, acredita-se que a violência contra as mulheres, nesse contexto, não se constitui em elementos impulsionadores e objeto de ação do poder público e de intervenção institucional em saúde configurada em atenção específica e práticas de cuidado efetivas.
Os elementos constitutivos da problemática da violência contra as mulheres rurais compreendem aspectos sociais, culturais, econômicos, além de especificidades próprias desse contexto. A par disso, entende-se que, as representações que os sujeitos elaboram como interpretação da violência, refletem a construção social hegemônica e permanências de culturas masculinas e femininas e da violência como reflexo das assimetrias de poder nas relações de gênero predominantes.
Nessa abordagem, a violência contra as mulheres, em cenários urbanos ou rurais, precisa ser entendida como violência de gênero, a qual designa a violência ocorrida em um contexto de desigualdades de gênero sustentadas por uma matriz hegemônica, em que as concepções dominantes de feminilidade e masculinidade configuram-se, a partir de disputas simbólicas e materiais, processados nos diversos espaços sociais - a família, a escola, a igreja, a sociedade, entre outros2. Essas desigualdades se formalizam e institucionalizam nas diferentes organizações privadas e públicas e, também, nos diferentes grupos que constituem a sociedade, estando presentes no cotidiano de vida e trabalho das mulheres rurais.
Assim, este estudo reconhece que é a partir da adoção de perspectivas teórico-críticas e da compreensão das relações de gênero que se possibilita o entendimento de que as atitudes, os comportamentos e, os papéis sociais são resultados de múltiplas influências. Nessa direção, tem-se como objetivo analisar, a partir da categoria analítica de gênero, as dimensões que a violência contra mulheres rurais assume nas concepções de gestores e profissionais da saúde de municípios da metade sul do Rio Grande do Sul.
MÉTODO
Optou-se pela investigação de caráter exploratório-descritivo com abordagem qualitativa. A abordagem qualitativa revela a finalidade do problema em estudo, ou seja, descrever, compreender e explicar a questão de investigação, aprofundando-se no mundo dos significados, das crenças e dos valores dos sujeitos3.
Elegeu-se como local de estudo, a base geográfica do Programa de Pesquisa Interdisciplinar (PROINTER), que é fruto de um acordo de cooperação interuniversitário franco-brasileiro entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Universidade Paris 7, a Universidade Paris 10, a Universidade Bordeaux 2, e a Universidade Federal do Paraná. A região escolhida para o desenvolvimento desse programa foi a "Metade Sul" do estado do Rio Grande do Sul, que vem sofrendo uma crescente desaceleração econômica, quando comparada a outras regiões do estado, o que torna visíveis as disparidades regionais. Estão incluídos nesse programa oito municípios: Arambaré, Camaquã, Canguçu, Chuvisca, Cristal, Encruzilhada do Sul, Santana da Boa Vista e São Lourenço do Sul.
Foram participantes, deste estudo, gestores, profissionais e trabalhadores dos serviços de saúde que atuavam em áreas rurais, atendendo demandas de mulheres, e que prestavam assistência a mulheres em situação de violência, por um período maior do que 6 meses. Em números, totalizam-se 56 participantes: 13 gestores, 19 agentes comunitários de saúde, 14 enfermeiras, nove médicos (as) e uma psicóloga.
Para a geração das informações buscou-se elementos discursivos por meio de entrevista semiestruturada. Construiu-se um guia para as entrevistas, organizado em dois eixos: o primeiro dedicado à caracterização sociodemográfica dos (as) entrevistados (as); e o segundo com questões abertas que contemplaram o objeto de estudo. As entrevistas foram, previamente, agendadas com os profissionais, realizadas nas unidades de saúde em que os mesmos estavam inseridos, no período de julho a novembro de 2010.
Para o tratamento dos dados, utilizou-se o método de Análise de Conteúdo, por meio da técnica de análise temática, considerando a pré-análise, a exploração do material, e o tratamento dos resultados obtidos e interpretação3. São duas as categorias temáticas apresentadas, neste artigo, assim denominadas: "Poder e autoridade, natureza e cultura" e "Espaço produtivo e reprodutivo... Lugar de homem e de mulher".
Este estudo foi realizado em consonância com as normas da Resolução 196/96, para pesquisas com seres humanos. Obteve-se a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Saúde Pública da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (CPS-ESP), sob protocolo CPS-ESP 496/09. Os participantes foram informados sobre todos os aspectos da pesquisa e receberam e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A fim de manter o anonimato dos participantes, as falas são identificadas por codificações na forma de siglas, conforme a profissão/ocupação dos participantes, da seguinte maneira: GES para os gestores, ACS para os agentes comunitários de saúde, ENF para as enfermeiras e MED para os médicos, seguidos de um algarismo numérico para diferenciá-los entre si.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Violência, poder e autoridade - natureza e cultura...
As dimensões expressas pelos participantes no que se refere às relações violentas entre homens e mulheres rurais revelam, predominante, o poder e a autoridade do homem como provedor e chefe da casa. A mulher rural é vista sob a ótica da relação de serviço, subordinação e obediência. Nas falas a seguir, ela é considerada responsável pela reprodução biológica, cuidadora do lar e dos afazeres domésticos, sem direito de expressar e relatar seus sentimentos e, com pouca ou nenhuma legitimidade para "desconformidades".
[...] há uma cultura em vários lugares assim que a gente vê de usar os serviços da mulher em descanso do homem. Até tem a piadinha aquela, feminino de homem deitado na sala lendo o jornal, sabe? "Mulher na cozinha, mulher na cozinha em frente a pia e o fogão" (MED15).
A mulher que trabalha no campo ela é muito mais judiada, ela tem um aspecto muito mais desgastado do que a mulher da cidade. A mulher rural, ela se expõe, e muitas vezes até obrigada pelo próprio marido. Uma vez um disse assim pra mim: 'me tira os dentes dela tudo, me bota uma chapa nela que assim ela não precisa vir mais na cidade e pode me ajudar todos os dias lá fora'. 'Ela tem que fazer a comida, ela tem que cuidar dos meus dois guri que eu tenho, e ainda ela vai pra lavoura comigo fazer o trabalho' (GES3).
A partir das falas, observa-se que se impõe à mulher rural uma relação de trabalhadora e de mãe a serviço da família. Sem tempo e lugar próprio, ela está em disponibilidade permanente4. Isso mostra que a organização da vida em família, principalmente, a organização do tempo e do espaço, permanece entre as obrigações femininas.
Nesse sentido, os atributos e os papéis atribuídos ao gênero instituem um valor diferenciado e hierarquizado às atitudes de homens e mulheres, legitimando condutas de dominação. No que tange às mulheres, os papéis tradicionais de mãe e esposa são valorizados na definição de "ser mulher", como elemento positivo ou negativo de sua condição de mãe - pelo acúmulo de responsabilidades na criação dos filhos; de esposa - pela falta de autonomia decorrente do vínculo com o marido5.
Os relatos acima transcritos revelam que a mulher rural é, muitas vezes, destituída de autonomia e do direito de decidir, inclusive sobre o seu próprio corpo. A violência em diferentes dimensões nega a autonomia à parte da relação submetida, nega-lhe a possibilidade de ser autônoma, de constituir-se como capaz de autonomia na relação. A violência apresenta-se como a ação que trata um ser humano na condição de objeto. As relações de força materializam a violência porque coisificam pessoas, "instrumentalizam" indivíduos e quando aplicadas às relações sociais de sexo, significa dizer que são violentas porque tornam diferentes em desiguais, por meio de relações assimétricas e hierárquicas6.
[...] o homem do interior ele não tem cultura, geralmente são trabalhadores, são pessoas que trabalham em lavoura, eles não têm quase estudo, não tem nada [...] eles é pegar um dinheiro e ir para cidade, daí essas mulheres acabam pegando doenças venéreas, porque para ser macho tem que ir para o cabaré, funcionar com as damas, machão, a mulher ta lá bonita porque a da lavoura tá mal cuidada, então isso é horrível eles podem tudo (GES3).
Com isso, a violência contra as mulheres rurais, na representação dos participantes e sob a ótica das relações homem-mulher, mostra a permanência e a manutenção do poder do homem. Isso revela que a violência contra as mulheres, nesse contexto, pauta-se na permanência das assimetrias de poder, em que a desigualdade e a exclusão para as mulheres são explicadas pelas diferenças físicas, sexuais e biológicas, justificando-se a natureza da sujeição feminina pela sua "funcionalidade" social. Tal constatação é reproduzida cultural e ideologicamente, e na "permanência inconsciente" das práticas profissionais.
Nessa perspectiva, as representações de culturas de masculinidade e feminilidade dominantes quanto à instituição de poder e valor de troca para o trabalho, por exemplo, podem ser avaliadas nas repercussões da utilização desigual dos atributos de uns e de outros, como a utilização da força física enquanto ferramenta e exercício desse poder, sendo que na aceitação e na naturalização desse exercício assenta-se a perpetuação dos atos violentos.
O masculino é ritualizado como o lugar da ação, da decisão, da chefia da rede de relações familiares e da paternidade como sinônimo de provimento material. Em consequência, o masculino é investido, significativamente, com a posição social (naturalizada) de agente de poder da violência, havendo, historicamente, uma relação direta entre as concepções vigentes de masculinidade e o exercício do domínio de pessoas, de guerras e de conquistas7.
Pode-se, também, identificar, a crença na persistência das desigualdades ou a não existência de igualdade entre homens e mulheres quando os participantes dizem "acho que a igualdade dos sexos não existe" (MED15), ou ainda, "não existe essa coisa de direitos iguais" (ACS40). A desigualdade de homens e mulheres está "longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos nas tramas das relações sociais"8:88-83.
[...] todo aquele que violenta, está violentando um ser inferior. Não que as mulheres sejam inferiores, mas na perspectiva do homem, do machista, ele considera a mulher, quando ele é um agressor, um ser inferior. E eu não acredito, acho que a igualdade dos sexos não existe (MED15).
A fala é clara e evidencia essa persistência de disposição a mandar e a obedecer. Assim, entende-se que o processo de construção cultural das desigualdades de gênero, ao longo da história, constitui-se em disposições permanentes a "se submeter", sendo que para as mulheres a sujeição na relação reconhece, na sua pouca força física uma inferioridade "natural"9.
As desigualdades de poder entre os gêneros tornam difícil delimitar as fronteiras entre os comportamentos generificados pela cultura e veiculados pelo sistema exploração/dominação de mulheres e, o momento em que ocorre a ultrapassagem de determinados limites eles se tornam violência. Assim, as desigualdades entre os sexos, produtoras de iniquidades e vulnerabilizações, se constituem em violências em si10.
Em estudo, que buscou traçar o perfil de mulheres e homens envolvidos em situações de violência conjugal, encontrou que as agressões entre homens e mulheres corroboram os achados deste estudo e, se referem, claramente, a um sentimento e a uma prática de posse do homem sobre a mulher, marcada pelo desejo de mantê-las em servilismo, tuteladas ou como propriedade exclusiva7.
As concepções das relações conjugais mostram que o exercício do poder ocorre de forma diferente e, é desigualmente valorado entre os sexos. Assim, muitas mulheres, especialmente, as que residem em áreas rurais, segundo os participantes deste estudo, ocupam posições subalternas na hierarquia familiar. Essa condição de subalternidade configura e agrava a violência e atinge a capacidade das mulheres se autodeterminarem sexual e, socialmente, tornando-as mais vulneráveis ao abuso físico e emocional.
No que se relaciona ao poder, desmembra-se em duas faces: a da potência e a da impotência. As mulheres, de modo geral, são socializadas para conviverem com a impotência; os homens - sempre vinculados à força - são preparados para o exercício do poder e, convivem mal com a impotência. Acredita-se ser no momento da vivência da impotência que os homens praticam atos violentos, estabelecendo relações desse tipo8.
No cenário em estudo, os entrevistados relataram que as relações violentas entre homens e mulheres acentuam-se pela posição de submissão das mulheres, sendo a imagem da mulher vítima que predomina em suas representações, associando-se ao estereótipo da submissão e da desproteção. Assim, admitem que a construção sociocultural da identidade feminina e a definição de papéis femininos - figura passiva e submissa - têm criado espaços propícios ao exercício da dominação masculina e "permitem" a violência. No dizer dos participantes:
[...] a principal violência é a da imposição do homem sobre a mulher em função de ele ser o detentor do meio de subsistência, é ele que planta, ele que colhe, a terra já tá no nome dele. E a mulher do meio rural é submissa, é o homem que vem na cidade pra fazer o empréstimo, pra pegar o empréstimo pra comprar coisas pra mulher (GES31).
É como eu te disse, "aqui é século passado", as mulheres não têm voz nenhuma [...] se tu observar, andando na rua, tu vê que o marido anda um metro na frente da mulher (ENF9).
Observa-se, nas falas dos participantes, que a submissão da mulher rural está atrelada, principalmente, ao fator de "dependência" do marido, das "obrigações de esposa" e também do desejo de manter a família unida, mesmo que aparentemente.
Nesse sentido, argumenta-se que na dimensão simbólica da violência de gênero são diversos os fatores que podem contribuir para a mulher adotar a posição de submissão e de silêncio sobre a agressão sofrida. Dentre eles, destacam-se: o desejo de ter a família e de mantê-la unida; a prescrição dos papéis familiares com diferentes funções para o homem e para a mulher, no qual ele tem a função de provedor e chefe da família e a mulher a responsabilidade de cuidar do lar e dos filhos e, a "distribuição desigual de poder, cabendo ao homem-pai-marido as decisões quanto às regras a serem seguidas pela família", que devem submeter-se ao poder masculino11. É a produção - (re)produção - de comportamentos narrativos, sendo o masculino a fonte dessa produção.
Nessa perspectiva, em estudo desenvolvido em uma maternidade de São Paulo, os autores buscaram identificar, em entrevistas com os profissionais da saúde, os significados atribuídos à violência e à mulher vítima de violências. Os resultados, mesmo que referentes a uma realidade urbana corroboram os achados deste estudo, pois os profissionais reconhecem como causa e consequência da violência contra as mulheres as desigualdades de gênero, e consideram a submissão um de seus elementos12.
A relação entre homens e mulheres nas dimensões analisadas tem mostrado o caráter de dominação, atribuindo à mulher a "condição" de submissão, retratada em obediência, reprodução, fidelidade, cuidadora do lar e da educação dos filhos. Os papéis de gênero, naturalizados, influenciam formas de nascer, viver e morrer em situação de submissão e ainda têm se configurado em condutas esperadas e "destino" em muitos contextos sociais. Nessa direção, o campo das representações na dimensão da submissão aparece como modelo social para as mulheres em situação de violência, o que reforça a culpabilização e a naturalização desse tipo de violência.
Assim, essas representações reforçam o "papel da mulher" enquanto "ser inferior" e reproduzem a naturalização e a banalização dos atos violentos potencializados para as mulheres rurais. A aceitação da submissão como algo inerente ao feminino dá margem à violência, ao mesmo tempo em que dificulta sua identificação, seu "reconhecimento diagnóstico" no âmbito das práticas institucionais da saúde e seu enfrentamento.
Espaço produtivo e reprodutivo... Lugar de homem e de mulher...
No âmbito familiar, identificou-se nas falas que as mulheres rurais são vistas e tratadas apenas como "provedoras do bem-estar da família", ou "meio de bem-estar dos outros", ou mães e esposas desprovidas de demandas próprias e de autonomia. Nesse espaço, é mais evidente e, materialmente, identificável a presença dos preconceitos e das desigualdades concretas de gênero que, muitas vezes, estimulam as práticas discriminatórias, justificam a violência doméstica e limitam as mulheres na tomada de decisão nas questões relativas ao seu cotidiano e, em particular, ao trabalho "produtivo" que executam na lavoura.
[...] não tem autonomia de sair comprar uma coisa porque o marido nega muito. Oprime muito. Eles saem principalmente para a prática de esporte. Normalmente não vai quase a lugar nenhum. Noventa por cento ou mais das mulheres ficam em casa e enquanto o homem sai pra caçar, pra jogar. E na verdade ela fica quase como uma escrava (ENF42).
A fala atesta a forma de socialização da mulher considerada opostas à do homem, meiga, submissa, dentro de casa, sendo o ambiente doméstico permeado, em muitas situações, pela isenção de leis formais, o que de fato, possibilita a abertura de caminho para a lei do "mais forte", para legitimar o poder do marido sobre a esposa e os filhos. Nessa direção, se estabelece, uma "ética privada" que hierarquiza as relações familiares e submete "os mais fracos", tornando-se justificativa "naturalizante" de agravos no ambiente privado, no caso particular, das violências13.
A identidade feminina se constrói alicerçada no que ela aprendeu, ao longo dos anos, a reconhecer como inerente a sua condição de ser mulher: casar, cuidar da casa, dos filhos e do marido, ser responsável pela harmonia do lar, e, nesse contexto, o casamento acaba sendo um projeto de vida feminino.
O casamento no meio rural é um troço assim meio sagrado, principalmente, 'eu casei e se eu deixar o meu marido todo mundo vai falar de mim que eu sou vagabunda'. Ninguém vai falar do marido, 'ó, o marido deixou dela'. 'Eu saí de casa, deixei o marido e todo mundo'... 'se eu deixar e sair de casa, vão dizer que eu sou vagabunda, então eu vou aguentar aqui porque aqui eu tenho comida, tenho casa, e vou sair e vou pra onde?' (ACS34).
[...] tem muitas ainda que ocorre assim, de ficar casada porque é feio a separação, ainda ocorre na região, daquele sistema antigo, que na cultura pomerana ainda está muito forte casou é até o final da vida juntos, apanhando e sofrendo violência, enfim (GES25).
As falas representam a dimensão que a instituição do casamento assume no cenário rural, que mesmo convivendo com situações de violência é difícil para as mulheres renunciarem ao casamento, pois este lhes assegura um conjunto de papéis, socialmente, esperados e, que as mantêm "valorizadas" na sociedade. A valorização da instituição casamento no rural é compartilhada de tal forma que é aconselhado pela própria família à permanência no casamento, independe da qualidade das relações estabelecidas no espaço privado.
A situação analisada e interpretada por gestores, profissionais e trabalhadores da saúde reforça a representação do casamento indissociável, sendo que essa representação sustenta-se na expressão bíblica "a mulher sábia edifica a casa, mas a tola a destrói", expondo a mulher a críticas e ao julgamento da sociedade pelo rompimento do casamento, sentindo-se fracassada por não ter conseguido manter a 'harmonia do lar'14.
Argumenta-se que o lugar, socialmente, "destinado" às mulheres agricultoras continua sendo a família: é na privacidade do lar que, prioritariamente, elas devem encontrar a realização pessoal. E a maternidade, hoje, supostamente opcional, ainda é o componente central, definidor da identidade feminina. Condicionada, desde a infância, para os seus tradicionais papéis, todo o seu desenvolvimento é norteado por esse condicionamento, mesmo que ela nunca chegue a ser mãe ou que opte por sair do campo e morar na cidade, como é o caso de muitas das filhas das agricultoras15. Mas essa "realização pessoal no lar" condiciona-se a falta de oportunidades e a um "conformismo" com os papéis de gênero em muitas dessas sociedades rurais.
A dominação simbólica necessita que os dominados tenham incorporado as estruturas (disposições) segundo as quais os dominantes percebem, estruturam e hierarquizam as relações, quer dizer, as diferentes posições corporais que reproduzem e são visíveis na maneira de usar o corpo, e no cérebro, sob forma de princípios de percepção dos corpos dos outros. Assim, a dominação masculina é um caso particular, mas, de certa forma, extremo da dominação simbólica, muitas vezes expressa por limitações, obrigações para o corpo, permitindo que se fale em "violência"9.
Essas reflexões permitem afirmar que a violência doméstica é invisibilizada e essa invisibilidade acentua-se, em parte, pela limitação de acesso das mulheres aos serviços e pela "sempre atual" naturalização do espaço da casa como do âmbito privado, de marido e mulher. Em muitos relatos constatou-se que o homem não permite que a mulher exerça atividades fora do lar, mantendo-a, assim, em situação de violência e de dependência.
Algumas falas dos entrevistados, mais raras e, principalmente, as dos agentes comunitários de saúde, apontam para certa transformação em curso da visão do casamento, do lar, principalmente, para as jovens rurais, em que a união entre duas pessoas não é mais considerada a única e tradicional opção. Essas jovens vislumbram outras possibilidades, mesmo que, muitas vezes, de difícil concretização, prosseguir os estudos e procurar trabalho na cidade.
[...] algumas coisas estão mudando, dá para ver que as moças jovens aqui do meio rural, querem terminar o segundo grau ou vão embora para a cidade arrumar um serviço [...] nem que seja um pouco apertado no início, mas não depende de lá fora. Elas dizem que não querem ser que nem as suas mães, querem ter outras oportunidades [...] essas coisas estão mudando, mas são pontuais, mas mais que eu vejo é as moças pois os rapazes ainda continuam bastante trabalhando na roça (ACS20).
Observa-se nesse relato um olhar diferente de moças e rapazes sobre a permanência no espaço rural e o casamento. Estudo que aborda as diferentes representações construídas por jovens rurais em torno da noção de casamento, na região Oeste de Santa Catarina, aponta que, para os rapazes, casar com uma mulher agricultora é garantia de continuidade da produção familiar; para as moças significa dar continuidade a uma vida de sujeição à vontade de outros que não a sua16.
Assim, nesse raciocínio, se o casamento, tradicionalmente, assumia e ainda assume um papel fundamental para muitas mulheres rurais na reprodução social do patrimônio familiar e na organização do processo de trabalho, buscar reproduzi-lo com modelos e padrões típicos de família, passa a ser questionado por algumas moças rurais descontentes com o papel e o lugar que lhes é atribuído nesse processo16.
Essa representação de mudança em alguns aspectos da vida seja no lar ou no trabalho das jovens rurais, com a busca de novas oportunidades, são referidas mais, prontamente, pelos agentes comunitários de saúde, mostrando que esse trabalhador, pela proximidade com as famílias e com as jovens, tende a conhecer melhor os contextos de vida, o que lhe possibilita visualizar e abordar outros elementos do cotidiano, que não os tradicionais.
No entanto, essas mudanças, principalmente para os gestores e profissionais são pontuais, pois as mulheres continuam sendo vista pelo marido como "escravas" e "mão-de-obra". As falas a seguir acentuam essa visão.
[...] eles não olham a mulher como companheira, como mãe dos filhos, eles olham a mulher como escrava. Eu acho que isso é a maior humilhação que as mulheres sentem é isso aí (ACS54).
[...] a grande maioria vê na mulher e nos filhos mão-de-obra, e aí é o grande erro porque eles não estão vendo que estão usando ela como uma máquina e, a máquina tem desgaste [...] no momento que ela tem desgaste, ela vai começar a produzir menos, produzindo menos ele vai ganhar menos, e se ela adoecer, a máquina para, e ela para de produzir aquela quantidade que ela produzia para ele. Agora se ele mantiver a máquina ajeitada, que pra ele é a mulher e o filho, ele vai ter muito mais resultado (GES3).
Essas falas representam a mulher rural, seja no domicílio ou na lavoura como "utilitária", "instrumental", relacionando-a a uma "máquina de produção". Esse caráter associado ao uso da força e das habilidades pode se converter em vulnerabilidades à violência.
Outro elemento evidenciado no estudo é o espaço da produção e da reprodução. Nessa direção, ao analisar a divisão sexual do trabalho na ordem capitalista salienta que a mesma instaurou a separação espaço/tempo entre trabalho produtivo e reprodutivo, fomentou ainda um princípio de separação de trabalho de homens e trabalho de mulheres e, também, uma conotação hierárquica. Esse princípio acaba sendo determinante na configuração das relações sociais entre homens e mulheres. A divisão sexual do trabalho tem sido outro processo de compreensão do processo de constituição das praticas sociais permeadas pelas construções de gênero17.
Assim, essas práticas, mesmo que sejam construções sociais, são tidas como sujeição natural, divididas entre objetos e comportamentos considerados femininos e masculinos. É nessa direção que as falas a seguir representam a divisão sexual do trabalho, atribuindo ao homem a responsabilidade pelo espaço produtivo e à mulher pelo espaço reprodutivo na dimensão concreta da relação de "serviço à família"4. Nesse sentido, a mulher rural atua no espaço produtivo, mas esse não é reconhecido legítimo, apenas como ajuda ao marido, conforme se lê nas falas dos participantes.
O homem trabalha na lavoura e a mulher em casa e na lavoura, pois o marido obriga ela trabalhar na lavoura, ela tem que trabalhar [...] se tu olhar geral numa lavoura, tu não consegue distinguir quem é mulher e quem é homem, usando roupas e chapéus, se expondo ao relento do sol (ENF39).
Desse modo, as desigualdades sociofamiliares, advindas e constitutivas da divisão sexual do trabalho, contribuem para que as mulheres vivenciem, potencialmente, fatores de risco socioeconômicos, os quais, em interação com a estrutura de poder, afetam sua saúde pela exposição a situações distintas de vulnerabilidade.
As mulheres, nesse contexto, são consideradas trabalhadoras ativas dos processos produtivos, além do trabalho na roça, cultivam toda a alimentação que vai para a mesa da família. Não são as mulheres que se ocultam, são as relações desiguais que lhes atribuem hierarquias. Com isso, o trabalho delas na esfera produtiva permanece, praticamente, invisível, porque é praticado no interior do estabelecimento, sendo os homens praticamente os únicos responsáveis pelos contatos com o exterior - bancos, sindicatos, cooperativas, entre outros18.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das concepções dos participantes, os achados e discussões permitem pensar que gestores e profissionais da saúde, nesse cenário, não têm consciência da materialização da dimensão simbólica, histórico-social da violência contra as mulheres e, em particular, as mulheres rurais, como suas singularidades culturais e geográficas. Nesse sentido, menciona-se que a violência para a grande maioria dos entrevistados assenta-se no "destino de gênero", resultando na naturalização e na normalização dos eventos e suas causas. Isso, muitas vezes, impede a ação sobre os mesmos e seu reconhecimento como inaceitáveis na perspectiva dos direitos humanos e de uma vida digna.
Esses estereótipos sobre os papéis de gênero e as relações conjugais podem refletir dificuldades desses profissionais em compreender o comportamento das mulheres rurais. A ausência de busca de ajuda das mulheres nos serviços de saúde ocorre justamente por essa leitura, mantendo, assim, uma "roda viva" que perpetua a invisibilidade e a não intervenção sobre os eventos de violência.
Acredita-se também que essas dimensões identificadas nas falas de gestores, profissionais e trabalhadores da saúde indicam a "naturalização" da violência pela (in)capacidade de agir sobre ela na dimensão paradigmática e programática da saúde, sendo mais fácil, muitas vezes, "deixar assim" e (des)considerar esses eventos do que transformá-los em responsabilidade técnica e social.
Reconhece-se a necessidade de produzir rupturas nas formas instituídas e arraigadas de cuidado em saúde, nas visões conservadoras e estereotipadas de compreensão da violência. Essas rupturas poderão permitir uma leitura ampliada dos elementos imbricados nesses eventos complexos. Sustenta-se, em especial, a necessidade de se fazer reflexões de gênero na tentativa de não reproduzir iniquidades nas práticas. Além disso, as ações em saúde para as mulheres em situação de violência parecem, de fato, demandar uma intervenção que contemple novos elementos de compreensão do sujeito-mulher (re)constituindo ou (re)significando o que é saúde, necessidades, atenção e cuidado. A partir disso, novos olhares e estratégias de enfrentamento poderão orientar e constituir políticas de saúde e outras práticas profissionais.
Considerando-se que se trata de um estudo local, as análises limitam-se a essa realidade particular. Dessa forma, não se têm a pretensão de universalizar resultados, ao contrário, busca-se ampliar as reflexões sobre a temática que é ampla, instigante e admite outras análises, leituras e contribuições.
REFERÊNCIAS