Volume 18, Número 4, Out/Dez - 2014
PESQUISA
Implementação da Política Nacional de Saúde do Homem: o
caso de uma capital Brasileira
Isabele Torquato Mozer
1
Áurea Christina de Paula Corrêa
2
1 Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Mato Grosso. Cuiabá - MT, Brasil
2 Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá - MT, Brasil
Recebido em 08/02/2014
Aprovado em 06/08/2014
Autor Correspondente:
Áurea Christina de Paula Corrêa
E-mail:
aureaufmt@gmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Analisar o processo de implementação da Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde do Homem (PNAISH) em Cuiabá, tomando por referência gênero, conforme
proposta Ministerial.
MÉTODOS:
Pesquisa de abordagem qualitativa, com realização de entrevista semiestruturada
com os membros da equipe gestora da Secretaria Municipal de Saúde do período de
2009 a 2013. Complementarmente foram analisados os Planos de Trabalho Anual e os
Relatórios de Gestão do mesmo período. Foi utilizada a ferramenta metodológica
análise de política e implementada a técnica de análise temática.
RESULTADOS:
Os resultados evidenciaram a proposição de ações voltadas para a sexualidade e
reprodução com foco na detecção precoce do câncer de próstata e a articulação com
empresas do setor privado como estratégias para sua implementação.
CONCLUSÃO:
O estudo constatou que estas ações, de maneira geral, não favoreceram a
necessária mudança de comportamentos vulneráveis relacionados ao gênero, não
ocorrendo a efetiva implementação da PNAISH.
Palavras-chave: Gênero e Saúde; Saúde do Homem; Gestão em Saúde.
INTRODUÇÃO
O Ministério da Saúde (MS) instituiu, em 2009, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH)1 com o intuito de propor ações humanizadas e resolutivas, e de capacitar os profissionais de saúde para o atendimento ao homem, por meio da proposição de estratégias de promoção da equidade para distintos grupos sociais. Com vistas à implantação da Política, o MS selecionou 26 municípios que apresentavam altos índices de mortalidade, nessa população, para dar início ao processo.
Em 2008, Cuiabá apresentava números alarmantes relativos aos índices de mortalidade masculina, que já se configurava como um problema de saúde pública no município. Frente a tal situação, a capital do estado de Mato Grosso foi uma das cidades selecionadas pelo MS como município piloto para a implantação da PNAISH, considerando que, do total de mortes ocorridas por causas externas, por neoplasias e por doenças do aparelho circulatório 72,35% correspondia a óbitos de homens na faixa etária de 20 a 59 anos de idade (DATASUS, 2013), dado que por si demonstra a importância da implantação da Política no município, como estratégia na tentativa de mudança desse panorama.
Apesar da gestão municipal, à época de 2009, ter cumprido o compromisso de implantar a Política, conforme afirmam os documentos da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), os índices de mortalidade masculina persistiram, como pode ser constatado em observação aos dados do DATASUS relativos à 2011. Melhor dizendo, apesar da Política estar implantada em Cuiabá, no cotidiano dos serviços municipais de saúde, observa-se que, via de regra, poucas ações, especificamente, voltadas a essa população foram implementadas pelos serviços nos diversos níveis de complexidade.
Tal quadro epidemiológico motivou, grandemente, a realização deste estudo de caso sobre a implantação da PNAISH em Cuiabá, uma vez que, a despeito da Política estar implantada, conforme deliberação ministerial, de maneira geral, as ações concretizadas pouco contribuíram para a mudança do perfil de mortalidade da população masculina municipal, conforme demonstram os dados do DATASUS.
Outro aspecto considerado para a definição pela realização deste estudo relaciona-se ao fato de que, nos últimos anos, ocorreram inúmeras mudanças na gestão política e administrativa do município, gerando a descontinuidade das ações propostas pela SMS, uma vez que a cada novo gestor que assumiu a função de Secretário Municipal de Saúde, novas propostas eram encaminhadas, novas equipes técnicas eram constituídas e novas prioridades em saúde estabelecidas, determinando a variação do manejo da gestão nos diversos níveis de atenção à saúde, fato que interferiu no processo de implementação da PNAISH.
Tal constatação, por si, justifica a realização deste estudo, ou seja, um estudo que se propõe a analisar a execução do plano de ação, as ações colocadas em prática por meio de providências/ações concretas propostas e conduzidas pelos gestores municipais.
A PNAISH propõe que a Estratégia de Saúde da Família seja tomada como espaço preferencial para a concretização da Política de Saúde do Homem1, apontando a importância de serem consideradas as questões relativas ao gênero para sua implementação, por considerar que o comportamento masculino hegemônico resulta na pequena procura do homem por serviços de saúde, principalmente, na atenção primária.
Portanto, o processo de implantação e implementação da PNAISH requer que gestores e trabalhadores da saúde assumam um comportamento diferenciado, pautado também nas questões de gênero para realização do planejamento e implementação de ações voltadas à população masculina.
No que diz respeito ao plano de ação de Cuiabá para a implementação da Política observa-se que a proposta, de maneira geral, pouco tem colaborado para a mudança de práticas profissionais e organizacionais que favoreçam o acesso dessa população aos serviços de saúde, de forma a criar ambiência para a presença masculina na atenção básica, porta de entrada preferencial no Sistema Único de Saúde (SUS).
Tal fato justifica-se pela crença da invencibilidade do homem, pelo uso da violência associado à masculinidade, pela credibilidade em sua fortaleza e pela certeza do não adoecimento, sendo o cuidado com a saúde um comportamento considerado feminino, o que em alguma medida configura-se como um obstáculo à busca de homens por serviços de saúde, principalmente, na atenção primária.
Entretanto, estudo que aborda a perspectiva do homem como usuário do SUS aponta que eles querem cuidar de sua saúde, mas esbarram em questões relativas ao acolhimento e a organização dos serviços2.
A marginalização da população masculina, no que tange ao acesso aos serviços de saúde, ancora-se na cultura de gênero e nas políticas sociais do movimento feminista que tentam por fim à histórica desigualdade que cerca as mulheres, promovendo assim o preconceito ao contrário, uma vez que homens percebem-se não pertencentes aos espaços dos serviços de saúde, concebidos como espaços femininos. As discussões oriundas do campo feminista pouco problematizam os homens e as masculinidades, seja como objeto, seja como sujeito, a não ser como contraponto ao debate sobre a autonomia e o corpo das mulheres3.
Atualmente, é preciso ir para além dos estereótipos que vitimizam mulheres e culpabilizam homens a respeito do cuidado com a sua saúde em um contexto social, são necessárias reflexões sobre as construções sociais e culturais das masculinidades e feminilidades, visto que as relações de gênero apontam mais para a "diversidade do que diferença como resposta à dicotomia e desigualdade"4:46, sendo, aqui, diversidade concebida como multiplicidade ou heterogeneidade, ao contrário de diferença que expressa o sentido de distinção, de identificar características que não podem ser confundidas.
A masculinidade e a feminilidade conformam-se na prática/na vivência de/ao ser homem e ser mulher, a partir da posição que homens e mulheres ocupam na estrutura das relações de gênero. Melhor dizendo, existem diversas formas de manifestar a masculinidade e a feminilidade, extrapolando a maneira habitual social e culturalmente estabelecida, sem perder sua legitimidade.
Especificamente, no que diz respeito ao atendimento às necessidades de saúde de homens, considera-se que, as políticas de saúde podem contribuir para a superação de obstáculos ao cuidado com a saúde oriundos das desigualdades de gênero5, para tanto o primeiro passo seria o reconhecimento da impossibilidade das políticas serem "neutras" em relação a tais desigualdades, pois não responder a essas desigualdades significaria contribuir para sua manutenção.
A condução do processo de implementação das políticas públicas pode reforçar os preconceitos, uma vez que os serviços de saúde, via de regra, não ofertam aos homens, de forma eficiente, atendimentos compatíveis com suas necessidades. Para tanto, faz-se necessário uma mudança paradigmática tanto no que diz respeito à percepção da população masculina em relação ao cuidado com a sua saúde e a saúde de sua família2, quanto na mudança organizacional dos serviços de saúde e do perfil de trabalhadores que deve atuar junto a esta população.
Apesar da PNAISH assumir gênero como conceito central a ser utilizado para o planejamento e organização de intervenções voltadas à população masculina, no que diz respeito ao seu desdobramento, não aponta na mesma direção. As ações concretamente propostas evidenciam sinais de tendência a medicalização do corpo masculino, nos mesmos moldes das propostas referentes às intervenções sobre o corpo feminino6.
Partindo do princípio de que gênero é um elemento teórico transversal para a análise de eventos da saúde7, por se processar não só no âmbito familiar, mas também no mercado de trabalho e nas instituições e organizações sociais e políticas8, neste estudo, gênero ocupa a centralidade da discussão sobre o processo de implementação PNAISH em uma capital da Região Centro-Oeste do Brasil.
Frente ao exposto, o objetivo deste estudo foi analisar o processo de implementação dessa Política em Cuiabá, com base nas ações realizadas pelos membros da equipe gestora municipal, tomando por referência teórica gênero, conforme proposição ministerial.
METODOLOGIA
Estudo descritivo e exploratório de abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso, que pretendeu compreender como se deu a implementação da PNAISH, na perspectiva da equipe gestora da SMS de Cuiabá, no período de 2009 a 2013.
A opção pelo estudo de caso se deu em função das especificidades do processo ocorrido no município que tem a Política implantada, mas ainda enfrenta dificuldades para sua implementação.
Assumiu-se como critério de inclusão para definição dos sujeitos deste estudo: ter sido membro da equipe de gestão da SMS de Cuiabá no período de 2009 a 2013; ter participado do processo de implantação da PNAISH no município. Com a aplicação dos critérios de inclusão foram identificados 14 (quatorze) sujeitos, sendo que 1 (um) deles não se disponibilizou a participar. Assim, 13 (treze) profissionais participaram como sujeitos deste estudo.
Os sujeitos desta pesquisa foram profissionais que ocuparam: a Diretoria da Atenção Básica: um nutricionista, um sanitarista, um administrador hospitalar; a Diretoria da Atenção Secundária: dois enfermeiros; a Coordenadoria da Atenção Básica: três enfermeiros; a Coordenadoria da Atenção Secundária: um enfermeiro; os Responsáveis Técnicos pela área da saúde do homem na atenção primária: dois enfermeiros e um médico; na atenção secundária: um enfermeiro.
Com vistas a preservar a identidade dos participantes da pesquisa, os sujeitos, deste estudo, foram identificados nos excertos como Unidades de Análise (UA), seguido do número da ordem cronológica que foi realizada a entrevista (UA1, UA2,...).
Para a localização dos sujeitos recorreu-se à SMS que os identificou e disponibilizou as formas de contato. Inicialmente, foi estabelecido contato telefônico, momento em que eram informados sobre o projeto de pesquisa e solicitada a sua participação. Após era agendada uma data e local, de sua preferência, para realização da entrevista semiestruturada.
Antes de iniciar a entrevista, a pesquisadora informava seus direitos, assegurava a confidencialidade da conversa e solicitava a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Em seguida, pedia autorização para a gravação digital, sendo as conversas transcritas logo após pela própria pesquisadora.
As entrevistas tinham como questões norteadoras: Quais seus conhecimentos a respeito da PNAISH? Como foi implementada a Política em sua gestão (ações definidas pela equipe gestora)? Qual sua visão sobre o processo de implementação?
Neste estudo, assumiu-se a análise de política como ferramenta metodológica para nortear o tratamento dos dados. Trata-se de um tipo de estudo com características pré-estabelecidas, implementadas por meio da abordagem de quatro dimensões: o contexto, os atores, o processo e o conteúdo9, que se conformam como diferentes ângulos de um mesmo objeto.
Neste manuscrito faz-se uma reflexão sobre a dimensão processo, que propõe a análise das estratégias usadas pelos atores sociais envolvidos na implementação da Política, as negociações e suas finalidades.
Assim, para melhor compreender o processo de implementação da PNAISH em Cuiabá, realizou-se a triangulação de dados. Inicialmente, foi realizada a análise documental dos planos de trabalho anuais (PTA) relativos ao período de 2010 a 2013 e dos relatórios gestão de anuais (RGA) de 2010 e 2011, e compreender as propostas dos gestores municipais. Merece destaque o fato do RGA de 2012 não estar disponível para análise até o final da coleta de dados e, que o Projeto de implantação da PNAISH do município não foi localizado/disponibilizado.
No momento seguinte, foram analisadas as entrevistas realizadas com os sujeitos do estudo, tendo por referência a análise de política que norteou a constituição do corpus de análise que foi tratado com a técnica de análise temática10, seguindo as seguintes etapas: 1) leitura exaustiva e repetida das entrevistas, fazendo uma relação interrogativa para apreender as estruturas de relevância. 2) Mapeamento dos discursos individuais com base nos temas emergentes, definidos a partir da leitura exaustiva em observância aos objetivos da pesquisa (destacando-se as palavras e frases índices). 3) Síntese das entrevistas, baseada nas palavras e/ou frases índices interpretadas pelo pesquisador, processando o agrupamento e reagrupando dos temas mais relevantes com vistas na finalização da análise que apontou as unidades temáticas: Saúde sexual e reprodutiva: a priorização dos aspectos biomédicos e As empresas privadas à frente do processo de articulação com a SMS. Concluído o processo de análise, os dados foram discutidos, a partir de referencial teórico de gênero.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Muller com o protocolo número 179.098/2012, atendendo à resolução 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde/MS que regulamenta a realização de pesquisas envolvendo seres humanos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Saúde sexual e reprodutiva: a priorização dos aspectos biomédicos
As necessidades em saúde sexual e reprodutiva do homem são consideradas prioridades propostas pela PNAISH. Em Cuiabá uma das práticas identificadas foi a inclusão do homem em ações referentes ao Planejamento Reprodutivo, ações essas desempenhadas, majoritariamente, pela Atenção Secundária.
Segundo os sujeitos deste estudo, responsáveis por esse nível de complexidade na atenção à saúde, a inclusão do homem no Planejamento Reprodutivo, frequentemente, restringe-se a participação na última consulta da mulher que deseja fazer a laqueadura, pois neste momento a sua presença é obrigatória, por ser preciso a concordância da mulher e de seu companheiro/marido, por tratar-se de um método de contracepção definitivo.
Inclusive nas reuniões do planejamento familiar, o homem só vai quando a gente fala 'o homem tem que vir porque ele tem que assinar o papel pra você fazer'. (UA 3).
A PNAISH tem como um de seus objetivos a implantação e implementação da assistência em saúde sexual e reprodutiva, no âmbito da atenção integral à saúde da mulher e do homem, adulto ou jovem, propondo a ampliação e a qualificação do cuidado no planejamento reprodutivo masculino e feminino, inclusive assistência à infertilidade1.
Decisões relativas à vida reprodutiva do casal devem ocorrer de forma compartilhada e quando tomadas no universo individual devem ser feitas com segurança. Estudo realizado com homens e mulheres sobre planejamento reprodutivo demonstrou que, o desejo da participação dos homens, pelas mulheres e, o interesse dos homens, em participar, são um terreno profícuo para o redimensionamento de papéis11, o que demonstra que, em alguma medida, mudanças no modelo hegemônico de masculinidade já se insinuam, no que tange a esse aspecto.
O relatório de gestão do ano de 2011 demonstra que, da população masculina usuária do SUS em Cuiabá,
Somente 263 homens foram atendidos em serviços de planejamento reprodutivo, e destes 130 foram encaminhados para realização da vasectomia, mas apenas 5 realizaram o procedimento. (RG 2011).
Tal dado demonstra a existência de uma demanda reprimida no município. Fatos como esse podem contribuir para o descrédito dos serviços públicos de saúde da rede municipal, ao passo que aos olhos desses homens que não conseguiram alcançar seu intento, a credibilidade do serviço fica prejudicada, afastando-os ainda mais dos serviços de saúde.
A instituição da PNAISH, segundo a tabela SUS, determinou o aumento do repasse financeiro para pagamento da vasectomia ambulatorial, em detrimento do procedimento realizado em ambiente hospitalar. Essa iniciativa visou facilitar o acesso ao procedimento, caso assim deseja o homem, diminuindo custos com internação e fila de espera por leitos hospitalares. A não realização da vasectomia de forma ambulatorial, conforme proposição da PNAISH compromete a captação de homens interessados em se submeter ao procedimento, uma vez que acabam por se deparar com impasses operacionais da SMS, relativos à contratualização e financiamento para realização do procedimento em hospitais.
Para além dos impasses administrativos, a realização deste procedimento esbarra em preconceitos relativos aos riscos que homens acreditam existir relativos ao exercício de sua sexualidade, questão que também limita a procura pelo método.
Em relação às dificuldades relativas ao planejamento reprodutivo para implementação da PNAISH, um dos sujeitos não tinha claro se havia dificuldades:
[...] o planejamento familiar é uma política mais antiga, o homem tem que ir tanto para ele assinar, quanto para realizar a vasectomia. Então para nós, não mudou muita coisa... (UA 3).
O excerto possibilita inferir que, a implantação da PNAISH no Município de Cuiabá não teve grande influência sobre as ações que vinham sendo desenvolvidas no que diz respeito à presença dos homens no serviço de planejamento reprodutivo.
Visando promover a mudança organizacional dos serviços que prestam cuidados à saúde do homem, para favorecer sua procura e permanência nesses espaços, em 2010 foi realizado pela SMS de Cuiabá um evento de sensibilização que contou com a participação de todos os profissionais da atenção básica e secundária e, que teve como foco o atendimento, que deve ser prestado pelo profissional à população masculina na rede SUS.
Por exemplo, a questão do câncer de próstata, o urologista explicou. Foi bastante discutido a importância do toque retal, que existe uma barreira dos profissionais médicos, explicou até a técnica e tudo. Foi bem colocado. Sobre o planejamento familiar, sobre as DSTs, foi colocado. Sobre o tratamento dessas DSTs no homem. Eu achei que foi muito bom. [...] (abordaram) como atender, tratar, que exames pedir, tudo isso foi falado sim. É do procedimento, exames, exame físico, exame clínico. (UA 10).
Não foi capacitação, foi sensibilização. Foram três dias. Abordei sobre saúde mental, sobre DST, claro câncer de próstata. Um dia era saúde metal, o outro dia era sobre DST e o outro sobre câncer de próstata. (UA 10).
Os excertos evidenciam que, nessa sensibilização, o foco continuava centrado nos aspectos relativos à sexualidade e reprodução. Considerando que os sujeitos, desta pesquisa, foram membros da equipe gestora da SMS e, por tal razão tinham o respaldo técnico para direcionar as ações, chama atenção a hipervalorização dos aspectos relativos ao biológico, ao patológico, ao tratamento, desconsiderando os aspectos relacionados ao gênero para proposição de ações voltadas à saúde desta população.
Os dados demonstram que as ações relativas à implementação da Saúde do Homem em Cuiabá foram, em sua maioria, voltadas para as questões de ordem orgânica, mais, especificamente, no campo da saúde sexual e reprodutiva, com foco na detecção precoce do câncer de próstata.
Considera-se que esta situação advém da cultura profissional vigente que, geralmente, se resume à redução biomédica do corpo, como a única aproximação das necessidades de saúde tidas como válidas. Assim, a inserção de aspectos relativos à cultura generificada somente serão inscritos nas práticas de saúde se este modo de proceder for criticado em suas diversas dimensões12.
É preciso considerar que gênero é uma das dimensões organizadoras das relações sociais que produz desigualdades, então a política de saúde no âmbito do SUS precisa reconhecer a existência dessas desigualdades e respondê-las, com vistas à promoção da equidade de gênero5.
Nesse sentido, as capacitações oferecidas aos profissionais são essenciais para a implementação de uma política criada com vistas à reformulação de conceitos sobre o que signifique ser homem, que promova a reflexão sobre a forma prevista como adequada de agir socialmente como homem e de exercitar a masculinidade.
As abordagens nas capacitações deveriam promover a reflexão sobre os determinantes de saúde e, buscar estratégias coletivas para remodelar comportamentos, que colocam homens em condições de vulnerabilidade.
Este é o grande desafio das práticas de educação permanente em saúde: "produzir autointerrogação de si mesmo no agir produtor do cuidado; colocar-se ético-politicamente em discussão, no plano individual e coletivo, do trabalho"13:173.
Os achados apontam para a necessidade da realização de capacitações e da qualificação profissional, ação que pode contribuir para implementação de mudanças no imaginário dos profissionais e gestores que concebem o homem como um ser que não busca cuidados a sua saúde e acabam de certa forma, contribuindo com a permanência (histórica) da cultura relacional de gênero na atenção à saúde14.
A literatura científica demonstra que as necessidades em saúde masculina não se limitam aos males da próstata e outras enfermidades relativas aos aspectos biológicos. É preciso considerar os aspectos psicossociais e culturais, sem restringir o cuidado às ações assistenciais ou de caráter emergencial4. Entretanto, conforme constatado nos excertos, esta capacidade ainda é pouco observada na racionalidade das ações propostas pela equipe gestora da SMS de Cuiabá, participante deste estudo.
As falas demonstram que a temática mais trabalhada na sensibilização foi a detecção precoce do câncer de próstata, visto que no contexto do planejamento reprodutivo, das DSTs e da atenção à saúde mental, os cuidados com a próstata configuravam-se como nova temática a ser incorporada pela assistência à saúde oferecida pela Atenção Básica e Secundária.
[...] nessas capacitações englobou várias coisas: DST, preservativo, que já existe. Então, a gente orientava mais ainda. [...] no caso a próstata. (UA 9).
Esta racionalidade é evidenciada nos relatórios relativos à implementação da PNAISH na capital, que se apresentam meramente quantitativos sobre:
[...] número de homens que realizaram PSA (Antígeno Prostático Específico ou Prostate Specific Antigen) [...] número de homens que fizeram toque retal [...] número de encaminhamentos à consulta especializada em urologia e saúde mental. (RG, 2011).
Resultado semelhante foi encontrado em estudo realizado com enfermeiros de um Centro de Saúde da cidade do Rio de Janeiro, que objetivou conhecer e analisar a visão desses profissionais em relação ao atendimento à saúde do homem e que constatou uma visão reduzida aos problemas da próstata15.
Nesse estudo, alguns sujeitos demonstraram compreender a necessidade de considerar aspectos psicossociais para a implementação da PNAISH. Aceitar tal concepção, significa reconhecer que a oferta de serviços especializados não, necessariamente, determinará o aumento da demanda masculina em busca de cuidado nas unidades básicas e especializadas de saúde, mas que é fundamental o acolhimento às suas necessidades de maneira ampla.
Eu acho que na parte técnica ele [o profissional de saúde] tem preparo, mas precisa sempre aperfeiçoar, principalmente a parte do acolhimento. Isso é uma coisa que ainda tem muito deficiência. Na parte técnica, a forma de diagnosticar, forma de lidar, tratar, acho que nesse aspecto não tem problema. (UA 4).
[...] Porque não precisa de muita coisa pra fazer atendimento na rede primária, é realmente abrir espaço para o homem, recebê-lo, quebrar esse gelo com o homem. Mas eu acho que ainda falta mais sensibilização de toda a equipe, principalmente se você olhar o programa de saúde da família. [...] Então, é um trabalho a nível primário, eu vejo que é extremamente importante sensibilizar mais a equipe. De que adianta material se a equipe não esta com esse olhar para o homem? (UA 10).
Tal reconhecimento não garantiu que propostas concretas fossem encaminhadas pelos gestores, com vistas a sensibilizar os profissionais que atuam na assistência direta ao homem, o que favoreceria a compreensão de que os aspectos psicossociais precisam ser considerados na organização de serviços, como aponta o trecho abaixo.
A equipe para poder dar assistência ao homem desde o momento em que ele chega na policlínica, ainda precisamos de muito treinamento, ver qual que é a intenção da política de saúde do homem. Porque, muitas vezes, você chega e os profissionais não sabem qual é a intenção dessa política. Na prática, nós não percebemos (UA 3).
Os diferentes entendimentos a respeito do que seja necessário para a implementação da PNAISH dificultou o processo, seja no que diz respeito ao atendimento às necessidades de ordem biomédica, seja no que tange ao atendimento de necessidades de fundo psicossocial. As diferenças podem ser constatadas tanto entre os níveis de atenção no mesmo lapso de tempo, quanto na situação contrária - mesmo nível de atenção em períodos diferentes.
Todavia, vários sujeitos apontaram questões biomédicas como norte para organização dos serviços, tomando como referência as ações voltadas para a população feminina, fato que leva alguns autores a nomearem tais ações biomédicas como medicalização do corpo masculino6.
Resultado semelhante foi encontrado em estudo que analisou a implementação da PNAISH em cinco municípios brasileiros, no qual a rotatividade de profissionais acarretou em diferentes níveis de conhecimentos acerca das diretrizes da Política e na implantação da rotina dos serviços16.
Considera-se que a valorização dos aspectos biológicos relativos à saúde do homem, em detrimento dos aspectos socioculturais relacionados ao gênero, segue na contramão da Política, uma vez que essa se baseia nas evidências de barreiras sociais, culturais e institucionais, que determinam diferentes desfechos de saúde quando comparadas as populações de homens e mulheres5, considerando que o grande desafio de uma política voltada para os homens é mobilizar a população masculina para a luta pela garantia de seu direito social à saúde6.
As empresas privadas a frente do processo de articulação com a SMS
A estratégia de implementação da PNAISH em Cuiabá mais referida/valorizada pelos entrevistados, foi a aliança com as empresas do setor privado. Entretanto, chama a atenção o fato de não tratar-se de uma iniciativa da SMS, mas sim das empresas que buscaram a Secretaria, como é evidenciado no trecho que segue:
[...] muitos canteiros de obras procuram a secretaria pra falar "existe um política de saúde do homem, vocês podem explicar na empresa?". Isso vem acontecendo muito, desde o ano passado, agosto em diante. Muitas empresas vieram dizendo "olha eu tenho uns 600 homens que trabalham comigo e eu fiquei sabendo que tem uma política do homem e eu queria saber como funciona". Então a gente vai até o local e explica que a saúde do homem veio pra melhorar o atendimento [...] (UA 5).
Em 2010, o Serviço Social da Indústria Nacional (SESI), apoiado na PNAISH, formulou um documento orientando as empresas a se articularem com as Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde, a fim de fortalecerem as ações educativas de saúde nas indústrias.
Este documento visa alcançar soluções para os problemas que impedem o exercício de uma vida saudável, aliada às práticas já existentes de prevenção de acidentes de trabalho, considerando que a ausência do homem no trabalho repercute em âmbito institucional e pessoal, tendo em vista que a empresa/instituição deixa de contar com sua força de trabalho para a produção e no âmbito pessoal ocorre o prejuízo financeiro decorrente de sua ausência.
Assim é possível inferir que a busca pelas Secretarias estivesse mais relacionada à orientação do SESI do que à própria edição da PNAISH. Apesar de tal constatação pode-se dizer que para a SMS de Cuiabá, tal iniciativa conformou-se como uma possibilidade de ação concreta para a implantação da Política.
Entretanto, chama a atenção o fato de que as temáticas abordadas pelas empresas não foram as mesmas propostas pela SMS, mas sim definidas internamente, são elas: DSTs, primeiros socorros e imunização. Assumindo tal atitude a SMS, em alguma medida, repassou às empresas parte da responsabilidade pela implementação da Política.
As alianças estabelecidas para a implementação de políticas devem encontrar modos de operar em conjunto, abstraindo interesses das partes, chegando a um bem comum9. Nesse contexto percebe-se que a aliança estabelecida, não atendeu aos interesses dos dois lados e sim aos objetivos das empresas, visto que os comportamentos relativos ao cuidado à saúde dos homens aparentemente se mantiveram.
[...] a gente, às vezes, fazia palestras [...] naquelas indústrias na região do distrito industrial que pega mais indústrias, que tem mais homens trabalhando. Só que falava, mas ficava por ali mesmo. [...] não conseguia o objetivo de trazê-lo pra Unidade (UA 11).
O uso de espaços coletivos e contextos majoritariamente masculinos como locus privilegiado de discussão sobre promoção à saúde é fundamental, pois é preciso ir onde os homens estão, uma vez que homens, geralmente, não procuram/frequentam serviços de saúde para resolução de suas necessidades de saúde.
O objetivo principal da aliança com os setores onde há presença maciça de homens, não se restringe a levar conhecimentos de saúde, mas também a sensibilizá-los de que o cuidado com a saúde não é apenas coisa de mulher4.
Estudo que abordou a influência da educação na saúde do homem, por meio da realização de práticas educativas em empresas, constatou que as palestras promoveram maior conscientização sobre a importância da prevenção, de buscar orientação médica periódica e de adotar hábitos de vida saudáveis. Entretanto, teve como empecilho os horários (in)disponibilizados pelos empregadores para a implementação dessa prática, corroborando a importância de haver articulação entre a iniciativa privada e as secretarias municipais e estaduais de saúde, a fim de firmar parcerias que auxiliem os gestores na divulgação da promoção da saúde masculina17.
A unidade de saúde é considerada como um local pouco apropriado para alcançar a população masculina em função do imaginário social que valoriza a invulnerabilidade do homem e, da sua forma de contratação no mercado de trabalho brasileiro que determina a permanência nesse local por longos períodos, dificultando seu comparecimento a serviços de saúde. Assim, o espaço laboral conforma-se como local preferencial para o desenvolvimento de ações preventivas que atinjam este grupo populacional.
Os sujeitos deste estudo reconhecem que uma das dificuldades do homem acessar o serviço de saúde é a liberação do empregador. Entretanto, é necessário ponderar também que, homens doentes refletem tanto na diminuição de força produtiva das instituições empregatícias, quanto nos elevados custos com reabilitação da saúde para o sistema de saúde.
[...] O homem já perdeu um dia de serviço, perdeu o serviço porque tem que tratar e os patrões não querem saber, querem que eles trabalhem. Eles não sabem que aquele homem também fica doente, por isso tá morrendo. (UA 5).
Considerando que o trabalho confere virtude moral dignificante ao homem, firmando-o perante a sociedade e proporcionando reconhecimento social18, sua ausência para comparecer a serviços de saúde/unidades básicas de saúde, geralmente, não é bem aceita pelos próprios homens, visto que devido à organização de trabalho ali implantada, existe o risco de perderem o período inteiro de trabalho.
Dessa forma, a articulação com as empresas do setor privado deve ocorrer, havendo a preocupação com os resultados e com o impacto das ações. Orientações e momentos de reflexão em locais com grande concentração de homens são válidos, porque alertam os homens sobre os problemas de saúde emergentes, porém a mudança dos comportamentos vulneráveis provenientes da relação entre os gêneros, só será possível por meio do interesse mútuo das instituições públicas e privadas, em transformar o panorama atual.
A articulação entre SMS e as indústrias do município, potencialmente, pode contribuir, em grande medida, com a alteração do perfil epidemiológico da população masculina, considerando que mudanças comportamentais podem ser alcançadas por meio de intervenções de promoção e prevenção junto a grupos específicos, com interesses comuns, sendo, para tanto, fundamental que ocorram de maneira estratégica e planejada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Olhar reflexivamente para as ações realizadas/propostas pelos membros da equipe gestora da SMS de Cuiabá para implementação da PNAISH possibilitou a constatação de que o município apresenta situação semelhante a encontrada em outras localidades, onde estudos similares foram conduzidos.
Dessa forma, pode-se dizer que, basicamente, as ações propostas situam-se no campo das práticas voltadas para o atendimento às necessidades em saúde relativas aos aspectos biomédicos, como àqueles que dizem respeito à saúde sexual e reprodutiva, com destaque para a prevenção de câncer de próstata e planejamento reprodutivo.
Faz-se necessário ressaltar a articulação efetivada entre a SMS e as empresas do setor privado como uma estratégia válida e com perspectiva de resultados positivos para a implementação da PNAISH. Contudo, é importante ressaltar a necessidade do estabelecimento de alianças, que produzam resultados positivos bilateralmente, nas quais os interesses do município também sejam atendidos, com vistas a rediscutir o comportamento de homens em relação ao cuidado com a sua saúde.
Assim, pondera-se a viabilidade da equipe gestora do município em promover a implementação de práticas em saúde também voltadas à ressignificação das concepções de profissionais a respeito da relação homem/cuidados de saúde.
A utilização da abordagem de gênero nas discussões tem a finalidade de alcançar mudanças na organização dos serviços de saúde no nível municipal, a partir de um olhar sociocultural. Estas mudanças, potencialmente, favorecem a presença de homens, nestes espaços, a partir do oferecimento de serviços que realmente atendam às necessidades em saúde apresentadas por este grupo populacional.
Este estudo teve como limitação a impossibilidade de analisar as ações pactuadas que envolvam o nível terciário de atenção, composto, majoritariamente, por serviços privados contratualizados, adquirindo uma complexidade incompatível com o tempo disponível para este estudo.
Outra limitação foi o não acesso ao Projeto de implementação da PNAISH no município, fato que inviabilizou melhor/maior compreensão do processo proposto pela equipe gestora, visto que nele deveriam constar detalhadamente as ações planejadas.
REFERÊNCIAS