Volume 18, Número 3, Jul/Set - 2014
PESQUISA
Proteção: dimensão do cuidado em famílias rurais
assentadas
Simone Wunsch
1
Maria de Lourdes Denardin Budó
2
Margrit Beuter
2
Raquel Potter Garcia
2
Margot Agathé Seiffert
2
1 Universidade Federal de Santa Maria. São Luiz Gonzaga - RS, Brasil
2 Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria - RS, Brasil
Recebido em 16/06/2013
Reapresentado em 06/12/2013
Aprovado em 09/01/2014
Autor correspondente:
Simone Wunsch
E-mail:
simone.wunsch@gmail.com
RESUMO
Objetivou-se conhecer as práticas de cuidado em saúde desenvolvidas por uma
comunidade rural assentada na região noroeste do Rio Grande do Sul, Brasil.
MÉTODO:
Pesquisa qualitativa de vertente etnográfica, utilizando-se o guia habilitador
Observação-Participação-Reflexão e entrevista semiestruturada. A análise dos dados
ocorreu com base no guia de análise de dados da etnoenfermagem.
RESULTADOS:
Demonstrou-se que o cuidado encontra-se, culturalmente, definido e significa
proteção, seja no sistema de cuidado genérico ou profissional. No cuidado
genérico, a proteção torna-se uma ferramenta de sobrevivência das famílias e no
cuidado profissional abrange ações de apoio e assistência para melhorar o seu
bem-estar.
CONCLUSÃO:
Evidencia-se que as práticas de cuidado em saúde articulam os sistemas de cuidado
popular e profissional, o que indica como necessária a aproximação dos saberes
para permitir à enfermagem realizar um cuidado congruente com a cultura.
Palavras-chave: Enfermagem; Cultura; Cuidados de enfermagem; Assentamentos rurais.
INTRODUÇÃO
As práticas de cuidado desenvolvidas por famílias, sujeitos e comunidades encontram-se entrelaçadas com os aspectos sociais, culturais e históricos, fato que estabelece a relação do cuidado humano com a visão de mundo, estrutura social e etno-história1.
As temáticas cultura, cuidado e enfermagem destacam-se na Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural (TDUCC)1, a qual afirma que o cuidado humano existe em distintos grupos sociais, e que culturas diferentes percebem, conhecem e praticam o cuidado de maneiras diferentes, apesar de haver pontos comuns no cuidado de todas as culturas1,2.
A teoria TDUCC acolhe a criação de um subcampo da enfermagem transcultural, edificado sob a premissa de que as pessoas de cada cultura não apenas sabem e definem as formas através das quais experimentam e percebem seu mundo de atendimento de enfermagem, mas também podem relacionar essas experiências e percepções com as suas crenças, estilos de vida e práticas gerais de saúde1,2.
Assim, ao olhar as sociedades sob a lente sociocultural, identifica-se a existência de sistemas diferenciados de cuidados, os quais são definidos como: sistema de cuidados genéricos e sistema de cuidado profissional1. O cuidado genérico ("folk" ou popular) diz respeito às ações de cuidados primários de saúde, desenvolvidas na perspectiva familiar, difundidas, culturalmente, entre as pessoas e não sendo transmitidas oficialmente pelas instituições de ensino. O cuidado profissional, por outro lado, envolve tudo aquilo que é aprendido e praticado pelos enfermeiros, ou seja, é formalizado e oficializado nos bancos acadêmicos1,2.
O cuidado desenvolvido no meio rural e suas múltiplas gêneses evidenciam hábitos e modos de vida singulares. Essas particularidades fornecem significados que se constituem na essência do viver rural. Para as famílias rurais, o cuidado encontra-se concebido na "externalidade do corpo, no conjunto das relações que abrangem a família, no trabalho e na terra"3:49.
No entanto, verifica-se que a produção do conhecimento, envolvendo a temática rural, mantém-se ainda bastante reduzida, o que demanda a ampliação do conhecimento acerca dessa temática e das questões que a envolvem4. Diante disso, pergunta-se: quais as ações de cuidado em saúde praticadas pelas famílias rurais assentadas? Face ao exposto, busca-se conhecer as práticas de cuidado em saúde desenvolvidas por uma comunidade rural assentada na região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de natureza etnográfica. A etnografia consiste em um estudo que permite uma interação e uma troca entre pesquisador e sujeitos da pesquisa, em que se dá ênfase no cotidiano e no subjetivo, possibilitando uma descrição intensa5,6. Na enfermagem, foi desenvolvida a etnoenfermagem como um método de pesquisa para auxiliar enfermeiras a estudar, documentar e analisar o ponto de vista local das crenças, valores e práticas de cuidado percebidos e conhecidos por uma determinada cultura por meio de suas experiências diretas2.
O cenário em que se desenvolveu a pesquisa foi um assentamento rural situado na região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, constituído por 53 lotes de terra, sendo que apenas 48 encontravam-se ocupados no período do estudo. As famílias assentadas, nessa localidade, e participantes deste estudo são oriundas de diversos acampamentos e a área geográfica total do assentamento é de 829,55 hectares.
Para participar da pesquisa, foram considerados os seguintes critérios de inclusão: algum membro da família ter participado da reunião, na qual o projeto de pesquisa foi apresentado; os integrantes serem maiores de 18 anos; e residirem no assentamento há no mínimo dois anos. O recorte temporal de dois anos foi estipulado por se acreditar que a família estaria integrada ao contexto sociocultural que permeia a comunidade.
Na coleta de dados, utilizou-se o Modelo Observação-Participação-Reflexão (O-P-R)2, um dos guias habilitadores indicados como recurso para explicar o cuidado cultural e, uma entrevista semiestruturada. Os atos de observação foram registrados em um diário de campo, que consiste em um caderno de notas em que o investigador anota o que observa e que não é objeto de nenhuma modalidade de entrevista, dia por dia7. O registro das observações foi precedido por uma identificação que consistia na data, o horário, o local e as situações observadas naquele período. A entrevista semiestruturada, com perguntas abertas e fechadas, foi apresentada às famílias no decorrer do processo de observação, gravadas e, posteriormente, transcritas. As fontes de informações dos estudos que envolvem a etnoenfermagem são denominadas de informantes-chave e geral2. Os informantes-chave foram selecionados propositalmente e se constituíram dos sujeitos que apresentavam maior facilidade de comunicação, em cada família, sendo que os demais integrantes das famílias foram considerados informantes gerais.
A coleta finalizou com base nos critérios de saturação dos dados, totalizando quatro famílias acompanhadas. Os dados foram coletados no período de fevereiro a maio de 2011. A análise dos dados ocorreu baseada no Guia das Fases de Análise dos Dados da Etnoenfermagem2, a qual propõe uma análise em quatro fases sequenciais. A fase I refere-se à coleta e documentação dos dados brutos; a fase II, à identificação dos descritores e indicadores; a fase III, à análise contextual e de padrões atuais; e a fase IV, à identificação dos temas e dos achados relevantes da pesquisa.
O estudo foi realizado em consonância com as exigências da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde8, com aprovação do projeto pelo Comitê de Ética sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 0356.0.243.000-10.
O sigilo das famílias participantes do estudo foi preservado por meio da utilização das letras S correspondente a "sujeito" e F, de "família", seguidas do número relacionado à ordem de realização das entrevistas. Como exemplo: SF01; SF02; e assim sucessivamente.
RESULTADOS
Na interface do presente estudo emergiu, dos relatos das famílias assentadas e da observação participante, que o cuidado significa proteção, concretizado no sistema de cuidado genérico e no sistema de cuidado profissional. Essa prática apresentou-se compartilhada e padronizada pelas famílias durante o processo investigativo.
Proteção: as práticas de cuidado popular em famílias de assentamento rural
As famílias percebem o meio em que residem e trabalham como um contexto imerso em diversos riscos ambientais para acidentes de trabalho, sendo, portanto, necessário o cuidado como proteção, o qual é concebido como ponto decisivo para manter a saúde.
[Cuidado] é proteger; cuidar um pouquinho; fazer ao máximo para que não aconteça, às vezes, se cortar cortando lenha, roçando, pisar num prego, tudo isso aí vai do cuidado, fazer devagarinho para não se machucar, porque é brabo uma parte do corpo [...] (SF01).
Uma prática de cuidado, objetivando a proteção, conforme informações das famílias, consiste no uso de calçados de borracha.
Deus me livre não se cuidar, pisar numa cobra e ela morder, é complicado ir para cidade [procurar atendimento] (SF01).
"Lá fora [junto à terra]a gente vai trabalhar prevenido de calçado [...]a gente vai sempre usando bota de borracha por causa do sereno para não pegar nos pés, por causa dos insetos, da lama, do tétano [...]" (SF04).
O cuidado como proteção relaciona-se, ainda, ao uso da vestimenta adequada para a temperatura e exposição ao sol, conforme registros em nota de diário de campo:
Na presença de uma brisa, as crianças usam casacos leves ou camisas de manga longa. Nos dias com uma queda mais brusca de temperatura, crianças e adultos buscam a proteção junto a vestimentas mais reforçadas.(fragmento diário campo 15/02/2011; 29/04/2011).
O trabalho diário em uma comunidade rural requer também cuidado com a exposição ao sol. A capina inicia-se o mais cedo possível pela manhã, estendendo-se até 10 h ou no máximo ao meio-dia, horário do almoço. As famílias lançam mão de chapéus, bonés e indumentária composta por camisas de manga longa e calças compridas. (fragmento diário campo dia 15/02/2011; 05/05/2011).
O uso de chás igualmente foi mencionado pelas famílias como proteção popular. Essa prática de cuidado, habitualmente, encontra-se inserida na vida das famílias, segundo informações colhidas nos depoimentos.
[...] faço aquele champorão [mistura de várias ervas para chá] e coloco em cima do fogão e faço eles [os demais integrantes da família] tomar [...] (SF01).
[...] muitas vezes tem que se socorrer com chá [...] a gente aprende nos cursos do movimento [relata que participou de cursos de fitoterapia], no acampamento, algumas coisas eu sabia da minha infância [...] (SF03).
Constatou-se, também, que as famílias assentadas desenvolvem o cuidado como proteção por meio do ato de se benzer e outras crenças populares, conforme informações adquiridas com as famílias.
Os calçados devem ficar dispostos lado a lado para permitir o progresso, sucesso, harmonia. A terra, a casa, os bichos devem ser protegidos pela benção. Para sair 'olho gordo', tem que usar sal. A sujeira da casa nunca deve ser varrida para fora durante a noite, pois a escuridão leva a harmonia, a felicidade, embora. O ideal para benzer é antes do sol entrar. (fragmento diário campo 16/02/2011).
As famílias realizam algumas práticas de cuidado embasadas em crenças que envolvem o calendário lunar ou as fases da lua. Esses cuidados envolvem os integrantes das famílias bem como o cuidado com o cultivo da terra, respeitando-se as épocas de plantio de cada espécie. O uso do anti-helmíntico, por exemplo, ocorre somente nos períodos em que a lua está na fase minguante, pois as famílias acreditam que os parasitas intestinais, chamados de 'vermes, bichas' encontram-se 'por cima, mais fracos, menos alvoroçados'. (fragmento diário campo 16/05/2011).
[...] não botar os pés no chão nem no verão nem no inverno, não sair [de casa] e pegar a aragem da noite. Minha mãe sempre dizia que a aragem da noite no inverno dá gripe, dor de garganta (SF04).
O alimento também se vincula à manutenção do cuidado, visando à proteção, como na fala a seguir:
[...] uma alimentação do campo mesmo [...] não tem por que comprar tudo no mercado [...] todo esse trans [gênico]... afeta a saúde da gente. (SF02).
[...] comer feijão, refrigerantes, somente final de semana. (SF04).
Proteção: o cuidado profissional na perspectiva das famílias assentadas
As famílias assentadas buscam a proteção ao acessar o cuidado de saúde por meio de consultas especializadas, na expectativa de solucionar um agravo em saúde considerado inesperado ou agudo, evidenciado nas falas que se seguem:
[...] se dá um problema, a primeira coisa que tu faz é ir no médico e cuidar ao máximo possível, seguir as orientações que o médico mandar [...] (SF04).
[...] quando ela se atacou [refere o nome pessoa e o problema], eu levei no hospital, uma terça-feira, o médico consultou e deu remedinho para dor e mandou embora. Na quarta de noite [...] ela não aguentou de novo a dor, voltamos ao hospital, fez remédio na veia, mandou ela de volta para casa [...]. O postinho não estava funcionando [...] era feriado naquela semana [...] se vai consultar lá no postinho é paracetamol e outras coisinhas [...] (SF03).
Uma alternativa de proteção e cuidado desenvolvida pelas famílias, conforme depoimentos, para buscar o sistema de cuidado profissional, representado pelos hospitais, nos horários em que não há transporte coletivo (ônibus), é a utilização dos serviços da ambulância.
Se ficar doente a gente liga para a ambulância [...] (SF01).
[...] eles [da Secretaria de Saúde e ambulância] vêm buscar [...] (SF02).
Ainda, quando solicitados a abordar o significado de saúde, evidenciou-se a ênfase ao medicamento como cuidado de proteção, segundo falas descritas:
[...] essa questão da saúde a partir do dia que nós viemos para cá [cita nome da cidade] [...] o governo atual já devia entender e fazer o pedido para mais tantas pessoas de medicação [...] o medicamento basicamente a gente vai buscar e não tem [...] medicamento é questão de saúde [...] tomar o remédio na hora certa, a gente põe o telefone para despertar e não atrasar o remédio [...] (SF04).
[...] quando ele/ela [identifica sujeito] ficou doente tive que esperar mais de uma semana para conseguir levar na doutora [...] que já tinha atendido por primeiro [...] então a única coisa é, infelizmente, comprar remédio [...] (SF03).
As famílias consideram que uma forma de garantir o cuidado em saúde como proteção é o trabalho do Agente Comunitário de Saúde (ACS), que desenvolvia as suas ações na comunidade havia dois anos, destacado nas falas registradas abaixo:
Aqui a única pessoa que a gente pode contar é com [refere nome], a nossa agente comunitária [...] ela dá sempre um jeitinho [...] mas diz que é difícil [...] (SF01).
Nós temos agente de saúde [...] ajuda, assim, se precisar marcar uma consulta, um exame, tipo uma intermediária, vem na tua casa, uma vez por mês, traz anticoncepcional [...] (SF04).
DISCUSSÕES
Os ambientes rurais e seu modo de organização expõem as famílias a diversos riscos ambientais, os quais se configuram em fatores agressivos à saúde. A hostilidade que permeia o meio rural tende a converter-se em acidentes de trabalho, com lesões corporais diversas, evidenciando-se que as adversidades no meio rural se constituíram em um processo dinâmico, que envolve o contexto no qual as famílias se encontram inseridas e não apenas como um descuido ou falta de cuidado.
O viver em ambientes rurais estabelece para as famílias uma rotina vinculada a um trabalho constantemente permeado por perigos e possibilidades para acidentes dos quais devem se proteger. Os agentes que se constituem em ameaças à saúde das famílias consistem em animais domésticos, animais peçonhentos ou instrumentos de trabalho.
A ocorrência de incidentes sucede-se durante a realização das tarefas do cotidiano e suas consequências podem resultar em perturbações funcionais, doenças com perda da funcionalidade temporária ou permanente da capacidade de trabalho e até morte9. O cuidado com a prática do trabalho reduz os índices de morbidade, porém, não ameniza os riscos ambientais, ergonômicos e acidentais, a que as famílias se encontram subordinadas.
A precaução das famílias frente aos perigos eminentes contra a saúde permite práticas de cuidado, como a proteção corporal contra os efeitos nocivos do sol e do frio. Esse cuidado converte-se em uma proteção para a manutenção da saúde, considerando-se que a temperatura corporal fora da faixa considerada excelente (36,5º-37,5º C) pode desencadear comprometimentos fisiológicos e patológicos no ser humano10, reforçando-se a crença da vestimenta na prevenção de doenças.
A dinâmica do cuidado nas famílias envolve, também, a fitoterapia como prática transgeracional de proteção, a qual compreende o conhecimento das ervas, o preparo e suas indicações. O poder curativo das plantas é notório e acompanha a evolução humana desde o seu surgimento, pois durante muito tempo o poder terapêutico das plantas medicinais foi o principal meio disponível para tratar a saúde das famílias11.
As crenças e superstições também fortalecem as práticas do cuidado popular em busca da proteção e constituem-se em elementos simbólicos impregnados pelo misticismo. Esse cuidado desempenha uma função de amparo às famílias nas diferentes circunstâncias da vida, considerando que os credos culturais envolvem preceitos, princípios e aspectos subjetivos, os quais se tornam responsáveis por estabelecer uma afinidade entre as crenças e o cuidado popular.
As práticas mágico-religiosas, na vida do homem, proporcionam alívio às suas angústias e aflições, libertando-o de suas incertezas, tornando-o menos vulnerável às adversidades. As crenças resultam, na maioria das vezes, em influências nos acontecimentos, na tomada de decisões que promovam repercussões sociais9, inclusive na saúde.
Ainda, para as famílias, outra prática de cuidado consiste em produzir e consumir o próprio alimento, considerado um alimento mais saudável e economicamente acessível. Na concepção das famílias, produzir o próprio alimento garante a sobrevivência na terra, motiva a continuidade da luta e protege também a saúde.
A produção dos alimentos, no assentamento, relaciona-se com a autossustentação, com a agroecologia que dispensa o uso de agrotóxico e insumos químicos poluentes, evidenciando, para as famílias, que os alimentos disponibilizados nos centros urbanos não apresentam boa qualidade12. Desse modo, a produção agrícola básica das famílias assentadas representa um fator de proteção à saúde, já que se produz um alimento sadio que não utiliza produtos químicos, os quais são responsáveis por uma série de consequências ao meio ambiente e à saúde do homem13.
As diversas práticas de cuidado popular desenvolvidas pelas famílias assentadas demonstram as ações de proteção frente aos problemas encontrados no meio em que vivem. Entende-se, portanto, que a cultura do cuidado popular torna-se uma ferramenta de sobrevivência das famílias no contexto que as rodeia, por meio de tradições e costumes.
A proteção vinculada ao cuidado profissional também é lembrada pelas famílias na abordagem referente aos problemas da saúde. Esse construto encontra-se associado com o acesso ao sistema profissional de saúde, na forma de consultas médicas, medicações, hospital, ambulância e ACS.
Os serviços de saúde disponibilizados às famílias assentadas não se encontram estruturados. As dificuldades em acessar os serviços de saúde fortalecem a exclusão do assentamento e tais constatações servem para ponderar acerca das falhas, envolvendo as políticas de saúde voltadas para a população do campo14.
O acesso ao médico e ao seu conhecimento são preconizados por este apresentar uma resposta rápida às dificuldades em saúde, porém, nem sempre eficaz para o problema. A busca por esses cuidados e saberes não significa desinformação acerca dos agravos, excetuando-se as emergências, contudo, pode traduzir-se em valorizar em demasia o conhecimento biomédico em detrimento do conhecimento popular e familiar15 na busca do cuidado como proteção.
Uma solução rápida aos problemas de saúde possibilita um retorno imediato ao trabalho e a continuidade da proteção, porém, em casos específicos os demais integrantes das famílias se responsabilizam pelas atividades. Assim, trabalho consiste em saúde e ausência de doença, fortalecendo-se, dessa forma, a percepção da saúde como um elemento permeado, constantemente, pela cultura e condição social.
Ao perceberem que a sua saúde está prejudicada e, diante da dificuldade em chegar à rede básica dos serviços de saúde, as famílias acionam o serviço de urgência e emergência via plantão da ambulância municipal, a fim de buscar cuidados como forma de proteção à saúde. A acessibilidade, para os assentados, confunde-se com a possibilidade que possuem para chegar aos serviços de saúde e solucionar o seu problema. O acesso consiste em buscar e receber assistência à saúde, pois o ingresso à rede de serviços não se encontra democratizado, ferindo a equidade16.
A promoção à saúde requer a identificação e a remoção de obstáculos para adoção de políticas públicas seguras e saudáveis, no entanto, a saúde como um direito social representa um ideal que até o presente momento ainda vem sendo construído dentro do assentamento, deixando as famílias à margem das políticas de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). A falta de discussão coletiva sobre a temática na comunidade justifica-se pelo fato de que a preocupação maior de todos envolve, primeiramente, a sobrevivência na terra, aliada aos financiamentos e projetos agrícolas.
No sentido da proteção, as famílias creditam aos medicamentos um lugar de destaque no cuidado, pois esses se encontram associados com a cura e manutenção da saúde. As famílias, ao apoiarem-se no produto farmacêutico como um recurso para proteção manifestam a desproteção por parte do poder público, representada pela ausência de uma política pública em saúde local que forneça uma resposta aos anseios em saúde do universo rural.
A prática e o uso indiscriminado de diversos medicamentos para a proteção à saúde sem apresentar uma resolutividade tornam-se motivo de preocupação dos órgãos competentes e fiscalizadores em saúde, gerando diversos debates. Estudos têm demonstrado que o resultado das práticas abusivas consiste em prescrições desnecessárias, em especial de antibióticos e medicamentos injetáveis, tratamentos ineficazes e inseguros, exacerbação da doença, aumento de reações adversas, desconforto ao paciente, danos, aumento da resistência microbiana, falta de acesso, perda da confiança do usuário no sistema de saúde17.
O cuidado profissional como proteção encontra respaldo no trabalho do ACS, o qual é visto como o vínculo dos assentados com o sistema de saúde vigente, sendo que o seu papel é reconhecido pelas famílias pela forma em ajudar, mediante marcação de consultas, exames.
No entanto, profissional ACS deve ser considerado um educador em saúde18, pois, entre as suas atribuições, ele organiza o acesso à saúde, capta as necessidades, identifica prioridades e detecta os casos de risco, procurando, de certa forma, oferecer ao usuário e à comunidade uma atenção para a saúde. Dessa forma, se o papel deste vier a ser cumprido corretamente, favorece-se a promoção à saúde, a transformação de situações-problema que afetam a qualidade de vida das famílias, como aquelas associadas ao saneamento básico, destinação do lixo, condições precárias de moradia, situações de exclusão social, desemprego, violência intrafamiliar, drogas ilícitas, acidentes, dentre muitas outras18 que colaboram para a proteção de saúde dos indivíduos.
É possível, portanto, verificar que o cuidado profissional em saúde emerge frente às ações de apoio, de assistência para melhorar o bem-estar das famílias e protegê-las das dificuldades ante as intercorrências que compõem o viver rural. Esse cuidado encontra-se vinculado aos saberes biomédicos, ao agente de saúde, à medicação, aos hospitais, sem, contudo, mencionar a enfermagem de um modo geral ou o enfermeiro, evidenciando uma lacuna que necessita ser revista e analisada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da realização do presente estudo, demonstrou-se que o cuidado desenvolvido pelas famílias assentadas encontra-se embasado em diversos conhecimentos, permeados pela experiência de vida, pelas crenças e valores, os quais perpassam a cultura do cuidado popular e o cuidado profissional.
Na cultura estudada, a saúde encontra-se como sinônimo de trabalho, de produção, de manter-se no lote de terra conquistado, tornando-o produtivo, o que demanda por parte das famílias assentadas, no seu dia a dia, ações de cuidado específicas visando a proteção. O fenômeno do cuidado, portanto, apresentou íntima relação com a situação social, com a forma de produção, com o trabalho das famílias.
Diante disso, os sistemas de cuidado popular e profissional necessitam andar associados, pois a aproximação dos saberes permite conhecer os significados de expressões, padrões, funções e estruturas do cuidado e do cuidar, possibilitando à enfermagem ofertar um cuidado unificador e singular às famílias.
A enfermagem, ao exercer o cuidado, busca realizar aproximações entre os diversos modos de cuidar para desenvolver um cuidado congruente às famílias, embasado nos conhecimentos culturais que guiam as ações nos diferentes contextos sociais. Entretanto, esse profissional não foi identificado pelas famílias assentadas como componente integrante do processo de proteção, tornado-se de vital importância compreender e suprir a ausência desse profissional.
REFERÊNCIAS