Volume 18, Número 3, Jul/Set - 2014
PESQUISA
Percepções e práticas de gestantes atendidas na atenção
primária frente ao uso de drogas
Danielle Satie Kassada
1
Sonia Silva Marcon
2
Maria Angélica Pagliarini Waidman
2
1 União Nacional das Instituições de Ensino Superior Privadas. Maringá - PR, Brasil
2 Universidade Estadual de Maringá. Maringá - PR, Brasil
Recebido em 29/01/2013
Reapresentado em 24/08/2013
Aprovado em 31/08/2013
Autor correspondente:
Danielle Satie Kassada
E-mail:
danih_kassada@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO:
Identificar percepções e práticas de gestantes atendidas na atenção primária
frente ao uso de drogas de abuso.
MÉTODOS:
Pesquisa descritiva de abordagem qualitativa desenvolvida com 25 mulheres
usuárias de drogas. Os dados foram coletados em julho de 2012 em Maringá - PR, por
meio de entrevista aberta e submetidos à análise de conteúdo.
RESULTADOS:
As gestantes relataram dificuldade em abandonar o uso de drogas e que as
informações, sobre isto, durante a assistência pré-natal são insuficientes.
Observou-se que algumas sentem medo e culpa decorrente da possibilidade de agravos
ao feto e outras não se preocupam com esta possibilidade e ainda, que as usuárias
de drogas ilícitas sentem-se julgadas e não apoiadas pelos profissionais.
CONCLUSÃO:
É necessário sensibilizar os profissionais que fazem o acompanhamento pré-natal
sobre a importância de acolher, esclarecer, orientar e apoiar gestantes usuárias
de drogas, com vistas a promover uma assistência pré-natal qualificada e a redução
de danos.
Palavras-chave: Usuários de Drogas; Drogas Ilícitas; Atenção Primária à Saúde; Gestantes; Enfermagem.
INTRODUÇÃO
O uso de drogas ilícitas tem aumentado pelo universo feminino, assim como já havia ocorrido com o tabaco e o álcool. O número de mulheres internadas por dependência tem aumentado. Anteriormente, a procura por assistência estava mais associada aos homens, porém essas diferenças têm diminuído nos últimos anos. Além disso, a dependência atinge todas as classes sociais, e algumas mulheres que nunca procuraram ajuda médica e/ou as que ingressaram em clínicas particulares de reabilitação estão escondidas dessa estatística1.
Em estudo realizado em Minas Gerais, por exemplo, foi observado um aumento de 79,5% no número de mulheres usuárias de crack que buscou tratamento para a dependência dessa droga e 76% no número de mulheres internadas em unidades do SUS por consumo de substâncias psicotrópicas, como crack e cocaína2.
As drogas de abuso são classificadas, quanto ao status legal das substâncias, de acordo com a sua comercialização, em lícitas e ilícitas. As drogas lícitas possuem permissão do Estado para serem comercializadas e consumidas, com ou sem receita médica, contendo substâncias psicoativas, cuja produção, comercialização e uso não são criminalizados. As drogas lícitas são representadas, principalmente, pelo álcool, tabaco, cafeína, plantas alucinógenas e por medicamentos psicoativos3.
Esta divisão, eminentemente legal, tornou-se cultural, e passa a ideia de que as drogas lícitas são seguras e as ilícitas perigosas. No entanto, o álcool e o tabaco são as substâncias que mais causam mortes passíveis de prevenção no mundo. Desse modo, não se trata de absolver, minimizar ou criminalizar as substâncias, todas trazem prejuízos que devem ser considerados, independentemente do status, de lícitas ou ilícitas3.
Atualmente, em diversos momentos da assistência pré-natal, é possível que o profissional de saúde detecte o consumo dessas substâncias durante a gestação. O diagnóstico precoce favorece a intervenção e cria possibilidades de acesso a serviços especializados de tratamento e alternativas de enfrentamento ao uso de drogas de abuso na gestação, evitando complicações maternas e neonatais4.
O uso habitual das drogas e o avanço da dependência podem levar as usuárias a desenvolverem atividades ilícitas e, inclusive, a uma gravidez não planejada e indesejável, além de outros problemas de saúde4.
Além de toda questão social envolvida, as gestantes usuárias de drogas constituem um problema para os serviços de saúde, pois realizam número menor de consultas no pré-natal e apresentam maior incidência de complicações clínicas e obstétricas5, gerando novos desafios médico-sociais para a relação uso de drogas e saúde materno-infantil.
Quando é ofertado suporte às gestantes que enfrentam essa situação, elas apresentam menor nível de estresse, ansiedade e depressão, além de manter uma perspectiva mais positiva em relação ao uso de drogas de abuso e visualizam a situação de forma mais realista5. No entanto, estudo realizado em Maringá-PR constatou que existem deficiências no acolhimento aos usuários de drogas, e que isto não é diferente com a gestante usuária6.
Estudo realizado na Flórida, nos EUA, com 392 enfermeiras, que atuavam em 10 unidades perinatais hospitalares, utilizando um questionário intitulado Attitudes About Drug Abuse in Pregnancy (AADAP), para avaliar atitudes frente ao uso de drogas na gravidez, concluiu que as enfermeiras demonstraram conhecimento limitado sobre a exposição às substâncias psicoativas, adição e seus efeitos colaterais, assim como, demonstraram atitudes mais punitivas e negativas do que positivas ou de suporte para mulheres que abusaram de substâncias durante o período perinatal7.
Contudo, ao reconhecer o contexto sociocultural no qual o indivíduo está inserido, pode-se identificar os fatores de risco que permeiam o uso disfuncional de drogas, passo fundamental, para a criação de estratégias de atuação das equipes de saúde junto à famílias e pessoas em situação vulnerável6.
Diante deste cenário, e do fato de existirem poucos estudos brasileiros relatando os contextos em que há continuidade do comportamento aditivo durante a gestação, torna-se relevante sensibilizar os enfermeiros e demais profissionais de saúde quanto à importância de uma assistência à saúde integral, humanizada e qualificada às mulheres grávidas, visando a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico e o tratamento precoce e a reinserção social3.
Dessa forma, o presente estudo teve como objetivo identificar a percepção e a prática de gestantes atendidas na Atenção Primária frente ao uso de drogas de abuso.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo descritivo exploratório de abordagem qualitativa. O estudo descritivo apresenta como propósito observar, descrever, explorar, classificar e interpretar aspectos de fatos ou fenômenos8. O estudo exploratório por sua vez possui a finalidade de esclarecer e proporcionar uma visão geral em dimensões mais ampliadas acerca de um determinado fato, buscando saber como o fenômeno se manifesta o que interfere nele e/ou como as variáveis se inter-relacionam8.
A partir da pesquisa qualitativa tenta-se compreender um problema na perspectiva dos sujeitos que o vivenciam em sua vida diária, sua satisfação, desapontamentos, surpresas e outras emoções, sentimentos e desejos e, também, na perspectiva do pesquisador.
Este estudo faz parte de um projeto maior intitulado: "Saúde mental no período gravídico puerperal", em que foi entrevistada uma amostra representativa da totalidade das gestantes assistidas nas 25 Unidades Básicas de Saúde de Maringá-PR. Esta amostra esteve constituída por 394 gestantes, das quais 72 referiram utilizar algum tipo de droga de abuso. Para o presente estudo foi contactada uma gestante de cada Unidade Básica de Saúde (UBS). Nos casos em que havia mais de uma gestante usuária de droga na UBS, foi realizado sorteio aleatório, simples de modo que as informantes são 25 gestantes usuárias de drogas, sendo uma de cada UBS.
O contato com as gestantes ocorreu por telefone, momento em que solicitamos novamente a participação no estudo. Após esse contato, foi agendado uma visita domiciliar para a realização da coleta de dados em julho de 2012, por meio de entrevista aberta guiada pela seguinte questão orientadora: "Fale sobre o uso de drogas de abuso durante a gestação". As entrevistas tiveram duração de 26 a 63 minutos, foram gravadas e, posteriormente, transcritas para maior fidedignidade dos dados.
A análise das falas baseou-se na técnica de análise de conteúdo do tipo temática, no sentido da compreensão das comunicações, do conteúdo manifesto ou latente, das manifestações explicitas ou ocultas, de acordo com as inferências do pesquisador9. Para o desenvolvimento dessa técnica foram seguidas suas fases operacionais fundada na constituição do corpus, leitura flutuante, exploração do material, composição das unidades de registro correspondente a unidade de significação (recorte das falas) que foram, posteriormente, classificadas para compor as categorias, sendo estas formadas pelo critério semântico, ou seja, os conteúdos com sentidos semelhantes foram agrupados, o que culminou com as categorias temáticas9. Os dados foram analisados, dando origem a duas categorias temáticas.
Em relação à questão ética, a pesquisa encontra-se de acordo com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que dita as normas e procedimentos de pesquisas envolvendo seres humanos e foi aprovada pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá - PR (Parecer no 448/2011). Todos os entrevistados assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido em duas vias.
Para resguardar o anonimato, as participantes estão identificadas com a letra G de gestante e dois números, o primeiro indicando a ordem de realização das entrevistas e o segundo a idade da informante, seguida por sua situação conjugal, número de filhos e a droga de abuso utilizada.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A idade das gestantes em estudo variou de 17 a 35 anos, mas se encontravam na faixa etária de 16 a 24 anos (60,0%). A média de idade foi 21,5 anos, porém oito casos engravidaram enquanto adolescentes. A gravidez, nessa fase, pode restringir a continuidade dos estudos e até mesmo das atividades profissionais, concorrendo para a manutenção de más condições socioeconômicas. As adolescentes que não conseguem completar os estudos, em função do uso de drogas, poderão ter como consequência vidas de depressão econômica, com risco aumentado de exposição à prostituição e à marginalidade em decorrência da drogadição4.
Dentre os marcadores e fatores de risco gestacionais, anteriores à gravidez, destaca-se a situação conjugal insegura3, no qual se pode observar, nesse estudo, já que mais da metade (56%) e apenas 20% eram casadas, como encontrado em outro estudos com gestantes usuárias de drogas5,10-14.
Quanto à escolaridade percebe-se que 76% tinham até sete anos de estudo, sendo que estas apresentavam atraso da escolaridade de acordo com a idade. Já em relação a situação ocupacional, 84% não tinham emprego. Esses dados corroboram com outros estudos realizados com gestantes usuárias de drogas em um município da região sul do país6 e no Rio de Janeiro10.
Em relação ao número de filhos, verificou-se que 11 delas tinham um ou dois filhos e 9 nenhum filho. Nesse estudo, a média foi de 1 gestação, diferindo de outros estudos realizados com gestantes usuárias de drogas, no qual a média foram 2 gestações6,10.
Em relação ao padrão de utilização das drogas de abuso, observou-se, conforme tabela 1, que a droga mais consumida foi o tabaco (28,0%), seguido do álcool (20%) e da maconha, múltiplas drogas (20%), padrão também encontrado em outros estudos6,10-14.
Variáveis n % | ||
Faixa etária (anos) | ||
16 a 19 | 8 | 32,0 |
20 a 24 | 7 | 28,0 |
25 a 29 | 7 | 28,0 |
≥ 30 | 3 | 12,0 |
Situação conjugal | ||
União estável | 6 | 24,0 |
Solteira | 14 | 56,0 |
Casada | 5 | 20,0 |
Escolaridade (anos estudados) | ||
Nenhum | 1 | 4,0 |
1 a 3 | 7 | 28,0 |
4 a 7 | 11 | 44,0 |
8 a 11 | 5 | 20,0 |
12 e + | 1 | 4,0 |
Situação ocupacional | ||
Do lar | 13 | 52,0 |
Desempregada | 8 | 32,0 |
Trabalho informal | 3 | 12,0 |
Estudante | 1 | 4,0 |
Número de filhos | ||
Nenhum | 9 | 36,0 |
1-2 | 10 | 40,0 |
3-4 | 5 | 20,0 |
5 ou + | 1 | 4,0 |
Tipo de substância | ||
Álcool | 5 | 20,0 |
Cocaína e derivados | 4 | 16,0 |
Maconha | 5 | 20,0 |
Tabaco | 7 | 28,0 |
Múltiplas drogas | 4 | 16,0 |
Após a caracterização seguem as duas categorias temáticas encontradas: Medo e culpa - Sentimentos que acompanham a gravidez de usuárias de drogas de abuso e Diferenciação no atendimento às gestantes usuárias de drogas.
Medo e culpa - Sentimentos que acompanham a gravidez de usuárias de drogas de abuso
As gestantes demonstraram, em seus relatos, que conhecem os malefícios que o uso das drogas pode ocasionar durante a gravidez. No entanto, revelam dificuldade de abandonar o vício justamente pela dependência que estas ocasionam. Assim, vivenciam um paradoxo, em que ao mesmo tempo sentem medo e culpa decorrente da possibilidade de agravos ao feto, e isto ocorre de forma mais contundente nos casos de dependência às drogas ilícitas.
Tenho muito medo de abortar de novo, porque já tive três abortos e sei que a culpa foi minha. Tentei parar de usar a cocaína, maconha, álcool e cigarro, mas é difícil, consegui largar apenas o cigarro e tentei diminuir a quantidade de cocaína e maconha. Mas a vontade é maior às vezes. (G1, solteira, 20 anos, nenhum filho - maconha, cocaína e álcool).
[...] já tentei parar quando tive meu primeiro filho, mas não consigo... é só sentir o cheiro que não resisto [...] (G10, solteira, 19 anos, um filho - maconha).
Toda vez que vou usar penso no que pode acontecer com meu filho [...] mas não consigo [...] passa no máximo um dia e eu fico incontrolável [...] (G3, solteira, 17 anos, um filho - maconha).
Cabe salientar, que existe dificuldade para identificar os efeitos do uso da maconha sobre o feto de forma precisa. Isso ocorre devido a alta prevalência de pacientes que a usam, concomitantemente, a outras drogas, incluindo álcool e cigarro11. Entretanto, foi comprovado o aumento do risco de diversas malformações dos fetos como anencefalia e gastrosquise em mulheres que fizeram uso de maconha durante a gestação, além de transtornos cognitivos, alterações na atenção, dificuldades de memorização e maior impulsividade11.
Já no caso da cocaína, esta pode afetar os sistemas cardíaco e vascular da mulher e do feto, além de provocar abortos espontâneos12. Além disso, já foi identificado que a exposição fetal à cocaína está associada com disfunção cognitiva tardia, incluindo comprometimento da atenção, aprendizado, função executiva e linguagem12.
Os sentimentos de medo relacionados com a saúde do bebê e culpa antecipada, ante a possibilidade de qualquer intercorrência também podem estar presentes nas gestantes que fazem uso de drogas lícitas, como o álcool e o cigarro.
Tentei parar de fumar quando descobri que tava grávida, mas não consegui. Tento fumar uns três cigarros por dia só, porque falaram que a criança nasce com pouco peso [...] eu tenho medo de prejudicar a saúde do meu filho [...] (G2, 35 anos, casada, três filhos - tabaco).
Já tentei parar de beber... mas não consigo [...] fico presa em casa [...] mas não pode ter nada [...] vidro de álcool, combustível e nem perfume [...] porque eu já cheguei a beber no momento de que perco o controle [...] (G13, 26 anos, solteira, nenhum filho - álcool).
Nossa como é difícil parar de fumar [...] fico muito nervosa, ansiosa e agressiva [...] faço de tudo pra não fumar, ando, vou nas lojas, não tomo mais café [...] mas passa um ou dois dias eu não resisto [...] mesmo me preocupando com meu filho [...] fico com a consciência pesada. (G6, solteira, 18 anos, nenhum filho - tabaco).
O consumo de bebidas alcoólicas constitui um importante problema de saúde pública mundial, especialmente porque seu início tem ocorrido cada vez mais precocemente e, além disso, o número de mulheres tem crescido vertiginosamente. Na gestação, a ingestão alcoólica pode levar ao comprometimento, tanto da saúde materna quanto do feto, caracterizado por abortamento, descolamento prematuro da placenta, hipertonia uterina, trabalho de parto prematuro e aumento do risco de infecções13.
Em relação ao feto, por exemplo, o consumo de bebida alcoólica, tem sido associado à deficiência de crescimento pré e pós-natal, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, microcefalia, disfunção motora fina e dimorfismo facial, além de fenda palatina e anomalias cardíacas13. O efeito tardio se manifesta por mudanças na capacidade intelectual, de aprendizagem, atenção e comportamento13.
O fumo ou mesmo a exposição à fumaça de tabaco, por sua vez, é associada ao risco aumentado de aborto espontâneo, baixo peso ao nascer, prematuridade, morte perinatal, síndrome da morte súbita do lactente, problemas cognitivos e de crescimento e desenvolvimento14, câncer infantil, doenças respiratórias e alérgicas com sintomatologia nos primeiros anos de vida15,16.
A despeito de todos estes possíveis agravos, as mulheres, assim como ocorre com os usuários em geral, apresentam também grande dificuldade em abandonar o uso de drogas de abuso, sejam elas lícitas ou ilícitas, conforme já identificado em outros estudos realizados com gestantes6,10.
Ademais, a crença de que a substância não causa danos ao feto, muitas vezes é reforçada por experiência em gravidez anterior, o que acaba interferindo no abandono da droga. Por exemplo, dentre as mulheres em estudo, três delas relataram que o uso de drogas de abuso em gestação anterior não acarretou nenhum problema ao feto, o que de certo modo as isentam de culpa. Porém, é possível constatar que por falta de informação ou descrença, elas não levam em conta a possibilidade de consequências psicossociais e de longo prazo na vida da criança.
Já tomei álcool na gravidez passada [...] não deu problema não [...] meu filho nasceu perfeitinho [...] daí eu to tomando nessa também [...] mas só de fim de semana né?! isso aí que falam que beber grávida o filho nasce com problema é mentira hein [...] (G8, 26 anos, casada, cinco filhos - álcool).
Fumei crack a gravidez anterior inteira [...] o bebê nasceu perfeito [...] tinha duas perninhas, dois bracinhos [...] nasceu antes de 9 meses e com peso um pouco baixo [...] mas ele tá normal [...] ao menos foram que me disseram [...] porque ele mora com minha tia e continuo usando nessa [...] não vai ter problemas [...] (G9, 31 anos, casada, um filho - crack).
Fumei cigarro a gravidez inteira [...] nunca tive problemas [...] as crianças tão tudo aqui com saúde. [...] então continuo fumando [...] fui no grupo de gestante [...] falaram pra eu parar, mas eu falei que não aconteceu nada com as outras crianças [...] não seria com essa que ia acontecer né [...] (G14, 24 anos, solteira, dois filhos - cigarro).
Olha não vou mentir [...] eu uso maconha sim, desde meu primeiro filho... já to no quarto [...] nenhum teve problema mental não, tão tudo bom [...] pra mim ficar "embuchada" não é doença não, então continuo usando uns três cigarrinhos por dia tá bom. (G11, 21 anos, solteira, três filhos - maconha e álcool).
Complicações tardias, como problemas cognitivos e psicossociais decorrente do uso de drogas poderão aparecer ao longo da vida da criança10-14, que também pode apresentar maior probabilidade de desenvolver transtornos mentais15.
Na mesma direção das mulheres que alegam que o uso de drogas durante a gestação não acarreta problemas para a criança, porque fez este uso em ocasião anterior e o filho não nasceu com problemas, existem aquelas que lançam mão de mecanismos de fuga alegando que gravidez não é doença e que por consequência podem utilizar drogas de abuso durante a gestação.
Além de outras pessoas ficarem apontando pra mim [...] porque tô grávida né? [...] tem a história que mulher barriguda não pode beber nada [...] não concordo com isso não [...] as pessoas falam que gravidez não é doença [...] (G15, 29 anos, casada, três filhos - álcool).
Nossa, a hora que falam pra eu largar da maconha porque tô grávida, eu só viro e respondo não tô doente, só tô grávida e a maconha faz bem pra saúde [...]trata doente [...] eu vi na TV. (G4, 25 anos, solteira, nenhum filho - maconha).
Olha não é por nada não, mas eu acho que a gravidez é só um estado normal da mulher [...] fazer o uso da droga não vai fazer com que a criança nasça com problema [...] tanta gente bebe, fuma e não tem doença [...] (G18, 18 anos, solteira, um filho - álcool e cigarro).
Diferenciação no atendimento às gestantes usuárias de drogas
Na contramão do que foi apresentado até o momento, algumas gestantes sente-se constrangidas em revelar sua dependência para os profissionais de saúde da atenção primária, o que pode contribuir para que elas não tenham acesso a maiores informações, referentes à possibilidade de complicações obstétricas e de problemas cognitivos na criança em longo prazo, como decorrência do uso de drogas. Observa-se em seus relatos, que essas mulheres sentem medo de serem julgadas pelos profissionais, em função do uso de drogas.
Sinto medo de contar que uso maconha para minha família e para os profissionais do posto [...] porque eu vou ter que vir aqui até ganhar bebê [...] se eu falar isso, eles vão ficar falando, todo mundo vai ficar sabendo [...] e o povo do posto não gosta de gente drogada não [...] (G7, 17 anos, união estável, nenhum filho - maconha).
Nunca comentei com ninguém do posto [...] não sou besta [...] acho que se eu falasse, o povo do posto não ia me atender não, além disso, vou levar tanto sermão [...] (G15, 29 anos, casada, três filhos - álcool).
Olha na gravidez anterior eu não falei com ninguém do posto sobre o crack [...]e meu filho nasceu morto [...] dessa vez eu penso em contar, mas tenho medo de não me ajudarem e apenas ouvir o que devo ou não fazer [...] (G20, 20 anos, união estável, um filho - crack).
Os cuidados à gestantes dependentes de álcool e outras drogas é complexo e exige competências técnicas e psicossociais dos profissionais de saúde. A principal barreira no acompanhamento das mulheres dependentes é o preconceito e, quando estão grávidas, esse preconceito se multiplica, por isso elas tendem em não relatar o consumo de drogas durante a gestação16.
Entretanto, pode-se observar que, em geral, as mulheres que usavam drogas lícitas, como o cigarro, não apresentavam medo de relatar este fato aos profissionais de saúde.
Nossa eu fui apoiada quando falei que fumava tinha um grupo de tabagismo ótimo que me ajudou a parar [...] foi muito legal [...] (G23, 33 anos, casada, dois filhos - cigarro).
Na hora que falei que era dependente do álcool eles me orientaram a continuar indo no posto e procurar ajuda no CAPSad [...] me ajudaram bastante no posto [...] (G24, 26 anos, solteira, dois filhos - álcool).
Também foi evidenciada a existência de tratamento diferenciado, conforme o tipo de droga utilizada, sendo que as gestantes usuárias de drogas lícitas referiram se sentir apoiadas e estimuladas a buscar estratégias para enfrentar o vício, enquanto as usuárias de drogas ilícitas, além de se sentirem discriminadas, referiram que não foram apoiadas.
Na hora que falei que usava cigarro não aconteceu nada [...] o pessoal do posto me colocou no grupo pra parar de fumar [...] orientaram pra eu tentar diminuir o número de cigarros e só [...] mas quando falei que usava a cocaína [...] o pessoal do posto mudou do nada [...] foram agressivos [...] me julgaram falando pra eu parar que eu ia matar o bebê [...] que eu era sem noção [...] fiquei muito triste [...] já ouvi o pessoal do posto falando lá vem a grávida drogadita [...] eu tava tentando parar [...] (G16, 26 anos, união estável, nenhum filho - cigarro e cocaína).
[...] na primeira consulta eu falei que fumava e pedi ajuda as mulheres lá do posto [...] daí fiz acompanhamento com elas [...] e fui diminuindo pouco a pouco o número de cigarro [...] fumava uns 03 no máximo por dia [...] (G17, 21 anos, união estável, um filho - cigarro).
Observa-se nos quatro relatos que o período gestacional, por si só, já constitui estímulo para as mulheres tentarem abandonar o uso de drogas lícitas e ilícitas, como já identificado em estudo realizado com multíparas usuárias de crack em município da região sul6 e com gestantes usuárias de álcool e tabaco no Rio Grande do Sul17.
Os modos como a sociedade julgam os usuários de drogas faz surgir sentimentos que, às vezes, impede as gestantes usuárias de admitirem o problema, tendo como consequência, a não procura por ajuda ou procura tardia nos serviços de saúde6,7,10-14. Assim, um acompanhamento sistemático e integral durante o período gestacional é indispensável, pois pode ajudar as mulheres a esclarecerem suas dúvidas a respeito da sua gestação, identificar precocemente intercorrências gestacionais e inclusive a necessidade de uma intervenção diferenciada para os casos de uso de drogas.
Por fim, outro grave problema evidenciado foi o fato das mulheres revelarem que os profissionais de saúde, de forma geral, não abordam questões relacionadas com o uso de drogas - lícitas ou ilícitas durante o acompanhamento pré-natal.
Eles nem perguntam pra gente se usa droga, que remédio toma [...] só olha a barriga e falou pra tomar vitamina [...] (G7, 17 anos, união estável, nenhum filho - maconha).
Nunca me perguntaram se eu usava droga [...] Perguntavam da alimentação [...] de preparar o peito para amamentar [...] se tinha contração [...] (G5, 19 anos, solteira, nenhum filho - crack).
Viu eles olham a minha pressão, olha se tô inchada e pergunta se eu tive algum problema, daí passo pela enfermeira pra marcar a consulta do mês que vem, nem sei o que o cigarro faz durante a gestação [...] (G12, 18 anos, solteira, nenhum filho - tabaco).
Entretanto, há mulheres que relataram que eles abordam essas questões relacionadas ao uso de drogas, mas de forma bem simples e superficiais, alegando que as orientações sobre o que pode acontecer com a gestante e com o feto são insuficientes.
Só me disseram que eu não posso usar nada durante a gestação, nem drogas, nem remédios, nem plantas [...] porque tudo interfere em mim e na criança, me mandaram cortar o cigarro, mas eu nem sei o que faz o cigarro em mim e no meu filho [...]. (G21, 17 anos, solteira, um filho - tabaco).
Além disso, outra falha no acompanhamento pré-natal apontada foi a falta de continuidade no atendimento ou um direcionamento inadequado para outro serviço de saúde, depois que relataram que usavam drogas.
Bom depois que revelei que usava crack... o povo do posto não sabia pra onde me mandar [...] falavam pra eu ir nos usuários de drogas anônimos ou procurar um tal de CAPSON [...] nem fui [...] eles não informam as coisas direito, não entendi nada. (G22, 21 anos, união estável, 3 filhos - crack).
Eu fui mandada lá no CAPS álcool [...] depois eu voltei pra consultar no posto e perguntei se eles conheciam essas casas de ajuda pra mulheres né... eles não sabiam não [...] acabei sabendo pelo povo na rua [...] (G25, 24 anos, solteira, 4 filhos - álcool).
Este tipo de comportamento nos leva a inferir que a equipe de saúde não está devidamente preparada, para lidar com a situação ou até mesmo a existência de descaso com esta problemática caracterizada pela não valorização de seus efeitos para a gestante e o feto. É importante que todas as gestações de usuárias de drogas sejam consideradas de alto risco e que todas as medidas possíveis para tentar afastar as mulheres dessa prática sejam adotadas, inclusive com apoio de equipe multidisciplinar10-18 e intersetorial.
O enfermeiro, como integrante da equipe de saúde e como coordenador da equipe de enfermagem, está qualificado para realização do acolhimento das gestantes usuárias de drogas de abuso e deve preparar a equipe de enfermagem e os agentes comunitários de saúde para o enfrentamento deste fenômeno na comunidade, visando à promoção da assistência à saúde e à redução de danos5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista os objetivos do estudo, percebeu-se sob a ótica das gestantes, que as informações sobre drogas de abuso oferecidas pelos profissionais de saúde da atenção primária durante a assistência pré-natal são insuficientes. Ainda, segundo relatos das usuárias de drogas ilícitas, além de se sentirem julgadas, não receberam apoio e nem acompanhamento adequado para o enfrentamento do problema.
Assim, faz-se necessário sensibilizar os profissionais de saúde, inclusive os de enfermagem que realizam as consultas de pré-natal sobre a importância de esclarecer e orientar as gestantes sobre o uso de drogas de abuso, de modo a sensibilizá-las sobre a importância de interromper o uso, durante a gravidez, e ao mesmo tempo ajudá-las nessa empreitada.
Porém, para que isto ocorra, faz-se necessário que os profissionais sejam devidamente preparados para essa abordagem. Além disso, também são necessários investimentos governamentais, para incentivar o desenvolvimento de pesquisas nessa área de modo a melhor subsidiar a atuação dos profissionais de saúde junto às gestantes usuárias de drogas.
Acredita-se que a detecção precoce desse evento pelos profissionais de saúde da atenção primária, permitirá que as mulheres sejam acolhidas precocemente e isso poderá favorecer a adesão e o tratamento da dependência química, minimizando as complicações clínicas e obstétricas, além de promover a redução de danos e melhor qualidade de vida para a mãe e o filho.
Por fim, é importante ressaltar que durante o estudo pode ter havido viés de aferição, uma vez que a utilização de entrevista como instrumento de coleta de dados está sujeita a lapsos da memória, a confusão ou mesmo ao constrangimento por parte das mulheres entrevistadas em relatar aspectos de sua vida.
REFERÊNCIAS