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CAPES

Volume 4, Número 2, Mai/Ago - 2000

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Liberdade e compromisso ético do enfermeiro frente às situações de risco de contaminação1

 

Liberty and commitment: nurse's ethical behaviour in situations of contamination risk

 

Libertad y compromiso en la actuación ética del enfermero frente a situaciones de riesgo de contaminación

 

 

Antonio José de Almeida FilhoI; Jussara SauthierII

IProfessor Auxiliar do Departamento de Enfermagem Fundamental - EEAN/UFRJ. Mestre em Enfermagem - EEAN/UFRJ. Membro do Núcleo de Fundamentos do Cuidado de Enfermagem (Nuclearte)
IIProfessora Adjunta do Departamento de Enfermagem Fundamental - EEAN/UFRJ; membro do Núcleo de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras)

 

 


RESUMO

O estudo tem como objeto a relação entre a liberdade individual e o compromisso do enfermeiro com o cliente, frente às situações de risco de contaminação, e está baseado nos conceitos teóricos de liberdade e compromisso. Com abordagem qualitativa, dele participaram 13 enfermeiros de um hospital geral. Para a coleta de informações, foi utilizada a entrevista semi-estruturada e observação assistemática. Os achados revelaram que os enfermeiros priorizam a assistência ao cliente em detrimento da própria segurança pessoal, desde que caracterizada uma situação de emergência. Verificou-se que o enfermeiro é capaz de interferir na estrutura do serviço de saúde, quando comprometido com a profissão, com a instituição, com o cliente e com a sua consciência moral.

Palavras-chave: Ética de enfermagem - Riscos ocupacionais - Contaminação


ABSTRACT

The object of this study is the relationship between nurse's individual liberty and commitment to the client when faced with the risk of contamination. The study is based on the theoretical concepts of liberty and commitment. This qualitative study had the participation of thirteen nurses who work at a public hospital. A semi-structured interview and a non-systematic observation were used for data collection. Findings revealed that nurses give priority to client's assistance over their own personal and professional security, whenever an emergency situation occurs. There was evidence that nurses are able to interfere in the health service structure whenever they are committed to their work in society, to their career, to the institution where they work, to the client and, finally, to their moral conscience.

Keywords: Nursing ethics - Working risks - Contamination


RESUMEN

Constituye objeto del presente estudio la relación entre la libertad individual y el compromiso del enfermero con el cliente frente a situaciones de riesgo de contaminación. El estudio está basado en los conceptos teóricos de libertad y compromiso. Se trata de un estudio con abordaje cualitativo, que contó con la participación de trece enfermeros de un hospital general público. Se utilizó la entrevista semiestructurada y la observación no sistemática para la recolección de informaciones. Los hallazgos revelaron que los enfermeros tienden a dar prioridad a la asistencia al cliente, en detrimento de su propia seguridad personal y profesional, siempre que se caracterize una situación de emergencia. Se verificó que el enfermero es capaz de interferir en la estructura del servicio de salud, cuando esté comprometido con su trabajo en la sociedad, con la profesión, con la institución, con el cliente y, por fin, con su conciencia moral.

Palabras claves: Ética de enfermería - Riesgos ocupacionales - Contaminación


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Pela experiência acumulada ao longo da minha atuação profissional, sempre em instituições públicas, pude perceber a importância da relação entre a liberdade e o compromisso no exercício das funções do enfermeiro, em virtude das diversas questões éticas surgidas quotidianamente. Tais questões, ao que parece, têm vinculação com atitudes decorrentes das características da personalidade do enfermeiro, e da sua maneira de ver o mundo, como a capacidade de crítica e contestação frente a uma dada realidade, fruto do desenvolvimento de uma consciência política e moral, no contexto em que o profissional está inserido.

Dentre as situações vividas no cenário hospitalar, cumpre enfatizar aquelas próprias aos setores de emergência, onde se agudizam os problemas relativos à prática dos cuidados, que são agravados pela decadência dos serviços públicos de saúde, e com isso colaborando para um temor maior em relação ao risco de contaminação pelo Human Imunodeficience Virus (HIV). Alguns dados epidemiológicos fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), no período de janeiro de 1997 a agosto de 1998, justificam tal preocupação.

Diante deste contexto, no qual se desenvolve a prática profissional, sustento a idéia de que o enfermeiro apresenta uma conduta ambivalente frente à situação de risco de contaminação pelo HIV, ora priorizando a sua auto-proteção e, portanto, secundarizando a assistência de enfermagem ao cliente, ora valorizando os cuidados de enfermagem ao cliente, em detrimento das normas de biossegurança, e com isso negligenciando a sua própria segurança.

Segundo Vidal (1979, p.310), para se compreender a relação entre a liberdade e o compromisso, faz-se necessário considerar os nossos limites em relação a nós mesmos, e ao mundo, porém, é inaceitável uma ética sustentada na pura necessidade e fragilidade humanas, desprezando a existência da liberdade como elo contínuo de responsabilização, onde o homem é capaz de realizar-se, bem como de promover a realização do mundo. Negar tal responsabilidade seria negar o próprio compromisso com a possibilidade de transformação, ou seja, seria tornar-se um mero agente passivo de uma condição determinada.

Escolhi como objeto para o presente estudo a relação entre a liberdade individual e o compromisso do enfermeiro com o cliente, frente às situações de risco de contaminação.

O enfoque deste estudo está nos aspectos éticos, o que se justifica pela percepção de que, subjacentes às situações de conflitos anteriormente referidas, encontra-se um contexto de políticas neoliberais. Tais políticas por se afinarem, como expõe Soares (1997, p.15), com um ideário econômico e político-ortodoxo, retoma antigas idéias monetaristas e liberais, objetivando, entre outros, o corte linear do gasto público, principalmente o destinado à área social, e atingem, desta forma, os serviços públicos de saúde.

Apresento como objetivos deste estudo: descrever a conduta dos enfermeiros, no setor de emergência, frente ao risco de contaminação pelo HIV; analisar as implicações éticas da conduta dos enfermeiros frente às situações de risco de contaminação pelo HIV; e discutir a relação entre liberdade e compromisso com o cliente na conduta dos enfermeiros, no setor de emergência, frente aos riscos de contaminação pelo HIV.

Quanto à metodologia, o presente estudo é de natureza descritiva, caracterizado por uma abordagem qualitativa. Como cenário, foram utilizadas as diferentes salas do setor de emergência de um hospital geral de grande porte, caracterizado por oferecer atendimentos emergenciais, sob a administração da rede pública da Cidade do Rio de Janeiro. Os sujeitos da presente pesquisa foram 13 enfermeiros que atuavam no setor de emergência do referido hospital.

A coleta de informações foi realizada por meio de observação assistemática e entrevista individual, momento em que também se fez o seu registro, tanto por gravação quanto por anotações escritas. O principal instrumento dessa coleta foi constituído por um roteiro semi-estruturado, originando a formação de duas unidades de análises.

 

A REALIDADE DURA E CRUEL NA PRÁTICA DA ENFERMAGEM

Esta realidade, retratada pelos depoentes, demonstra as dificuldades vividas por esses enfermeiros na sua trajetória profissional. O empenho para a realização de uma assistência de qualidade, diante das dificuldades quotidianas e peculiares à prática destes profissionais, que, assistindo os clientes em situações de risco, se vêem muitas vezes expostos ao risco de contaminação em decorrência de acidentes, ou principalmente devido à atitude profissional sustentada pela grande maioria dos enfermeiros entrevistados.

Os materiais, bem como os equipamentos de proteção individual, necessários para a prevenção de acidentes ocupacionais, que podem levar à contaminação pelo HIV, por exemplo, são, por vezes, insuficientes ou até mesmo inexistentes, refletindo, portanto, uma insegurança para os enfermeiros e demais profissionais de enfermagem, que atuam no setor de emergência. Esta escassez é percebida e resulta na manifestação da sociedade que crescentemente reivindica o direito a um serviço público de saúde, que atenda às suas necessidades.

Além da falta de recursos materiais e de equipamentos de proteção individual, ou a sua má distribuição por turnos, a enfermagem se depara com um somatório de insatisfações por parte do cliente: demora para o atendimento por parte dos médicos ou ausência destes no setor.

As condições de trabalho não foram analisadas apenas quanto aos aspectos materiais e equipamentos de proteção individual, mas também, no que se refere aos recursos humanos, visto que serão os prestadores diretos da assistência de enfermagem aos clientes, que se encontram fragilizados e, algumas vezes, em risco de vida, principalmente no cenário desta pesquisa, o setor de emergência.

Inúmeros são os fatores que contribuem para a construção desta realidade, no ambiente de trabalho. Assumem grande relevância as condições nas quais o enfermeiro desenvolve suas atividades profissionais, posto que é este um dos prestadores diretos dos cuidados de enfermagem aos clientes, no setor de emergência. Tal importância, apresenta estreita relação tanto com a instituição prestadora do serviço de saúde quanto com o próprio profissional de enfermagem e com o cliente.

As situações reveladas nos depoimentos referem-se à relação estabelecida entre a liberdade e o compromisso assumidos pela instituição, enquanto prestadora do serviço de saúde.

Na confecção da escala de serviço o caráter punitivo, implícito nessa decisão, foi constatado:

"...Aqui existe uma imposição e punição para os enfermeiros que estão lotados na enfermaria. Desta forma, o profissional que não está atuando adequadamente nas enfermarias é punido, e quando ele é punido passa a ser lotado na emergência. Com isso o rendimento desse profissional é deficiente. Afinal ele não gosta do setor e não conhece o serviço..." (Enf.13)

A falta de identificação com o setor colabora para um distanciamento na relação enfermeiro-cliente, provocando sofrimento para ambas as partes.

No depoimento apresentado, o procedimento referente à lotação de profissionais, como forma de punição pela sua atuação insatisfatória em outros setores, não se justifica e nem funciona; em um setor onde a habilidade e o conhecimento técnico-científico podem determinar a sobrevida de uma pessoa levando ao questionamento de quem está de fato sendo punido: o profissional, o cliente ou a instituição?

Ao analisar esta questão, aponto para o fato de que a liberdade na elaboração da escala de serviço de enfermagem não pode ocorrer de forma egoísta ou individualista, pois tal atribuição possui uma dimensão social, cujo reflexo se fará, em última instância, no cliente.

Desta forma, Camargo (1999, p. 55) destaca o caráter social da liberdade e acrescenta a impossibilidade desta ocorrer "fora da comunidade dos homens". Para o autor, a liberdade e o direito de uma pessoa não terminam com o começo da liberdade ou do direito da outra, e afirma:

"...este não é o limite da minha liberdade, mas condição para atingí-la, pois ela tem por base a cooperação, a reciprocidade, o desenvolvimento da responsabilidade e do compromisso; é a superação do liberalismo, que é essencialmente individualista."

Assim, entendo que a liberdade de ação exige a consciência do enfermeiro quanto a seus reflexos, em virtude de sua abrangência social, caracterizando, assim, o compromisso profissional.

Destaco, como importante fator de contribuição para a assistência, a afinidade do enfermeiro com o setor de emergência, porém, a falta de vagas em outros setores também definiu a construção das escalas de serviço de enfermagem.

Uma pequena parte dos profissionais lotados neste setor não demonstra afinidade, e até repudia o setor de emergência, contribuindo, com isso, para a dura realidade vivida pela enfermagem.

Foi possível observar a presença de enfermeiro neste setor de emergência, porém, a quantidade é insuficiente para o desenvolvimento das atividades de enfermagem exigidas num setor tão específico como esse. Apesar das inúmeras queixas referentes a esta insuficiência, identifiquei através de observação assistemática a existência de um sistema de premiação, representado por folgas extras, entendida pelos profissionais deste setor como um estímulo à assiduidade e à qualidade da assistência prestada, numa frontal contradição à necessidade do serviço.

Neste sentido, temos duas observações: uma diz respeito ao quantitativo de enfermeiros que de fato é insuficiente, pois pude presenciar que em um plantão, estavam presentes apenas dois enfermeiros. Considerando que o setor de emergência desse hospital possui dois andares, teríamos um enfermeiro para cada andar. Entendendo que em um setor de emergência a admissão de clientes graves é uma constante, impossibilitando, desta forma, uma prioridade entre as salas deste setor, pode-se supor que a assistência de enfermagem apresentava comprometimento em sua qualidade, fato este ratificado em alguns depoimentos.

A análise referente ao quantitativo de enfermeiros permitiu detectar uma insuficiência2 para o desenvolvimento da assistência de enfermagem, impossibilitando o pleno cumprimento da lei do exercício profissional que assegura ao enfermeiro "os cuidados diretos de enfermagem a pacientes graves, com risco de vida; além dos cuidados de maior complexidade técnica e que exijam conhecimento de base científica e capacidade de tomar decisões imediatas".

Outra questão é o fato de os profissionais de enfermagem, especificamente, necessitarem de uma folga extra como estímulo ao desenvolvimento de suas atividades com probidade e assiduidade, levando ao questionamento de tal medida, uma vez que os depoimentos dos enfermeiros apontaram para uma conduta "de compromisso" com o cliente, visando a sua integridade bio-psico-social.

Paradoxalmente, temos os relatos de insuficiência de pessoal de enfermagem, associado ao consentimento de folgas extras, o que contribui ainda mais para esta deficiência. Este fato tem como agravante o que consta dos próprios depoimentos sobre a redução do número de profissionais de enfermagem neste setor de emergência, o que reflete diretamente na queda de qualidade da assistência de enfermagem prestada ao cliente.

Tal procedimento colide com o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, que, ao tratar dos princípios fundamentais, apresenta em seu Art.2º "o profissional de enfermagem participa, como integrante da sociedade, das ações que visem satisfazer às necessidades de saúde da população". Além disso, em seu Art. 65, é proibido ao enfermeiro "receber vantagens de instituição, empresa ou de cliente, além do que lhe é devido, como forma de garantir assistência de enfermagem diferenciada ou benefícios de qualquer natureza para si ou para outrem".

Assim, identifiquei a escassez de enfermeiros como um fator determinante da qualidade da assistência de enfermagem, porém, foi percebida uma discrepância na conduta da equipe de enfermagem, quando se apropria de folgas extras, contribuindo desta forma para o agravamento da condição de trabalho, levando ao questionamento quanto ao compromisso destes profissionais, frente à realidade que lhes é imposta: quantitativo insuficiente de enfermeiros.

 

A CONDUTA DO ENFERMEIRO FRENTE A SITUAÇÕES DE RISCO DE CONTAMINAÇÃO

Nesta unidade, discuto a priorização do outro expressa na conduta do enfermeiro frente às situações de risco de contaminação, bem como as estratégias para superação de limites na prática assistencial. A expressão do desejo de transformação, presente no discurso dos sujeitos desse estudo, é analisada considerando-se a relação dialética entre determinismos e indeterminismos, numa postura humana, sem perder de vista as convergências e divergências de uma mesma realidade.

A priorização do outro, em detrimento da própria segurança pessoal do profissional, evidenciou que a maioria dos enfermeiros atribui grande valor à vida do cliente, considerando o bem maior a ser preservado, principalmente quando se trata de criança, em que o emocional se sobrepõe ao racional.

Na conduta profissional do enfermeiro, a condição para manter a prioridade ao cliente, em detrimento da adoção de estratégias de prevenção de contaminação pelo H.I.V. e outros agentes, foi condicionada à situação de emergência, com risco de vida para o cliente.

Na ótica do profissional, a prioridade se deve a uma consciência preliminar de que, ao defrontar-se com um cliente com risco de vida, este merece prioridade, apesar da falta ou escassez de material e equipamento de proteção individual, justificando que outra atitude implicaria em uma decisão ética duvidosa.

Percebi nos depoimentos obtidos um grande valor atribuído à vida do cliente. Dois aspectos merecem destaque: o primeiro se refere ao valor em si e o segundo está relacionado à vida, valor máximo do ser humano.

O valor, segundo Vázquez (op. cit., p. 115), pode ser analisado a partir da necessidade de que todo ato moral exige a escolha entre vários atos possíveis. Neste sentido, realiza-se uma determinada opção, avaliando-se suas conseqüências em relação às demais alternativas. É possível dizer que preferimos um determinado ato moral porque nos parece um comportamento mais digno, mais elevado moralmente ou, de forma sucinta, mais valioso.

Assim, entendemos que escolher supõe a preferência pelo mais valioso ao menos valioso moralmente ou ao que constitui uma negação de valor desse gênero, ou seja, um valor moral negativo.

Numa análise referente à questão da vida, seria mais difícil se a fizéssemos isolando-a da morte; neste sentido abordarei ambas. Pois, para nós, seres humanos, a vida e a morte são mais que simples aspectos biológicos, são acontecimentos simbólicos, significações, possuem e fazem sentido (Chauí, 1995, p.365).

Devido a todas estas significações, a vida adquire um valor expressivo diante da nossa sociedade; afinal a interrupção da vida, como já vimos, é mais que um interromper de processo biológico, é também a finalização de uma série de sentidos e o início de outros. Devemos acrescentar ainda que a vida é tida enquanto valor maior, pois sem esta nenhum outro valor se justificaria, ou seria possível.

Analisando o valor atribuído à vida do cliente, enquanto prioridade de opção da maioria dos enfermeiros, fica evidenciado que, a despeito da realidade dura e cruel já apresentada, esses enfermeiros utilizam estratégias e acreditam na capacidade de transformação do que lhes é determinado, como 'dado prévio', em 'dado de libertação' como expõe VIDAL (op. cit., p.310), caracterizando, dessa forma, uma conduta de compromisso com o cliente.

O altruísmo se evidencia no intenso valor dado à vida do cliente, a ponto de por em risco a própria vida. Também é percebida a relação com Deus e sua invocação, na associação da atividade de enfermagem enquanto sacerdócio, acrescentando um caráter religioso à visão de mundo do enfermeiro, conforme o relato a seguir, no qual a abnegação justificaria a prioridade ao cliente.

"...a maioria ainda prioriza o paciente, graças a Deus..."
(Enf. 04)

Passos (1995, p.85 - 90) descreve a influência histórica da religiosidade cristã na enfermagem e, conseqüentemente, na conduta destes profissionais, tendo esta forte tradição reflexo na postura de alguns enfermeiros, mesmo que de forma menos intensa.

Acredito que esta postura, sustentada numa visão religiosa, favoreça um conformismo diante das dificuldades enfrentadas no cotidiano profissional, em invés de exigir do enfermeiro uma visão crítica da realidade que permeia os vários setores da administração pública, especificamente o de saúde.

Como foi possível constatar, o enfermeiro desenvolve a assistência ao cliente, priorizando a manutenção da vida deste último, em determinadas condições. Esse fato é observável nas situações em que o cliente é admitido no setor de emergência, com um quadro agudo, com risco de vida. Após estabilizado este quadro, o enfermeiro conseguia agir de forma mais racional, privilegiando as medidas de prevenção de acidentes, através das normas de biossegurança, reduzindo a possibilidade de contaminação pelo HIV, entre outras.

Embora esta seja uma conduta presente no depoimento da quase totalidade dos sujeitos entrevistados, houve um depoente que relatou outra situação, na qual não nega as condutas dos profissionais já descritas, porém, afirma que este comportamento, não é uma unanimidade, ou seja, alguns enfermeiros não se envolvem com a gravidade dos pacientes, e por vezes justificam esta situação como determinante na desmotivação de investir esforços no sentido de reverter o comprometimento existente.

Para analisar este depoimento, busco apoio em Barchinfontaine et al. (1987,p.179) quando comentam a Declaração de Sidney3: "A determinação do estado de morte de uma pessoa permite, do ponto de vista ético, suspender as tentativas de ressuscitação...", ou seja, apenas diante de uma situação caracterizada como morte, o fim dos esforços para o estabelecimento da condição de saúde, e portanto de vida, é aceitável. Cabe destacar que a referida Declaração explicita a determinação do momento da morte, na maioria dos países, como uma responsabilidade do médico, podendo, geralmente sem ajuda especial, determinar a morte de uma pessoa utilizando os critérios clássicos conhecidos por esses profissionais: parada cardíaca e parada irreversível da atividade cerebral.

Assim, a conduta profissional em desprezar a possibilidade de recuperação de uma pessoa sob o argumento de que esta "vai morrer mesmo" não possui fundamento ético, além do que estas atitudes são inconsistentes do ponto de vista científico, prevalecendo o simples fato de este profissional acreditar em seu próprio argumento.

A atuação do enfermeiro no setor de emergência exige algumas estratégias para o desenvolvimento de suas atividades diante da insuficiência ou falta de materiais e E.P.I., principalmente quando se tem um aumento significativo da demanda de clientes. Fato que se agrava pela dificuldade de encaminhar parte desta população assistida a suas residências, pois muitos não possuem moradia fixa, ou são abandonados por seus familiares, sem condição de serem contactados, transformando, assim, alguns leitos do setor de emergência em hospedarias ou albergues.

Para superar a falta de material, uma das estratégias adotadas pelo enfermeiro é o armazenamento de materiais de um plantão para o outro.

"Eu guardo algumas luvas que sobram de um plantão para o outro. Quando a nossa cota acaba, não temos mais direito a luvas..." (Enf. 12)

Castilho e Leite (1991, p.77 - 78) afirmam que a gerência dos materiais nas unidades de enfermagem envolve as funções de previsão, provisão, organização e controle. Para se obter um quantitativo satisfatório de material numa unidade, ou seja, sem falta ou excesso para o desempenho das atividades de enfermagem, faz-se necessário um levantamento das necessidades da unidade de enfermagem, no qual se deve identificar a quantidade e a especificidade de materiais, objetivando o seu suprimento.

Alguns dos fatores importantes para a realização de um diagnóstico situacional da unidade visando uma previsão de materiais na unidade de enfermagem são: especificidade da unidade, características da clientela, freqüência no uso dos materiais, número de leitos na unidade, entre outros. A análise destes fatores permite estabelecer uma cota para a unidade, devendo esta ser atualizada com o fim de evitar falta ou excesso de materiais estocados (Castilho e Leite, op. cit., p. 79).

Esta estratégia demonstra uma visão estreita em relação ao compromisso com o cliente, pois a preocupação recai somente sobre os clientes que serão assistidos em seus plantões, sem a percepção de que esse mesmo cliente continuará sendo atendido no plantão seguinte, podendo neste momento ser vítima da escassez de materiais ou equipamento. Além disso, essa atitude para a resolução do problema dificulta o processo de transformação dessa realidade constante que é a falta de materiais ou equipamentos, uma vez que apenas adia o problema.

Uma outra estratégia muito utilizada pela equipe de enfermagem é o uso da criatividade, surgindo como uma possibilidade de contornar as adversidades emergentes no cotidiano profissional, sendo muitas vezes relacionada, pelos depoentes, ao termo improvisar.

Para Sá e Fugita (1996, p. 50) o "pensamento criador" é um dos instrumentos básicos das atividades do enfermeiro, proporcionando a percepção do problema, necessidade ou situação; a fluência de idéias e a flexibilidade de pensamento para tentar solucioná-los; a originalidade e a estruturação ou reestruturação das soluções encontradas e das ações a serem planejadas e concretizadas para resolvê-los.

Para Vidal (op. cit., p.310), a criatividade é vista como "dimensão da existência pessoal", ou seja, é própria do ser humano a capacidade de criar, devendo utilizá-la como forma de se opor ao que lhe é determinado, com o objetivo de solucionar os problemas e dificuldades que emergem no quotidiano profissional.

O treinamento em serviço, realizado com pequenos grupos, foi uma das estratégias relatadas por uma depoente, considerando as características de cada funcionário e a disponibilidade de um momento adequado para esta atividade.

Esta estratégia demonstra a consciência moral e pessoal dessa enfermeira, diante da necessidade dos demais membros da equipe de enfermagem, quanto à necessidade de treinamento. Com isso, torna-se possível a melhoria da qualidade na assistência de enfermagem desenvolvida por sua equipe, em conseqüência, refletindo, certamente, na recuperação da saúde dos clientes, facilitando o reconhecimento profissional, por parte destes e de outras categorias profissionais. Essa conduta revela o compromisso profissional da enfermeira.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo permitiu-me uma avaliação crítica quanto ao agir do enfermeiro, baseada nos conceitos teóricos de liberdade e compromisso, diante da realidade quotidiana desta categoria profissional.

A realidade cotidiana do Profissional de Enfermagem é "dura e cruel", pois o serviço público de saúde não tem sido considerado uma prioridade pelos governos municipal, estadual ou federal. Este fato reflete-se na ausência ou escassez de material e no número reduzido de profissionais de enfermagem.

Tudo isso contribui para aumentar o risco de contaminações, dentre elas pelo HIV, entre os enfermeiros, além de comprometer a qualidade da assistência de enfermagem.

A existência de um esquema de folgas extras, privilegiando os profissionais que desempenhavam as suas atividades com presteza, revela o paradoxo da reivindicação profissional, que ao mesmo tempo exigia um número maior de enfermeiros, sem o qual a assistência de enfermagem era inevitavelmente atingida, também desfrutava de um esquema administrativo, no qual se premiava os profissionais de enfermagem que realizavam as suas funções devidamente, para as quais haviam sido contratados.

Foi possível perceber que alguns enfermeiros, insatisfeitos com esta realidade vivida pela enfermagem, expressaram desejo de transformação, demonstrado, principalmente pela crítica e contestação, obtido a partir de um processo de conscientização, no qual percebia-se o valor atribuído à vida não como exclusividade do cliente mas também do enfermeiro, pois, em ambos os casos, o objeto a preservar-se é a vida.

Outro aspecto presente nos depoimentos refere-se à percepção por parte do enfermeiro quanto à responsabilização do Estado, enquanto gestor de políticas sociais, entre essas as de saúde. Indiretamente, o enfermeiro se conscientiza que um ato moralmente bom por parte deste requer do Estado uma contrapartida, como condições que garantam a dignidade do ser humano, e portanto do enfermeiro.

A análise dos depoimentos permitiu a confirmação de que, diante do contexto apresentado, no qual é desenvolvida a prática profissional, o enfermeiro apresenta uma conduta ambivalente frente à situação de risco de contaminação pelo HIV, ora priorizando a sua autoproteção ora valorizando os cuidados de enfermagem ao cliente, em detrimento das normas de biossegurança, e com isso negligenciando a si próprio; e atribuindo, assim, grande valor a vida sob seus cuidados, como o bem maior a ser preservado, no qual o emocional se sobrepõe ao racional.

Este estudo permitiu ainda demonstrar que o enfermeiro deve assumir a responsabilidade moral por seus atos, desde que praticados de forma consciente e livre, cabendo a consideração dos fatores deterministas, pois interferem na condição de liberdade. Ao mesmo tempo, ele não deve ignorar o potencial humano, o que torna o enfermeiro um agente capaz de enfrentamento daquilo que lhe é dado.

Desta forma, o profissional torna-se um agente transformador da realidade que lhe é imposta quotidianamente, caracterizando o seu compromisso profissional, transformador e de libertação.

 

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NOTAS

1 Trabalho ganhador do prêmio Maria Bernadete Bandeira dos Santos, patrocinado pelo Sindicato dos Enfermeiros do Rio de Janeiro.

2 Para a definição do quantitativo de pessoal de enfermagem utiliza-se o Método de Dimensionamento de Pessoal de Enfermagem. GAIDZINSKI ( 1991, p. 93-6).

3 Adotada pela 22ª Assembléia Médica Mundial em Sidney, Austrália em 1968 e emendada pela 35ª Assembléia Médica Mundial em Veneza, Itália em outubro de 1983.

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