Volume 6, Número 2, Mai/Ago - 2002
DISCURSO
Enfermagem: tendências e novos desafios
Nursing: tendencies and new challenges
Enfermería: tendencias y nuevos desafíos
Maria Therezinha Nóbrega da SilvaI; Ellen M. PeresII
IProfessor Adjunto da Faculdade de Enfermagem da UERJ.Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem "Anna Nery"
IIProfessor Adjunto da Faculdade de Enfermagem da UERJ.Mestre pela Universidade Federal de Santa Catarina e Livre Docente pela Faculdade de Enfermagem da UERJ
RESUMO
O presente texto teve o propósito de refletir a influência do poder político nos destinos da enfermagem, definindo a formação de seus trabalhadores e a sua inserção no mercado de trabalho, estando as suas tendências sendo desenvolvidas a partir do sistema político vigente. Este é promotor ou não dos novos sonhos e utopias. Percebe-se, nesta análise, o quanto os nossos ideais estão dependentes da construção do poder político dos trabalhadores dessa categoria para efetuar, de fato e de direito, as transformações sociais desejadas pela enfermagem.
Palavras-chave: Enfermagem. Participação. Poder político.
ABSTRACT
The present text has had as main objective to reflect the political power's influence on nursing's destinies, defining its professional's formation and its place on the work market , having its tendencies being envolved by the political system of a determined time. This can be the leading of new dreams and utopias. It is noticed by this analysis, how our ideals are dependent on the construction of a political power led by workers from this category to make through fact and law, the social changes desired by nursing.
Keywords: Nursing. Participation. Political Power.
RESUMEN
El presente texto tuvo el propósito de reflexionar la influencia del poder político en los destinos de la enfermería, definiendo la formación de sus trabajadores y su inserción en el mercado de trabajo, estando estas tendencias desarrolladas a partir del sistema político vigente. Este es promotor o no de los nuevos sueños y utopías. Se percibe, en este análisis, de cuanto nuestras ideas están dependientes de la construcción del poder político dos trabajadores de esa categoría para efectuar, de hecho y de derecho, las transformaciones sociales deseadas por la enfermería.
Palabras claves: Enfermería. Participación. Poder político.
Em primeiro lugar, gostaria de cumprimentar a Direção da Escola de Enfermagem Anna Nery, os professores, os alunos, os funcionários e demais convidados presentes neste auditório, expectadores da aula inaugural que se segue, desejando-lhes um feliz reinício de aulas e um auspicioso ano acadêmico desenvolvido a partir de princípios democráticos capazes de garantirem a participação do corpo social da universidade na definição de seu destino. Que a nova gestão da Universidade devolva a todos a confiança de que a UFRJ do presente está comprometida, essencialmente, com a ciência e a tecnologia e, sobretudo, preocupada em retomar o seu exemplo de espaço de liberdade e garantia de direitos que sempre defendeu.
Em segundo lugar, externo à Diretora da Escola de Enfermagem, professora doutora Maria Antonieta Rubio Tyrrell, a satisfação que sinto em ser destacada com tão honroso convite. Espero desincumbir-me desta missão à altura dos ensinamentos que recebi nesta casa de educação, como ex-aluna dos cursos de mestrado e doutorado.
O tema proposto é inesgotável. É estimulante pensar sobre ele e dar asas à imaginação. Ficamos tentados a sonhar com o futuro e quem sabe mesmo até a delirar sobre nossos desejos e nossas utopias. Afinal, os sonhos são expressões incontidas do nosso potencial humano, muitas vezes energia e projeção do futuro que alimenta a esperança dos que vivem a vida em toda sua intensidade.
Na busca de saber para onde vamos, com quem vamos, porque vamos e a serviço de quem vamos, voltamos no tempo. Voltamos aos anos de 1970, pleno período de governo da ditadura militar, que se caracterizava pela censura da imprensa falada ou escrita, e mesmo televisiva - embora ainda em branco e preto.
"É a década de importantes transformações na estrutura social do país muito por conta da consolidação do projeto revolucionário pós 64. A classe operária cresce em ritmo progressivo e a classe média proletariza-se, gradativamente, diante da crise financeira por que passa o país. Consolida-se a aliança entre o capital monopolista e o latifúndio moderno" (FONSECA, 2000).
Grande perseguição ocorreu aos intelectuais que defendiam a liberdade de expressão e os princípios do estado de direito. Eram comuns as prisões de estudantes, escritores, artistas, padres, professores e cidadãos engajados em partidos clandestinos ou não, que ousassem contrariar os Atos Institucionais baixados pelo poder exercido pela força, sem qualquer consulta à Câmara e ao Senado.
Muitos daqueles a quem a população delegou poder político, por representatividade popular concedida pelo voto dos eleitores, estavam cassados em seus direitos e pouco ou nada podiam, de fato, opinar e decidir em prol da população. Alguns deles tiveram seus direitos cancelados, acrescidos de prisões e exílio.
Tudo isso retratava para nós, estudantes e profissionais recém-formados, o peso de um regime governamental pautado no poder arbitrário, quando os direitos civis mínimos estavam sendo desconsiderados. À época éramos estudantes e, a seguir, profissionais. Foi nesse contexto que assisti a muitos sanitaristas de vanguarda do Movimento da Reforma Sanitária, entre eles enfermeiras combativas, criarem modos e maneiras de resistirem ao que vinha sendo imposto e, a um só tempo, denunciarem com artifícios inteligentes a corrupção e o descompromisso com a assistência de saúde da população. Palestras, conferências, encontros eram desenvolvidos com o objetivo dessa vanguarda divulgar projetos especiais, geralmente desenvolvidos pelas universidades públicas, com a aplicação de modelos locais que favoreciam a comparação de sua operosidade e eficiência em relação ao modelo de saúde vigente.
Naquela década, os Institutos de Aposentadorias e Pensões - IAP(s), após absorvidos pelo governo federal e transformados no Instituto Nacional de Previdência Social - INPS e sendo tomadas outras providências, davam origem ao Ministério da Previdência e Assistência Social - MPAS. Os trabalhadores que antes podiam opinar sobre os destinos de seu instituto estavam, naquele momento, perdendo o direito a esta participação e a sua autonomia construída ao longo de muitos anos, através de inúmeras lutas e conquistas sociais garantidas pelo regime democrático. Conclui-se, assim, "o processo de exclusão política dos beneficiários das decisões da Previdência Social, ao mesmo tempo em que são promovidas medidas para a integração e o intercâmbio dos serviços de assistência médica do INPS, IPASE, FUNRURAL" (CORDEIRO, 1985 e FONSECA, 2000).
O Sistema de Saúde proposto, através da 5ª Conferência Nacional de Saúde, em 1975, demarca a margem de ação dos Ministérios da Saúde e da Previdência e Assistência Social, dividindo a assistência de direito e de fato em preventiva e curativa, inviabilizando compreendê-la em seu caráter de integralidade.
A promoção e prevenção da saúde ficaram com o Ministério da Saúde, logo conhecido como o Ministério pobre e sem verbas. Os tratamentos e as intervenções geradoras de custos e altos investimentos, originados em um modelo hospitalocêntrico e medicocêntrico, ficaram a cargo do chamado "primo rico" da saúde, o MPAS. Através dele foi conveniada a grande rede hospitalar privada do país e, a partir daí, o discurso dos governantes era o de que os hospitais públicos, chamados próprios, eram onerosos aos cofres do estado. Contudo, nesta afirmativa não se explicitava que toda a complicação gerada iatrogenicamente nos pacientes internados nos hospitais privados, eram "despachadas", descomprometidamente, através de transferência para os hospitais públicos com conseqüente aumento dos gastos assistenciais. Resta, ainda, dizer que no espaço público praticava-se assistência de alto nível e desinteressada no lucro da doença, pois nele se concentrava os profissionais de melhor padrão e tecnologia mais avançada (MELLO, 1983).
Muitos profissionais de saúde combatiam essas situações, que não otimizavam os investimentos e, ainda, propiciavam as famosas fraudes do INAMPS e os desvios de conduta ética de profissionais na busca do enriquecimento fácil. Um dos exemplos concreto dessa ocorrência foi o número irracional de cesarianas e amidalectomias realizadas no país naquele período, influenciando nefastamente a formação de profissionais até nas universidades.
Ao mesmo tempo, um outro fato presente e denunciado pelo movimento sindical dos trabalhadores de saúde à época era a compra desordenada de equipamentos já sucateados em outros países. Estes eram adquiridos por nós, onerando os cofres públicos, sem qualquer critério técnico e sem treinamento de pessoal para a sua devida utilização. Comumente, os equipamentos ocupavam os espaços dos corredores dos hospitais públicos e passavam anos encaixotados sem qualquer providência dos administradores de saúde indicados pelos governantes, impostos pelo regime militar e apoiados pela elite econômica do Brasil (MELLO, 1983).
Foi nesse contexto que muitas gerações de enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem e demais profissionais de saúde foram formados. Embora houvesse resistência em alguns setores da sociedade e currículos questionadores e reformuladores da proposta de saúde existente, a maioria do pessoal foi formada para atender a tal sistema. Para os médicos, o promissor, após a formatura, era a possibilidade de ter um emprego público e integrar-se como sócio em um empreendimento de saúde privado. Fato que mais tarde transforma o médico sem patrimônio econômico em empregado de seus colegas, fazendo crescer o regime de assalariamento dos profissionais médicos e a manutenção como assalariados dos demais trabalhadores da área de saúde no setor privado. Particularmente, na enfermagem, os hospitais eram o lócus privilegiado dos postos de trabalho.
Todo este preâmbulo que muitas vezes desejamos esquecer, traz para todos nós a certeza tão decantada desde 70, que "o desenho da formação de recursos humanos é determinado pelo modelo de prestação de serviços e não pelo órgão formador", visto ser o primeiro o que exerce influência sobre o tipo de profissional que o mercado absorve.
E o mercado é influenciado por quem?
No caso da enfermagem, especificamente, embora se reconhecesse a necessidade de ênfase nos aspectos de saúde pública, a formação das enfermeiras se confinava cada vez mais nas instituições hospitalares. "Prova genuína deste fenômeno é a diminuta carga horária destinada ao ensino de saúde pública nos cursos de graduação em enfermagem" (SILVA, 1986). Mais ainda, a opção crescente dos alunos pela habilitação de enfermagem médico-cirúrgica, a partir de 1972, sob o argumento de que o mercado de trabalho favorecia a ocupação de postos de trabalho na área hospitalar (SILVA, 1986).
Tudo isso nos alerta e nos dá indício o tempo todo que, embora tenhamos a idealização do que almejamos, o seu alcance é inteiramente dependente de outras forças que não passam somente pela esfera corporativa e escolar, menos ainda pelas reais necessidades de saúde da população.
Assim, as tendências da profissão estarão sempre sendo definidas e absorvidas pela sociedade, de acordo com o sistema instituído e permitido pelos governos responsáveis em desenvolver as políticas públicas de saúde. Serão, ainda, dependentes de definição do governo eleito, o qual poderá ou não consolidar o processo de intervenção dos profissionais de saúde, democratizando a tomada de decisões através de instâncias de participação, por exemplo: as conferências e os conselhos de saúde, as várias comissões para análises e deliberações acerca da assistência, com ou sem participação popular.
Cabe ressaltar que o novo, o instituinte, as novas idéias serão sempre razões de movimentos contra-hegemônicos. Em princípio, movimentos minoritários que se estabelecem e se firmam pela coerência, quando aumentam a massa crítica sobre seus propósitos e ampliam os parceiros em torno do que se deseja instituir.
Exemplificando, hoje, a busca de autonomia das ações liberais dos enfermeiros acerca da assistência domiciliar, é um movimento que ganha força neste momento e neste contexto, porque associado a ele sabe-se, até que se prove o contrário, que esta assistência atualmente interessa ao setor privado pela redução dos custos assistenciais. Assim, ganha mais adesão que a consulta de enfermagem institucionalizada, pois parecem não concorrer com o interesse financeiro de outros profissionais no espaço do mundo do trabalho dos profissionais de saúde em geral.
É preciso que se saiba que preexiste um poder político antes mesmo do poder técnico e social e este é o poder que influencia a tomada de decisões dos governos.
Por isso, há que se estar atento aos compromissos que de fato estão na esfera da ação individual dos trabalhadores da saúde e da enfermagem, dependentes da construção do saber, do desenvolvimento das pesquisas e das tecnologias, da capacidade de organização das categorias, da justeza da proposta que se deseja implantar, da aderência da população às lutas por melhor assistência.
Mas, sem ingenuidade, se não construirmos o poder político para transformar nossas propostas em ações de governo, as quais exitosas devem se transformar em políticas de estado, nossos sonhos estão fadados a serem episódicos, interrompidos pelos pesadelos constantes dos descompromissos daqueles que concentram liderança e poder político em favor de interesses particulares.
Pensamos que o maior desafio para a enfermagem brasileira neste século 21 deva ser a construção de seu poder político. Não um poder de caráter exclusivamente corporativo. Ao contrário, ele deve estar muito alinhado aos interesses da população, usuária de seus serviços. É neste sentido que a Associação Brasileira de Enfermagem - seção Rio de Janeiro, o Sindicato dos Técnicos e Auxiliares de Enfermagem do Rio de Janeiro e o Sindicato dos Enfermeiros do Rio de Janeiro lançaram o Manifesto "Projeto Político Parlamentar da Enfermagem", na Abertura da 63ª Semana Brasileira de Enfermagem, no dia 10.05.2002, no Rio de Janeiro. Neste manifesto, as referidas entidades das categorias de enfermagem lançam as bases de um movimento estadual para a construção do poder político parlamentar da enfermagem (Anexo).
Sob o entendimento de que Enfermagem é gente que cuida de gente, poderíamos, hoje, exercitar pensar enfermagem como ação única de promoção da vida. Isto é, ações educativas, preventivas, cultivadoras da cidadania com exigente e competente participação popular. Desospitalizada, autônoma nas suas decisões, porém capaz de interagir nas relações multi e interprofissionais, intersetoriais e comunitárias, visando a potencialização do seu cuidado para o melhor resultado de seus atos para o usuário de seus serviços. Acreditamos que esta radicalização poderia nos diferenciar mais para a sociedade. Contudo, pensamos que a enfermagem ainda está e continua sendo necessária também no espaço hospitalar. Até que a premissa anterior seja vista como o lema desta profissão, nosso trabalho está a ser exigido em todas as esferas das necessidades de preservação, manutenção e recuperação da saúde.
Radicalmente, pensamos que toda e qualquer estratégia assistencial de enfermagem proposta para qualificar ou ampliar a cobertura de sua assistência, se não estiver aderida ao princípio do respeito ao outro, no seu máximo direito ao conhecimento pleno de seu estado ou condição e à assistência proposta, não terá avançado eticamente, na mesma medida em que se dá o avanço tecnológico.
Para nós, profissionais de enfermagem, fica o desafio de estarmos pensando o modus faciendi da oferta de nossos cuidados, preservando o que temos de mais sólido, consagrado e reconhecido socialmente através dos séculos - a nossa capacidade e sensibilidade de humanizar a prestação da assistência em qualquer espaço e tempo. Onde ela se faça necessária, mantendo a dignidade profissional e a defesa intransigente de respeito a quem assistimos, visando a promoção do seu maior bem, patrimônio sagrado, a sua saúde.
REFERÊNCIAS
CORDEIRO, H. A indústria da saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal: 1985.
FONSECA, R.M.G.S. da. Congressos Brasileiros de Enfermagem: meio século de compromisso da ABEn. Brasília: ABEn, 2000. 70p.
LANDMANN, Jayme. Evitando saúde & Promovendo a doença. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982. 188p.
MELLO, Carlos Gentile. A medicina e a realidade brasileira. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983. 137p.
PAIVA, Mirian Santos et all. Enfermagem brasileira: contribuição da ABEn. Brasília: ABEn Nacional, 1999. 78p.
SILVA, M. T. N. da. Organização curricular dos cursos de enfermagem e obstetrícia - situação da disciplina de Enfermagem de Saúde Pública. Rio de Janeiro: UFRJ/EEAN, 1986. 153p.
NOTAS
Aula Inaugural proferida na Escola de Enfermagem "Anna Nery" - Universidade Federal do Rio de Janeiro, no dia 20 de maio de 2002, na Cidade Universitária - CCS - Fundão - Rio de Janeiro - RJ.