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CAPES

Volume 6, Número 3, Dez/Dez - 2002

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Cuidados fundamentais de enfermagem na ótica do cliente: uma contribuição para a enfermagem fundamental1

 

Fundamental nursing care from the client's point of view: a contribution to fundamental nursing

 

Cuidados fundamentales de enfermería en la óptica del cliente: una contribución para la enfermería fundamental

 

 

Márcia de Assunção FerreiraI; Nébia Maria Almeida de FigueiredoII; Angela ArrudaIII; Neide Aparecida Titonelli AlvimIV

IProfessora Adjunta do DEF/EEAN/UFRJ. Doutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ. Membro do Núcleo de Pesquisa em Fundamentos do Cuidado de Enfermagem do DEF/EEAN/UFRJ. Coordenadora do Curso de Mestrado da EEAN/UFRJ
IIProfessora Titular do DEF/EEAP/UNIRIO. Doutora em Enfermagem pela UFRJ
IIIProfessora Adjunta do Instituto de Psicologia Social da UFRJ. Mestre em Psicologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e Doutora pela USP
IVProfessora Adjunta do DEF/EEAN/UFRJ. Doutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ. Membro da Diretoria do Núcleo de Pesquisa em Fundamentos do Cuidado de Enfermagem do DEF/EEAN/UFRJ Coordenadora de Pesquisa da EEAN/UFRJ

 

 


RESUMO

Pesquisa cujo referencial teórico foi o das Representações Sociais, segundo Moscovici e Jodelet. Discutimos as noções de cuidado construídas a partir das representações do corpo na ótica do cliente hospitalizado. Realizamos entrevista em profundidade, livre associação de idéias e observação participante. Os clientes identificaram como cuidado de enfermagem relacionado ao tratamento da doença, objeto da hospitalização, mas principalmente, os que resgatam a sua integridade pessoal, mantendo a sua identidade como sujeito social. Os cuidados expressivos destacaram-se por se localizarem na dimensão interpessoal, valorizando a humanização do cuidado, resgatando no sujeito a sua condição humana. Essas tipificações do cuidado, tendo como referência o conceito de cuidado fundamental, trouxe à tona a importância da valorização dos cuidados necessários e desejados pelos clientes. Muitos não demandam gasto de material e equipamentos, mas exigem um preparo psicoafetivo do enfermeiro possibilitando o cuidar com atenção, carinho, zelo, tranqüilidade, confiança e alegria. Características apontadas pelos clientes como fundamentais para o seu tratamento e reabilitação.

Palavras-chave: Cuidado de Enfermagem. Enfermagem fundamental. Cuidado. Representação Social.


ABSTRACT

This is a research in which the theoretical reference is the Social Representations, in accordance with Moscovici and Jodelet. We discuss the notions of care constructed from the body representations, from the hospitalized client's point of view. We did a deep interview, with a free association of ideas and a participating observation. The clients identified the nursing care as the one related to the treatment of the disease, the object of hospitalization, but mainly as the one that restores their personal integrity, maintaining their identity as social subjects. The expressive care stood out because it is situated in the interpersonal dimension, giving value to the care humanization, restoring the subject's human condition. This characterization of care, taking the concept of fundamental care as a reference, revealed the importance of giving value to the care that is necessary and wished by the clients. Many kinds of care do not require the use of materials and equipments, but they do require the nurse's psychological-emotional preparedness, allowing him or her to provide care with respect, affection, devotion, tranquillity, confidence and joy, which are characteristics that are pointed out by the clients as fundamental to their treatment and recovering.

Keywords: Nursing care. Fundamental nursing. Care social representation.


RESUMEN

Investigación cuyo referencial teórico fue el de las Representaciones Sociales, según Moscovici y Jodelet. Discutimos las nociones del cuidado construidas a partir de las representaciones del cuerpo en la óptica del cliente hospitalizado. Realizamos entrevista con profundidad, libre asociación de ideas y observación participante. Los clientes identificaron como cuidado de enfermería, aquello que tiene relación con el tratamiento de la enfermedad, motivo de la hospitalización, pero principalmente los que rescatan su integridad personal, manteniendo su identidad como sujeto social. Los cuidados expresivos se destacaron por localizarse en la dimensión interpersonal, valorizando la humanización del cuidado, rescatando en el sujeto su condición humana. Esas tipificaciones del cuidado teniendo como referencia el concepto de cuidado fundamental, trajo a discusión la importancia de la valorización de los cuidados necesarios y deseados por los clientes. Muchos no demandan gastos de material y equipamiento, pero exigen una preparación psico-afectiva del enfermero posibilitando el cuidar con atención, cariño, celo, tranquilidad, confianza y alegría. Características apuntadas por los clientes como fundamentales para su tratamiento y rehabilitación.

Palabras claves: Cuidados de enfermería. Enfermería fundamental. Cuidado - representación social.


 

 

OS NEXOS DO OBJETO DA PESQUISA COM O APORTE TEÓRICO-CONCEITUAL

Para discutir as noções de cuidados construídas a partir das representações do corpo na ótica do cliente hospitalizado, tomamos como referência o conceito de cuidado fundamental, trazendo à tona a importância de não somente valorizarmos os cuidados necessários, como também os desejados pelos clientes. Fundamental significa, segundo Carvalho e Castro (1985, p. 78), "aquilo que corresponde à essência de uma coisa, é o que é imprescindível à existência dessa coisa, sua garantia ou razão de ser". Com base nesse significado, conceituamos cuidado fundamental como aquele que traduz "a verdadeira essência da enfermagem", ou seja, visa "promover a preservação e proteção da vida, a promoção do conforto e bem-estar ao ser humano" (FERREIRA, 1999, p. 3).

Partimos dos dados de uma pesquisa empírica (FERREIRA, op. cit.) que Se amparou na teoria das Representações Sociais (RS), formulada por Moscovici (1978) e desenvolvida por Jodelet (1981), principalmente em seus estudos sobre as representações do corpo na França. Esta afiliação teórica-conceitual implicou em uma posição epistemológica definida no que se referiu ao entendimento do objeto do estudo como passível de conhecimento psicossociológico, do sujeito como ator social, ativo no processo de elaboração das idéias, e das representações como legítimo motor das transformações sociais. Entendemos que o cliente hospitalizado processa a informação sobre o seu corpo no cuidado de enfermagem hospitalar, atribuindo um sentido à experiência de participar desse cuidado (ação), o que o permite compreender a realidade, a partir dos seus referenciais.

A identidade psicossocial da representação se exprime a partir do momento em que os sujeitos têm uma inscrição sócio-histórica-cultural definida e uma história pessoal. Logo, a teoria das RS considera que os sujeitos pertencentes a um mesmo grupo social, que compartilham das mesmas condições políticas e econômicas, possuem experiências sociais comuns, assemelhando-se por incorporar o mesmo habitus, padrão de linguagem e racionalização (WAGNER, 1994). Isto posto, de acordo com a teoria em tela, as respostas individuais manifestam o pensamento do grupo social do qual o sujeito compartilha experiências e vivências da sua vida pessoal.

 

OS SUJEITOS, O CENÁRIO E AS TÉCNICAS DE COLETA DE DADOS

Os sujeitos da pesquisa foram 26 clientes internados em um hospital-escola federal, localizado no Rio de Janeiro. O hospital foi escolhido intencionalmente por ter características consideradas profícuas para a exploração do objeto e o atendimento dos objetivos da pesquisa2.

Para atender ao referencial teórico-conceitual de análise, faz-se importante destacar que os clientes (13 homens e 13 mulheres) formaram um grupo bastante homogêneo: todos estavam internados por causa de doenças que lhes trouxeram algum tipo de limitação funcional; quanto ao grupo social de pertença, todos eram da classe de trabalhadores; os aposentados continuavam, de alguma forma, inseridos no mercado de trabalho por necessidade de complementação da renda familiar, que variou até cinco salários mínimos; na formação escolar, a maioria tinha o ensino fundamental (incompleto ou completo); e, quanto à faixa etária, houve predomínio dos sujeitos da terceira idade. Um aspecto importante que contribuiu para dar homogeneidade ao grupo foi o fato de todos pertencerem a religiões de origem Cristã, o que marcou sobremaneira os seus discursos.

Para a coleta das informações, trabalhamos com multitécnicas, tendo em vista a importância da triangulação dos dados para a densidade dos resultados da pesquisa qualitativa. Assim, aplicamos a observação participante durante cinco meses, amparadas nos conceitos de Malinowski (1984) e de Geertz (1989 e 1998) sobre a interpretação das culturas e a descrição densa como método de descrição dos fatos observáveis. As técnicas verbais consistiram de livre associação de idéias, seguida da entrevista em profundidade. A entrevista foi o momento formal de aplicação de um roteiro semi-estruturado, composto por perguntas abertas; no entanto, ressaltamos que, por conta da observação participante, realizamos e registramos as conversas que tivemos com os clientes na busca das suas próprias interpretações para a experiência de estar hospitalizado e participar dos cuidados de enfermagem3.

 

A REPRESENTAÇÃO SOCIAL E O CUIDADO DE ENFERMAGEM: A IMBRICAÇÃO DOS CONCEITOS

Consideramos a enfermagem uma ciência humana, sendo o cuidado pensado no âmbito de uma abordagem humanística, apoiada nos conceitos de cuidar e de cuidado formulados por Waldow (1995 e 1998b) e na teoria de Watson (TALENTO, 1993). Essa opção orienta-nos a compreender as respostas humanas, e portanto emocionais, às experiências singulares que os clientes manifestam aos cuidados de enfermagem dos quais participam. Isto porque, muitas vezes, tais respostas não são verbais, mas sim, comunicadas por comportamentos, gestos e atitudes, ou seja, respostas corporais significativas que exigem leituras objetivas, mas que também dependem da subjetividade de quem cuida.

Nesta perspectiva, as emoções, fruto do sentir humano, não são ignoradas, bem como o significado atribuído às reações e experiências vividas pelos sujeitos no cuidado de enfermagem. Desta feita, valorizamos a representação do cliente que vive, no seu corpo, a experiência de participar dos cuidados de enfermagem, em especial o hospitalar. Apontamos que o cuidado é experimentado pelo cliente como uma ação técnica, mas também como ação sensível por implicar em um encontro entre pessoas - quem cuida e quem participa do cuidado. Esta reflexão ampara-se no entendimento de que a espécie humana é dotada de órgãos de sentido - objetivamente mapeado no corpo - e de uma dimensão subjetiva, responsável, entre outras, pela emoção.

Em respeito à afiliação teórica-conceitual com a qual estamos trabalhando, destacamos que o cuidado tem um caráter relacional, já destacado por Waldow (1998ª) ao examinar o conhecimento na enfermagem. E é nessa relação estabelecida no encontro entre enfermeiro e cliente que se destaca o espaço intersubjetivo no qual se formam as representações sociais, permitindo a comunicação e a interação entre os sujeitos. Esse espaço permite que ambos (re)construam seus conhecimentos a partir de um sistema de diferenças, possibilitando aos sujeitos entender tais diferenças. O relacionamento com a diferença, segundo Jovchelovitch (1998, p. 74)

"envolve desejo, e é a natureza dessa condição desejante que também define a forma como uma sociedade se engaja na rede de relações humanas que permite tanto a construção dos saberes como dos sentidos, eles próprios atividades cruciais para sustentar a formação de identidades, sentimentos de pertença e o sentido de comunidade".

Neste espaço intersubjetivo, o cliente constrói a representação do seu corpo no ato de ser cuidado, percebendo os limites do seu corpo e das suas ações, dando-nos a possibilidade de discutir sobre as maneiras de cuidar e os cuidados de enfermagem hospitalar. Isto se deve ao conceito de corpo com a qual trabalhamos que implica na expressão do sujeito e, também, a necessária manutenção da identidade do cliente no espaço social hospitalar, principalmente quando vivencia o cuidado de enfermagem. Para amparar esta afirmação, resgatamos o conceito de cuidar como intervenção direta e/ou indireta em um corpo "atravessado pelas pulsões da sensibilidade que dependem das percepções e das representações. (...) Centro das significações (e) ponto central de referência para a construção da própria identidade" (LEPARGNEUR, 1994, p. 28-29).

Podemos, então, entender que as representações que os clientes formam sobre o seu corpo no cuidado de enfermagem hospitalar dependem, pois, da forma como integram seus conhecimentos a esse respeito, das informações que circulam no seu dia-a-dia, das experiências e valores que lhes são próprios, refletindo como se apropriam de um determinado aspecto da realidade. Isto permite o entendimento da afiliação individual-social da representação que nos orienta a pensar que os clientes que compartilham de uma mesma realidade social (estar doente e hospitalizado), inseridos em um mesmo grupo social de pertença, pensam juntos sobre o mesmo assunto, qual seja: o cuidado de enfermagem. Assim, discutir o cuidado de enfermagem a partir da própria experiência dos clientes, valorizando as suas necessidades e desejos, configura-se, para nós, como condição sine qua non para se pensar os cuidados que lhes são fundamentais.

 

ANÁLISE PRELIMINAR DOS RESULTADOS

Os dados empíricos da pesquisa mostraram que foi justamente no espaço intersubjetivo, a partir da relação estabelecida com a equipe de enfermagem no ato de cuidar, que o cliente representou o seu corpo no cuidado, reiterando o caráter relacional dessa ação afirmado anteriormente.

Ao falarem sobre os seus corpos sadios, os clientes marcaram os seus discursos com a idéia de independência, autonomia e livre arbítrio, indicando a representação de um corpo como um patrimônio individual, em um desvelar de possibilidades para auto afirmarem-se como sujeitos. Ao adoecerem e sofrerem o processo da hospitalização, passaram a vivenciar a situação de dependência quanto aos cuidados de si e enquadramento em uma ordem institucional não-familiar a eles.

Os depoimentos dos clientes mostraram que o processo de desconstrução e reconstrução da representação do seu corpo nesta nova experiência de cuidado de si (ou em cuidar de si) é marcado pela perda da autonomia sobre o seu corpo imposta pela situação de dependência nos cuidados. A reacomodação da representação acontece porque, no processo de crescimento e amadurecimento sociopsíquico, a pessoa passa cada vez mais a ter autonomia e domínio, principalmente no que diz respeito ao seu corpo - usos e cuidados a ele ligados. Quando hospitalizado, o sujeito sofre várias perdas, advindas do processo mesmo da hospitalização, ao ter que se enquadrar às normas próprias que toda instituição exige. Assim, o sujeito perde a autonomia sobre como, quando e porque realizar alguns cuidados genéricos e específicos com o seu corpo, passando este domínio à equipe que se torna responsável pelo mesmo.

Não é objeto, no momento, discutirmos as relações de poder e de dominação que se estabelecem nas relações sociais e que se evidenciam, também, no espaços institucionais, no caso o hospitalar; no entanto, trouxemos a questão como pano de fundo para melhor entendermos algumas emergências de cuidados indicadas pelos clientes como fundamentais na sua assistência.

 

CUIDADOS FUNDAMENTAIS: DA NECESSIDADE AO DESEJO DO CLIENTE

Para melhor operacionalizar a análise e a discussão, classificamos os cuidados em três grandes grupos, de acordo com o alcance do mesmo junto à clientela. Assim, no primeiro grupo de cuidados, classificamos aqueles que eram realizados com todos os clientes; no segundo grupo, os que não eram realizados mas eram desejados por eles; no terceiro grupo classificamos os cuidados que ora se realizavam, ora não, sendo desejados por aqueles que não os recebiam.

Primeiro grupo: cuidados restauradores, reabilitadores e mantenedores

Os cuidados restauradores e reabilitadores eram os que se relacionavam ao tratamento da doença, que restauravam a integridade e a atividade do corpo, possibilitando a eles a recuperação e o alcance da cura. Dentro do conjunto de cuidados citados pelos clientes estão: o fornecimento de medicamentos, a realização de curativos, cuidados para facilitar as eliminações fisiológicas, exercícios passivos e ativos e promoção do autocuidado para alcance de independência, principalmente, nos transportes cama-cadeira-cama.

Os mantenedores foram assim classificados porque ligavam-se à manutenção da integridade corporal e o vínculo com a vida, sendo importantes para a sobrevivência. Como exemplo, os clientes citaram: a higiene, a alimentação, a hidratação, a reabilitação preventiva (prevenção de úlceras de pressão, principalmente). Os cuidados deste grupo, de certa forma, eram esperados e, via de regra, realizados nas instituições hospitalares em cumprimento à finalidade mesma da hospitalização: tratar e curar as doenças. Isto talvez explique serem citados como cuidados bem desejados pelos clientes, pois representavam a possibilidade deles em resgatar a saúde e voltar para o convívio familiar e social.

Segundo grupo: cuidados embelezadores

Classificamos como cuidados embelezadores alguns cuidados que não eram realizados na instituição hospitalar, mas faziam parte dos desejos das clientes do sexo feminino. Inusitadamente, foram citados alguns cuidados que possibilitariam o resgate da feminilidade do corpo. Todas as mulheres entrevistadas manifestaram o desejo por cuidados como: tratamento e pintura dos cabelos e unhas, depilação, uso de maquiagem e uso de adornos como pulseiras, anéis, colares e outros. Em que pese o discurso sobre o cuidado de enfermagem nos livros-texto e manuais técnicos usualmente empregados nos cursos de formação profissional4, ressalta-se a importância de cuidados que estimulem a auto-imagem e a auto-estima do cliente sem levar em conta a perspectiva do gênero. Contudo, o discurso das clientes, sujeitos deste estudo, levantou a questão de gênero como fator a ser considerado na abordagem dos cuidados, sendo fundamental no atendimento à mulher hospitalizada. Desta forma, o discurso sobre a auto-imagem e a auto-estima ganhou singularidade na fala das mulheres, deslocando-se do recorte biológico-biomédico, tão usual quando se discute as necessidades humanas básicas no cuidado à saúde.

Terceiro grupo: resgate da integridade pessoal e do sujeito social

Neste grupo, classificamos os cuidados que possibilitariam o resgate da integridade pessoal, especificamente os ligados à privacidade. Estes cuidados não se realizavam sempre para todos os sujeitos, sendo desejados por aqueles que não usufruíam deles. Os ligados à privacidade foram o uso de biombos e a necessidade de ter uma sala reservada para determinados tratamentos e cuidados íntimos; os que possibilitariam o resgate do sujeito social (localizados na dimensão interpessoal) foram os seguintes: a) integradores ao meio como, por exemplo, conversar com o cliente, reunir-se com os outros clientes e com a família, ter acesso aos meios de comunicação; e b) os expressivos - valorização da humanização do cuidado resgatando no sujeito a sua condição humana, como por exemplo: a atenção, o carinho, a alegria, o respeito, a confiança e o apoio.

Ao analisar os cuidados citados como integradores ao meio, constatamos que os mesmos configuram-se em oportunidades de lazer. Os clientes os consideraram como cuidados e, nós os ressaltamos porque proporcionar e/ou favorecer a integração do cliente na enfermaria é, também, uma forma de cuidar. Muitas vezes o cliente permanece no leito porque precisa ser ajudado a se locomover. Neste caso, a integração com os outros clientes só será possível através do cuidado de transporte desse cliente. Da mesma forma, conversar com o cliente, principalmente com aqueles que estão restritos ao leito, configura-se em um cuidado de enfermagem, na medida em que esta conversa funciona como terapia para minimizar a solidão sentida por ele. Desta feita, afirmamos ser estes cuidados fundamentais para quem está hospitalizado e, para esta afirmação, amparamo-nos no fato de o ambiente social da enfermaria e a conversa terapêutica terem sido, em 1859, objetos de preocupação de Nightingale ao publicar as suas notas sobre o que é e o que não é enfermagem5.

 

O QUE É FUNDAMENTAL NO CUIDADO FUNDAMENTAL

Ampliando a discussão dos resultados, ressaltamos marcas positivas nas falas dos clientes quando valorizaram os cuidados restauradores, mantenedores e reabilitadores. Por outro lado, evidenciamos, também, marcas negativas, seja pela forma como algumas intervenções de enfermagem eram realizadas ou pela própria ausência de alguns cuidados.

Especificamente, as falas das mulheres mostraram que a ausência dos cuidados embelezadores as descaracterizavam como sujeitos femininos. E, também, a relação de poder estabelecida no cuidado com os clientes de ambos os sexos contribuía para a desubjetivação deles, uma vez que, ao serem submetidos à ordem institucional hospitalar, os clientes "perdiam" a possibilidade de serem sujeitos nas situações de cuidados de si. No entanto, o desejo de reconquistar a sua autonomia levava o cliente a lutar pelo seu autocuidado, garantindo-lhe a sua identidade como sujeito. O autocuidado, assim, emergiu como condição de possibilidade para a reconquista, pelo cliente, do domínio sobre si. O autocuidado, então, pode ser considerado como fundamental para a inserção e participação do cliente no processo de cuidar, participação essa tão necessária à manutenção da cidadania do cliente.

A partir da ótica do cliente, consideramos que os cuidados que lhes são fundamentais se organizam em um tripé que engloba a dimensão física-biológica: cuidados que tratam/curam/reabilitam o corpo/sujeito; a dimensão social: cuidados que mantêm a identidade social e garante o "status" de cidadão do corpo/sujeito; e a dimensão subjetiva: cuidados da emoção, que valorizam a humanidade do corpo/sujeito.

Desta feita, concluímos a importância da necessária imbricação das dimensões biológica, social e emocional, pois o cuidado puramente técnico cumpre o papel da restauração, reabilitação e cura, mas não resgata no cliente a marca pessoal da sua subjetividade no que se refere aos cuidados que lhe são necessários e desejados. Ainda mais, o desejo é que mantém o sujeito no curso da vida, logo, desenvolver a escuta para a comunicação não verbal (expressões corporais e faciais) torna-se o diferencial e o diferenciante para a construção de um cuidar sensível que não demanda gasto de material e emprego de tecnologia sofisticada, mas sim, preparo de ordem psicoafetiva por parte de quem cuida, possibilitando o cuidar atento, carinhoso, zeloso, com transmissão de tranqüilidade, confiança e alegria.

Ademais, como a razão é essencial para a cientificidade do cuidado, a sensibilidade torna-se fundamental para a arte de cuidar, pois, sem a sensibilidade, perdemos a possibilidade de promover "o encontro de pessoa a pessoa, de coração a coração"(LELOUP, 1998, p. 130), tornando-nos puramente tecnicistas e afastando-nos da verdadeira essência da enfermagem: o cuidado ao ser humano.

 

REFERÊNCIAS

CARVALHO, V. de; i Castro, I. B. e. Marco conceitual para o ensino e a pesquisa de enfermagem fundamental: um ponto de vista. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v.38, n.1, p. 76-86, jan./mar. 1985.

FERREIRA, M. de A. O corpo no cuidado de enfermagem: representações de clientes hospitalizados. Orientadoras: Nébia Maria Almeida de Figueiredo e Angela Arruda. 1999. 267 f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1989. 323p.

__________. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Tradução de Vera Mello Joscellyne. Petrópolis: Vozes, 1998. 366p.

JODELET, D. et. al. La representation sociale du corps. Paris: Laboratoire de Psychologie Sociale Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1981. 199p.

JOVCHELOVITCH, S. Re(des)cobrindo o outro: para um entendimento da alteridade na Teoria das Representações Sociais. In: ARRUDA, A. (Org.). Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 69-82.

LELOUP, J. Y. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Petrópolis: Vozes, 1998. 133p.

LEPARGNEUR, H. Consciência, corpo e mente: psicologia e parapsicologia. Campinas: Papirus, 1994. 236p.

MALINOWSKI, B. Os argonautas do Pacífico Sul. São Paulo: Abril, 1984. 432 p. (Coleção Os Pensadores).

MOSCOVICI, S. A psicanálise, sua imagem e seu público. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 291p.

NIGHTINGALE, F. Notas sobre enfermagem. São Paulo: Cortez, 1989. 174p.

TALENTO, B. Jean Watson. In: GEORGE, J. B. et. al. Teorias de enfermagem: os fundamentos para a prática profissional. Tradução de Regina Machado Garces. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 254-267.

WAGNER, W. Descrição, explicação e método na pesquisa das representações sociais. In: JOVCHELOVITCH, S.; GUARESCHI, P. (Org.). Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 149-186.

WALDOW, V. R. Examinando o conhecimento na enfermagem. In: MEYER, D. E., WALDOW, V. R.; LOPES, M. J. M.(Org.). Marcas da diversidade: saberes e fazeres da enfermagem contemporânea. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998a. p. 53-85.

__________. Cuidado humano: o resgate necessário. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998b. 204p.

__________. Cuidar/cuidado: o domínio unificador da enfermagem. In: WALDOW, V. R.; LOPES, M. J. M.; MEYER, D. E. (Orgs.). Maneiras de cuidar, maneiras de ensinar: a enfermagem entre a escola e a prática profissional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 7-30.

 

NOTAS

11º Lugar no Prêmio "Professora Emérita Elvira de Felice e Souza", oferecido ao melhor trabalho na temática "Cuidados fundamentais" apresentado no 9º Pesquisando em Enfermagem/2º Encontro Nacional de Fundamentos do Cuidado de Enfermagem/5ª Jornada de História da Enfermagem Brasileira.

2O hospital em tela recebia clientes com doenças crônicas que dependiam, fundamentalmente, de cuidados de enfermagem e de reabilitação, o que fazia com que os mesmos permanecessem um longo tempo internados (três meses em média), facilitando, assim, a aplicação da observação participante e a vivência, por parte dos clientes, das experiências de cuidado, em quantidade e qualidade.

3Como envolveu seres humanos, esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição hospitalar referida e, ainda, obtivemos dos clientes, o seu consentimento livre e esclarecido do qual trata o item IV da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

4Apesar de, no final da última década e início da que estamos, termos tido um incremento nas publicações de livros textos de enfermagem que discutem o cuidado com base em outras perspectivas que não somente a biomédica, os livros mais difundidos e usualmente adotados nos cursos de formação ainda são aqueles cuja orientação conceitual ampara-se nas ciências da saúde e no paradigma cartesiano.

5A edição consultada pelas autoras para este trabalho foi a versão em Português publicada no Brasil em 1989 pela editora Cortez, constante na bibliografia.

 

 

Data de Recebimento: 05/09/2002
Data de Aprovação: 09/12/2002

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