Volume 7, Número 2, Mai/Ago - 2003
ARTIGOS DE REFLEXÃO
A nova profissão de "cuidador de idosos" e suas implicações éticas1
The "caregiver of the aged" and the ethics of taking care
El "cuidador de ancianos" y la ética del cuidar
Virgínia Lúcia Reis MaffiolettiI; Cristina M. Douat LoyolaII
IAluna do Mestrado do Programa de Pós-Graduação do IPUB, tendo como orientadora a Professora Cristina Loyola. A pesquisa se insere no Laboratório de Pesquisa em Enfermagem Psiquiátrica - LAPEPS. Psicóloga do IPUB/UFRJ.Psicanalista
IIProfessora Titular de Enfermagem Psiquiátrica. Pesquisadora do CNPq. Pesquisadora do LAPEPS - apoio financeiro do CNPq
RESUMO
Este artigo pretende trazer uma reflexão sobre a ética do cuidar que orienta o ofício dos cuidadores de idosos, uma profissão que surgiu recentemente para atender a uma demanda crescente diante do aumento do número de idosos dependentes. Uma relação delicada que pode ser entendida como uma intervenção terapêutica e, como tal, ser benéfica ou iatrogênica, tendo ressonâncias na vida de ambos. Consideramos a ética como um imperativo ideal que sustenta o ideal terapêutico informado pelo modelo teórico adotado. Sendo assim, ela pode justificar atitudes invasivas à alteridade do idoso e resultar num desencontro entre o ideal e a ação possível diante das vicissitudes da clínica, exigindo manejos para os quais esse profissional precisa estar preparado técnica e/ou emocionalmente.
Palavras-chave: Auxiliar de cuidado domiciliar. Idoso. Ética. Cuidar.
ABSTRACT
This article intend to introduce a reflection upon the ethics of the act of caring that orientates the job of the caregiver of elderly, a profession that was created recently to answer to a growing demand facing the increase of the number of dependent elderly. That delicate relation can be understood as a therapeutics intervention and, as so, can be beneficial or iatrogenic, having resonance upon the lives of both of them. We consider ethics as an ideal imperative ideal that supports the therapeutic ideal informed by the theorical model adopted. As such, it can justify invasive attitudes to the alterity of the elderly, and result in a mismatch of meeting between the ideal and the possible action facing the vicissitudes of the clinic, claiming handlings for which that professional needs to be prepared technically and / or emotionally.
Keywords: Home health aides. Elderly. Ethics. Care.
RESUMEN
Este artículo pretende traer una reflexión sobre la ética del cuidar que orienta al oficio de los cuidadores de ancianos, una profesión que surgió recientemente para atender la demanda creciente en función del aumento del número de ancianos dependientes. Es una relación delicada que puede ser entendida como una relación terapéutica y, como tal, ser benéfica o iatrogénica, generando resonancias en la vida de ambos. Consideramos la ética un imperativo ideal que sustenta el ideal terapéutico pregonado por el modelo teórico adoptado. Así, ella puede justificar actitudes invasivas a la alteridad de los ancianos y resultar en un desencuentro entre el ideal y la acción posible frente a las vicisitudes de la clínica, exigiendo manejos para los cuales ese profesional debe estar preparado técnica y / o emocionalmente.
Palabras clave: Auxiliare de salud a domicilio. Anciano. Ética. Cuidar.
INTRODUÇÃO
Neste artigo, pretendemos trazer algumas considerações sobre a ética do cuidar que orienta uma nova tecnologia de cuidado, o "Cuidador de Idosos", profissional que assume a responsabilidade de cuidadosamente acompanhar velhos que se encontrem em condições de relativa ou total dependência. Uma categoria profissional que surge para atender a uma demanda crescente, decorrente do aumento demográfico do percentual de velhos na pirâmide social, e do aumento da longevidade. Não só passaremos a ter, brevemente, mais velhos que jovens, como aumentou o tempo em que eles permanecem no nosso convívio, ou excluídos dele. Com isso, passarão a fazer parte do nosso repertório médico social um aumento das doenças crônicas, maiores índices de coomorbidades e dependência (VERAS, 1997/1998; VERAS, RAMOS e KALACHE, 1997).
Conseqüentemente, propagam-se os cursos de preparação e/ou formação de cuidadores, nos quais são esmiuçadas as questões que afetam o envelhecer e o velho, suas fragilidades, limites e possibilidades. Sendo uma categoria profissional recentemente reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, com o código 5.40.90, da Classificação Brasileira de Ocupações, sob o titulo sinônimo Cuidadores de Crianças, Jovens, Adultos e Idosos (MTE, 2000).
A classificação de cuidador sugerida pelo Ministério da Previdência e Assistência Social - MPAS (2000) propõe a seguinte conceituação:
Cuidador informal: é aquele que presta cuidados à pessoa idosa no domicílio, com ou sem vínculo familiar, e que não é remunerada.
Perfil: pessoas de ambos os sexos, pertencentes à família ou não, que têm idoso em casa e identificam-se com as atividades pertinentes.
Cuidador Profissional: é a pessoa que possui educação formal com diploma conferido por instituição de ensino reconhecida em organismos oficial, e que presta assistência profissional ao idoso, a família e comunidade.
Perfil: ter cursado o 3º Grau e tido treinamento específico em cuidado do idoso, em instituições oficialmente reconhecidas.
Cuidador Formal: pessoa capacitada para auxiliar o idoso que apresenta limitações para realizar as atividades e tarefas da vida quotidiana, fazendo o elo entre o idoso, a família e serviços de saúde ou da comunidade, geralmente remunerado.
Perfil: ter cursado o 1º Grau, ser maior de idade e submetido a treinamento específico, ministrado por instituição reconhecida (MPAS, 2000, p. 12).
Nessa classificação, as atribuições do cuidador formal, que é o objeto de nossa reflexão neste artigo, referem-se de maneira geral à ajuda:
Nos hábitos da vida diária; nos exercícios físicos; no uso da medicação; na higiene pessoal; nos passeios; na atenção afetiva e outros que essa atividade requeira (MPAS, 2000, p. 12).
Apesar desse reconhecimento da ocupação de cuidador pelo Ministério do Trabalho e Emprego, permanece o questionamento levantado pelo Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro que, considerando o cuidar uma atribuição da enfermagem, se preocupa com as atribuições desse profissional e sua qualificação para exercer um papel que pode, certamente, ser considerado pertinente ao campo da saúde. Com essa perspectiva, o COREN - RJ deliberou em plenário, em sua 291ª Reunião Ordinária, a proibição da participação e contribuição dos Profissionais de Enfermagem, de qualquer forma, no desenvolvimento de atividades educativas e/ou treinamento em cursos para cuidadores leigos, já existentes ou que viessem a ser criados, assim como o acompanhamento e realização de estágio prático (Diário Oficial - RJ, 2001).
Esta discussão merece, sem dúvida, ser analisada de forma cuidadosa, não sendo, no momento, a ambição deste artigo.
Sabe-se que esta "nova" profissão porta desafios bastante delicados. O relacionamento entre o velho e seu cuidador implica, na verdade, uma intervenção terapêutica que pode ser tanto benéfica quanto iatrogênica, tendo ressonâncias na vida de ambos.
Neste momento de visibilidade da velhice, têm surgido freqüentes denúncias, na mídia nacional e internacional, sobre maus tratos e negligências sofridas por velhos asilados, por parte dos técnicos e/ou responsáveis pelo seu cuidado, incluindo aqueles que possuem nível superior em diversas áreas. Como exemplo podemos citar a CPI do Idoso (Comissão Parlamentar de Inquérito) realizada no Rio de Janeiro no último ano, a qual vistoriou aproximadamente 300 abrigos, dos quais aproximadamente 40% foram avaliados como impróprios sendo solicitada sua interdição.
Por outro lado, alguns estudos nos informam sobre os altos índices de depressão, ansiedade e somatizações diversas, encontrados ao investigarem a saúde mental dos cuidadores de velhos, principalmente quando os pacientes sob seus cuidados eram portadores de doenças invalidantes ou terminais (MORRIS et. al., 1988; CALDAS, 1998; INÁCIO, 2001).
Esses dois aspectos parecem ser resultados extremos de um encontro bastante delicado, ou melhor, um desencontro entre o velho e seu cuidador, mediado por uma ética do cuidar ambígua, marcada por um impossível de se realizar, tendo conseqüências desastrosas para ambos.
Consideramos, então, fundamental uma reflexão sobre a ética que sustenta e orienta esses profissionais.
DESENVOLVIMENTO
Entenderemos a ética como preceito, aquela que prescreve o que e como deve ser feito (FIGUEIREDO, 1999). Considerando que, o que deve ser feito é o que está por se fazer. Trata-se de um saber que visa um bem como fim último do agir, e que rege nossos atos e decisões frente à clínica. Dessa forma, poderemos situá-la a partir da psicanálise do lado do ideal.
O que nos remete à consideração de que, subjacente aos nossos atos, podemos reconhecer uma tradição teórica que informa nossas escolhas, nossos procedimentos clínicos e nossa atitude, e que de certa forma define o que é o bem e o universaliza (SERPA Jr., 1999).
Sendo o cuidado o que define essencialmente a profissão do cuidador desde a sua nomeação, este tem seu significado definido e predicado por uma certa ética do cuidar.
Na construção de uma profissão, podemos reconhecer o ideal ético que a orienta a partir das teorias, crenças e paradigmas que a informam; ao analisarmos os objetivos propostos (seus quereres), reconhecemos os conceitos que a fundamentam (seus saberes), suas formas de escolher, formalizar e exercitar os conhecimentos considerados necessários para o seu exercício (seus fazeres) e as formas de organização corporativas das quais se utiliza. Podemos dizer que a formação profissional é uma maneira de construir um modo de sintomatizar próprio de cada categoria, a partir do significado que a ética do cuidar adquire em cada uma.
No entanto, sabemos o quanto são inadequadas e insuficientes as generalizações prescritivas em qualquer prática clínica e, em especial, naquelas que se inscrevem, de alguma forma, no campo da saúde mental. Todo trabalho clínico implica cotidianamente em escolhas e tomada de decisão, e esta, de acordo com Serpa Jr. (1999), é uma dimensão incontornável da clínica. Dimensão esta que tem seu significado e suas conseqüências atualizados a cada confronto com a singularidade de cada paciente, suas particularidades, suas possibilidades, seus limites, temores, desejos, seu caso.
Cavalcante (1997, p. 6), pondo em questão o que é tratar, coloca-nos o quanto é fundamental, diante das generalizações prescritivas, perguntarmos: "Bem pra quem?". E comenta que:...Sempre que estivermos diante de princípios morais e éticos, dificilmente teremos regras fixas, pré-estabelecidas e universais independentes da situação que se apresente.
E não é só isso. Nessa fronteira entre o geral e o particular, as coisas são ainda mais delicadas. Nessa zona de turbulência entre o ideal prescrito pela ética do cuidar e a ação propriamente dita, onde o cuidador é chamado a fazer escolhas e tomar decisões, comparece algo que inevitavelmente caracterizará sua ação, qual seja, a marca da sua própria subjetividade, aquilo que de cada sujeito está em jogo na sua prática profissional.
O que nos lembra a posição de Balint (1998) de que a primeira droga que se administra ao paciente é a personalidade do médico, pois, desde o diagnóstico até a terapêutica e o prognóstico, todos os momentos dos atos médicos estão impregnados de sentimentos que podem ser úteis ou prejudiciais aos doentes. Pensamos que esta afirmação pode perfeitamente ser estendida à prática dos profissionais de saúde de maneira geral.
Neste momento, fazemos referência a uma outra consideração levantada por Figueiredo (1999) que nos parece fundamental para nossa reflexão, isto é, quando ela questiona o que se situa entre o preceito - a ética do cuidar - e a ação propriamente dita. Isto que caracteriza a nossa ação a partir da intenção marcada pelo ideal, ao que ela chamou de "sintoma".
Partindo deste princípio, o modo de sintomatização comparece na ação revelando o quanto o sujeito foi capturado pelo ideal ético e como ele dá conta deste, sendo determinado diretamente pelo significado que ele atribui ao cuidar. O ideal ético sustenta dinamicamente o ideal terapêutico informado pelo modelo teórico assumido e as exigências idealizadas e registradas ao longo da experiência de vida do sujeito. Devendo ser entendido que a sintomatização não é necessariamente algo bom ou ruim, mas antes um efeito inevitável do desencontro entre o ideal da ética - que aprisiona a satisfação do cuidador a uma ação impossível de se realizar - e a ação possível diante das vicissitudes da clínica.
Como exemplo do que referimos como impossível nem sempre o velho, como objeto do cuidado, se sujeita às interpretações, intervenções, rotinas e procedimentos que estabelecemos, nem sempre responde satisfatoriamente às nossas intervenções, na medida em que ele tem suas próprias escolhas, desejos, expectativas, frustrações e interpretações sobre seu sofrimento e doença. Isto pode ser percebido como obstáculo ao cumprimento ideal do nosso trabalho, causa da nossa insatisfação (LEIBING, 2001).
Lembremos rapidamente que, para a psicanálise, o sintoma tem suas origens nas origens do sujeito, e fala por metáforas e metonímias sobre os dissabores da alma, em sua constante busca de felicidade; sintoma que se coloca no lugar de uma satisfação sexual impossível - e, portanto, recalcada - e que pode se tornar insuficiente em sua função quando não alcança a satisfação parcial que o justificava, deixando um resto de angústia intolerável se não falado.
Não podemos esquecer que a escolha profissional é um dos caminhos através dos quais buscamos obter satisfação, o que coloca os nossos pacientes e a relação que estabelecemos com eles, no lugar de objeto.
Para tentarmos entender a delicadeza da trama que se constrói no estabelecimento de uma relação de cuidado e suas implicações, tomemos a profissão do cuidador como exemplo.
Começaremos desdobrando alguns sentidos que já vêm implicados na própria nomeação da profissão - cuidador, aquele que cuida. Como nos advertem os filósofos, as palavras estão grávidas de significados existenciais que compõem os fios utilizados na construção da teia do ideal.
Vejamos, então, a filologia da palavra cuidado. Para alguns estudiosos, a palavra cuidado deriva do latim cura, a qual em sua escrita mais antiga era coera, sendo usada nos contextos de amor e amizade, expressando o desvelo, a preocupação, a inquietação pelo objeto de amor e devoção. Um contexto no qual a atitude de cuidado implica uma responsabilidade frente ao amado.
Um outro entendimento da palavra cuidado reconhece-a como derivada de cogitare - cogitatus e de sua corruptela coyedar, coidar, cuidar. Sendo seu sentido, neste caso, o mesmo de cura: cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse, revelar uma atitude de desvelo e preocupação. Podendo-se dizer que a atitude de cuidar floresce quando a existência de alguém tem importância para mim, de tal forma que me disponho a participar do seu destino, de suas buscas, sofrimentos, esperanças etc. (BOFF, 1999, p. 90 - 91).
Segundo Boff (1999), estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude.
O cuidar, neste caso é conseqüência imediata de um ideal de amor, entendido como a completa dedicação e responsabilidade frente ao objeto de devoção, onde o sentido da própria existência está intimamente vinculado ao destino do outro. Marcado por uma maneira feminina de amar, representando a submissão, o espírito de servir e sacrificar-se, a abnegação destituída de gratificação, numa completa disponibilidade para o outro.
A amplitude deste ideal nos leva a pensar duas questões que nos parecem fundamentais.
Primeiramente, parece-nos difícil pensar em amor depois da contribuição psicanalítica sobre o assunto, sem considerar as sutilezas de como se dão as nossas escolhas objetais/amorosas, as quais definem e revelam o significado que cada um de nós atribui ao amor, e qual o tipo de relação que ele inspira e que nos satisfaz. Um significado definido e marcado pelos nossos primeiros objetos de amor.
Também já devemos estar familiarizados com a discussão que tem permeado os trabalhos em torno da reforma psiquiátrica, sobre os princípios éticos que devem se fazer presentes na prática clínica. Pitta (2001, p. 104) considera a ética como:
(...) as condutas humanas consentidas no que diz respeito ao bem e ao justo em oposição ao mal e não defensável, (...) lembrando-nos que esta (...) tem sido, desde Kant, experiência de limites, de fronteiras até onde o homem se preserva humano ou se bestializa como animal.
Vale salientar dois aspectos importantes, os quais foram brilhantemente apresentados pela autora, e que de certa forma se articulam com esta noção de cuidado. Falo em ética da escuta para me referir ao ato psicológico de poder abrir-se para entender e verdadeiramente escutar códigos nem sempre claros ou precisos de pessoas cujo apelo ao "escuta-me" deveria de imediato determinar um ato psicológico da vontade de não se fazer indiferente
(...) Ética da responsabilidade, aquela que fala do "tomar a si a responsabilidade de tratar", do não delegar a outrem o que por lei está dado aos profissionais, (...). Discutir condutas humanas pertinentes numa sociedade de cidadãos implica um permanente exercício sobre a transitoriedade de situações e diagnósticos (PITTA, 2001, p. 104 - 105).
Devemos, no entanto, problematizar estas postulações ideais, pois, assumidas como um imperativo, justificam um modo de sintomatizar que busca se impor a qualquer custo, pondo em jogo uma certa compulsão a cuidar. Dessa forma, sendo o sintoma pensado como uma compulsão que se situa entre o preceito e a ação, Figueiredo (1999) nos lembra que, a partir de Freud, isso deve ser entendido como uma modalidade pulsional que insiste em fazer valer uma verdade.
Antes de ser um sintoma, a compulsão é uma insistência do Id, mas também do superego. (...) Se, ao tomarmos a ética como um preceito, em sua dimensão de ideal sempre a ser atingido, levando em conta as forças irredutíveis do superego, nos deparamos com o paradoxo de estarmos diante de um impossível de realizar, que tem de ser realizado a todo custo (FIGUEIREDO, 1999, p. 131 - 132).
Podemos referir como exemplo, no caso dos velhos, uma tendência dos familiares e de muitos técnicos, freqüentemente observada, que em nome do amor costumam chamar para si a urgência do destino do outro, desqualificando a versão e a manifestação do desejo do julgado incapaz. Na clínica com velhos, essa é uma fonte de angústia sempre presente, principalmente para aqueles que se encontram mais dependentes - quer por limitações físicas decorrentes de uma velhice muito avançada, ou em conseqüência de doenças -, o temor de que os coloquem no lugar de quem não sabe o que diz, tirando-lhes o direito de deliberar sobre a própria vida, como se fossem "velhos gagás" (MAFFIOLETTI, 2000).
Esses postulados indicam, fundamentalmente, uma atitude frente ao nosso objeto de cuidado, assumindo-o como um objeto de amor, o que nos impõe a necessidade de refletirmos sobre os motivos que nos levaram a escolher o cuidado como ofício, os desejos que nos sustentam, e a tensão presente quando o objeto implicado é um outro sujeito dotado de uma subjetividade particular, com desejos, costumes e expectativas singulares.
Tomando um outro caminho da construção de uma ética do cuidar balizadora da prática dos cuidadores, observamos que a orientação básica dos cursos de formação, pelo menos em nível de Brasil, segue o paradigma médico em seu referencial organicista, sustentando um discurso fundado no seio de um pressuposto cartesiano e tendo como ideal terapêutico a seguinte lógica gramatical: "Eu sei porque você sofre e o que fazer com o seu sofrimento" (MOTTA, 2000).
A atitude do cuidar prescrita revela-se por um lado, inspirado nas práticas da enfermagem, num modelo de maternagem que deve manter o paciente limpo, quente, seco e confortável, marcado por uma intensa vigilância do seu estado físico geral - nutrição, temperatura, atitude, marcha, movimentos involuntários, mucosas, pele, estado mental etc. -, e deve, ao mesmo tempo, manter-se assexuada apesar da intimidade física necessária, tendo o controle das emoções como fundamental para a manutenção de uma objetividade e neutralidade. Sendo a formação um certo aprendizado da contenção, do não envolvimento, uma espécie de vacinação contra o sofrimento e a morte.
A questão é que, este aprendizado de não envolvimento, a inoculação desta vacina, resulta, muitas vezes, numa dessensibilização, num esvaziamento da dramaticidade do sofrimento e da perspectiva da morte, numa impossibilidade de reconhecer a inexorabilidade do tempo e a alteridade do outro. Um certo apagamento dos limites entre a vida e a morte. Uma relação que se funda na dessubjetivação do cuidador e do seu paciente (ZAIDHAFT, 1990). Vale lembrar que isso não é psicologicamente viável todo o tempo para uma pessoa e nem de modo absoluto.
De qualquer forma, este é um ideal que porta um paradoxo difícil de ser administrado devido à sua ambigüidade e limites imprecisos, cuidar por amor com devoção e responsabilidade, mas não se envolver. No vácuo existente entre as duas proposições afloram as mais diversas paixões e interpretações.
Observando o tipo de tratamento prescrito pelos diversos manuais que informam a formação desses especialistas na velhice, observamos uma excessiva valorização da tecnologia, dos procedimentos e da capacidade da medicina de resolver o mal-estar, e conseqüentemente a exigência de que o sujeito, o velho, se submeta incondicionalmente ao poder médico - o qual se estende aos cuidadores como seus representantes imediatos no cotidiano (CALDAS, 1998; BOTTINO et.al.; GASTEL, 1997; GWYTHER, 1995; RODRIGUES e DIOGO, 1996).
O sentimento de onipotência engendrado por uma formação que não dialoga com a dúvida e as incertezas produz, em alguns sujeitos, uma desinibição quando em contato com a fragilização decorrente da velhice ou das doenças que a acompanham, com a condição de desamparo do humano desvelada por aqueles que são percebidos como habitando a antecâmara da morte, e, muitas vezes, atua como um incentivo a que sobre ele se dê rédea livre às paixões hostis.
No encontro com o paciente, os cuidadores entram em contato com um universo povoado de recordações, temores, fragilidade, desesperança e resistências de toda ordem - mecanismos de defesa frente à possibilidade de aniquilamento real, simbólico ou imaginário -, defrontando-se com o caráter transitório e inexorável da vida. Isso produz no cuidador sofrimento, temor de ser dominado pelas demandas emocionais do velho, angústia e frustração que podem acionar mecanismos de defesa os mais diversos que vão desde a contenção emocional, a padronização e robotização das tarefas, a perda de interesse pelo bem-estar do paciente, produzindo uma naturalização do mal-estar como fazendo parte do ofício.
No entanto, a prática se mostra o avesso dessa situação, não cabendo aí receitas, bulas ou padronizações garantidoras. O sofrimento comparece,(para o cuidador) embora sobre ele seja colocada uma venda que se desvenda através do corpo, nas queixas de ordem física (...), nas doenças psicossomáticas, na depressão, nas perturbações do sono, no abuso de drogas, nas faltas e licenças médicas (MARANHÃO, 2000, p. 75).
A hierarquia à qual esse profissional está submetido é um outro ponto problemático, pois ele deve obedecer às orientações médicas e da enfermagem, e fazer uma mediação destas junto às famílias e ao próprio paciente, sendo ele o responsável direto pelo cuidar que lhe é prescrito por outros. Uma rede de implicações para as quais ele aprende, supostamente, técnicas de como lidar, mas onde não há espaço para criar ou pensar sobre os efeitos que essas situações produzem no paciente e em si próprio. Uma intervenção que vai à contramão dos princípios que vêm sendo apontados como fundamentais para a qualidade de uma boa assistência.
Cavalcante (1997, p. 2), ao compartilhar suas reflexões sobre a avaliação de qualidade da assistência à saúde mental, comenta que (...) os nossos atos têm conseqüências que ultrapassam em muito o nosso âmbito aparentemente restrito de ação. Sobre o que é cuidar nada é consensual. Há que se fazer escolhas e saber justificá-las. Salientando que é preciso avaliar as conseqüências dos nossos atos para nós mesmos, para o outro e para aqueles que nos cercam. Apesar de que não há como ter certeza das conseqüências das nossas intervenções, precisamos esperar para num "só depois" apreendermos suas conseqüências.
Nos relatos desses profissionais apresentados pelas pesquisas, os motivos de insatisfação apontados fazem referência, via de regra, à organização do trabalho: a fragmentação dos plantões, a desorganização da vida particular, a baixa remuneração, e principalmente o baixo reconhecimento etc; o problema está fora, no outro, no sistema (MARANHÃO, 2000; KARSCH, 1998; PITTA, 1999).
Refletindo sobre essa dinâmica, recorremos à formulação de Dejours (1987-1994), que atribui à organização científica do trabalho, isto é, à impessoalidade requerida, a fragmentação e a prescrição de tarefas, parte da responsabilidade pelo sofrimento psíquico decorrente do exercício do trabalho, na medida em que compromete a prática criativa, a construção de vínculos e a realização dos sentidos que lhe são atribuídos, e prescritos pelo ideal (DEJOURS apud MARANHÃO, 2000).
No entanto, o autor afirma também que a organização do trabalho por si só não cria doenças mentais específicas (psicose, neurose), considerando que estas estão atreladas à estrutura psíquica do sujeito. O trabalhador traz para o seu fazer as marcas da sua história, seus desejos, seus ideais, e no encontro destes com a organização do trabalho em seu ideal ético é que se forja o ambiente que favorece a descompensação, dificultando os destinos dos investimentos pulsionais ali implicados. (DEJOURS apud MARANHÃO, 2000).
Dartington (1997), por sua vez, nos alerta que se não houver possibilidades de trocas, e se as defesas psíquicas adequadas estiverem bloqueadas, as distorções sintomáticas se darão ou no sentido do desenvolvimento de sintomas psicossomáticos, depressão, evitação do trabalho etc., ou como outra possibilidade, o desenvolvimento gradual de um anestesiamento da emoção, a perda da capacidade de ser responsivo ao ambiente emocional, trazendo à tona o potencial de crueldade inerente à indiferença (DARTINGTON apud MARANHÃO, 2000).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cuidador marcado por sua ética põe em jogo, em sua maternagem, uma certa compulsão a cuidar que pode ser invasiva e intolerante frente a qualquer demanda ou obstáculo que venha do outro, o velho. Ao mesmo tempo em que, crente em um paradigma que fixa a identidade na patologia ou em categorias vazias de subjetividades - o idoso -, tende a rejeitar as diferenças, os temores e os limites do outro, fazendo do seu cuidar uma compulsão à normalização.
Enfim, todas essas questões nos colocam diante de várias interrogações a serem respondidas, entre elas, como garantir uma boa assistência, entendendo-a como aquela que sustenta os princípios éticos mais elementares como os citados ao longo deste trabalho? Será possível manejar o processo de formação e transmissão dos cursos para cuidadores de forma a garantir uma qualidade da assistência? Como minimizar as distorções sintomáticas?
De acordo com Cavalcante (1997, p. 7), existe pelo menos um princípio fundamental para a qualidade de um atendimento:
(...) a qualidade das pessoas que fazem este atendimento (...) esta qualidade não se mede apenas pela capacitação técnica dos profissionais, embora ela seja fundamental, mas também pela pontualidade, assiduidade, vontade de resolver as situações que lhe aparecem sem deixar para amanhã, em fim, por uma atitude ética e desejante diante do trabalho.
Parafraseando-a: o que é tratar bem de um velho? Primeiramente, ter vontade de fazê-lo e achar que isto importa.
Assim a questão fundamental em relação a um bom cuidado é o compromisso ético daqueles que se dispõem a cuidar.
Para tanto, é preciso discutir o que é cuidar, e quais os critérios que orientarão nossas escolhas e decisões. E qualquer que seja a nossa opção, ela deve ser sustentada como tal, e não como uma verdade absoluta, devendo ser dialetizada e repensada a cada caso, considerando a voz dos velhos, seus familiares e a experiência de outros profissionais.
Precisamos construir uma "mentalidade avaliativa", no sentido da atitude de repensar a própria prática, como propõe Pitta (1996), e, para tanto, devemos, em primeiro lugar, fazer uma reflexão no sentido de reconhecer o sintoma que está em jogo no exercício de nossa prática, no sentido de reconhecê-lo, tolerá-lo e incluí-lo nos nossos questionamentos.
Em tempos sombrios de crise de compromissos éticos entre os homens, criar cenários onde se possa dar visibilidade ao que se faz, aumentando o conhecimento e a autonomia dos diferentes implicados nas práticas de cuidados, talvez seja uma alquimia possível entre fazedores, pensadores e receptores de cuidados (PITTA apud CAVALCANTE, 1997, p. 26).
Nessa perspectiva, entendemos que esta nova tecnologia de cuidado, o "Cuidador de Idosos", deve, no seu florescer, apropriar-se das lições e reflexões já produzidas por outros campos de saber aos quais ela está diretamente associada, construindo sua própria teoria sobre essa nova prática, e não simplesmente repetindo discursos e reproduzindo atitudes ultrapassadas.
Lembramos que toda ética deve ser considerada a partir de um ponto de falta, o qual não deve ser entendido como puro erro ou denegado, mas como uma impossibilidade. Isto é, não nos é possível, apesar do desejo de cuidar, sobrepujar o acaso, nem o inexorável da vida, e não podemos desconsiderar nem desqualificar a alteridade em que se encontram os nossos pacientes.
Toda construção de uma atitude ética pede um exercício de humildade. Neste caso, devemos reconhecer que, para suportarmos as vicissitudes da clínica e os impasses criados pelos nossos ideais, é preciso, muitas vezes, demandar ajuda. Para que possamos relativizar os nossos instrumentos terapêuticos e nosso poder de cura, pois não devemos acreditar neles mais do que aqueles que depositam em nós suas esperanças.
Se os significados atribuídos ao cuidar no ideal da ética representam um impossível de realizar, isto não diminui a responsabilidade de que nosso menor gesto, o procedimento mais rotineiro está interferindo nos destinos daqueles que estão temporariamente sob nossos cuidados.
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NOTAS
1Este trabalho foi produzido a partir da instigante leitura dos seguintes trabalhos: o artigo "A ética do cuidar", da professora Ana Cristina Figueiredo, publicado no Caderno IPUB - número 14 de 1999; e o livro "Saber Cuidar", do Frei Leonardo Boff, publicado pela Editora Vozes. Assim, agradecemos aos autores por terem nos inspirado as reflexões que se seguem.
Recebido em 25/03/2002
Reapresentado em 02/08/2003
Aprovado em 20/08/2003