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CAPES

Volume 8, Número 1, Jan/Abr - 2004

ARTIGOS DE REFLEXÃO

 

Significado dos emblemas e rituais na formação da identidade da enfermeira brasileira: uma reflexão após oitenta anos

 

Meaning of the emblems and rituals in the identity formation of the brazilian nurse: the reflection after eighty years

 

Significados de los emblemas y rituales en la formación de la identidad de la enfermera brasileña: una reflexión después de ochenta años

 

 

Tânia Cristina Franco Santos

Professora Adjunta, Doutora em Enfermagem e Membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira do Departamento de Enfermagem Fundamental da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

O presente texto tem como objetivo discorrer sobre a importância dos emblemas e rituais na formação da identidade da enfermeira brasileira, evidenciando o efeito simbólico que as tradições exercem, não apenas no reconhecimento social da profissão, mas também nas relações de poder que determinaram a ocupação dos espaços sociais. As fontes consultadas indicam claramente o cuidado das escolas de enfermagem com o desenvolvimento e a transformação das futuras enfermeiras, tendo em vista a construção de um habitus profissional, que culminou em um modelo de enfermeira, veiculado reiteradamente para a sociedade. Havia todo um investimento sobre os corpos das estudantes que culminava na formação de um "habitus de enfermeira", o que compunha um quadro delimitador, quando associado aos rituais e emblemas, na produção dessa nova figura de mulher profissional. Concluí-se, nesta análise que os emblemas e rituais são instrumentos simbólicos, através dos quais uma profissão pode proclamar sua identidade.

Palavras-chave: História da Enfermagem. Emblemas e Insígnia.


ABSTRACT

The present study has the proposal to describe the importance of the emblems and rituals in the identity formation of the Brazilian Nurse, evidencing the symbolic effect that the traditions exert, not only in the social recognition of the profession, but also in the relations between power that are decisive for the occupation of the social spaces. The sources that was consulted, clearly revealed the care of the nursing schools with the development and the transformation of the future Nurse, aiming to the construction of the professional habitus, that culminated in a model of nurse , transmitted, over and over, to the society. The were all of an investment about the body of the students that resulted in the formation of one "nurse's habitus", that arranged a complete and important panel, when associated to the rituals and emblems, in the production of this new figure of professional woman. Conclusion: in this analysis the emblems and rituals are symbolic instruments, through of which a profession can proclaim its identity.

Keywords: History of Nursing. Emblem and Insignia.


RESUMEN

El presente texto tiene como objetivo discurrir sobre la importancia de los emblemas y rituales en la formación de la identidad de la Enfermera Brasileña, evidenciando el efecto simbólico que las tradiciones ejercen, no solamente en el reconocimiento social de la profesión, pero también en las relaciones de poder que determinaran la ocupación de los espacios sociales. Las fuentes consultadas indican el cuidado de las escuelas de enfermería con el desarrollo y la transformación de las futuras enfermeras, teniendo en vista la construcción de un habitus profesional, culminante en un modelo de enfermera, transmitido para la sociedad. Hubo todo un invertimiento sobre los cuerpos de las estudiantes que resultava en la formación de un "habitus de enfermera", lo que compone un cuadro importante, cuando asociado a los rituales y emblemas, en la producción de esa nueva imagen de la mujer profesional. Conclusión: en esta análisis, los emblemas y rituales son instrumentos simbólicos, a través de los cuáles una profesión pode proclamar su identidad.

Palabras clave: Historia de la Enfermería. Emblema e Insignia


 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Escola de Enfermagem Anna Nery comemora oitenta anos de existência. Retrocedendo no tempo, não há como negar que se trata de trajetória institucional profícua, vivida na luta permanente pelo reconhecimento e prestígio da profissão de enfermeira no Brasil, primeira categoria essencialmente feminina a fazer parte ativa e destacada, no campo da saúde.

Na trajetória de nossa profissão, os rituais e emblemas utilizados pelas escolas de enfermagem têm, acima de tudo, o sentido de intercâmbio entre quem enuncia determinada mensagem e os acadêmicos eruditos, com sensíveis reflexos para a categoria, em sua totalidade. Quando se mergulha na história de nossa profissão, torna-se claro o efeito simbólico exercido pelo discurso científico consagrador estrategicamente empregado de longa data, por nossos colegas, na luta pela ocupação de espaços sociais relevantes.

Em face do exposto, parto da premissa de que a inserção da enfermeira no espaço da saúde e seu reconhecimento pela elite da sociedade brasileira decorreram do empenho competente das pioneiras e de suas seguidoras, que se dedicaram sem limites ao propósito de construir a imagem de uma profissional solidamente preparada, através do rigoroso ensino formal, bem como da (re) invenção de tradições, representadas por emblemas e rituais que, repetidos, ano após ano, através de solenidades, congregavam representantes de diferentes setores da sociedade.

Esses rituais tinham muitas funções, entre as quais destaco o efeito simbólico de transmitir ao público uma imagem homogeneamente respeitável do grupo de enfermeiras e, por via de conseqüência, dar visibilidade e "status" à nova profissão.

Por "tradição inventada", entende-se um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou publicamente aceitas. Essas práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica a continuidade e reforço a valores estabelecidos no passado (Hobsbawn1). Assim, entendido esse fenômeno, a invenção das tradições na enfermagem é essencialmente um processo de formalização e ritualização, referido ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição, pois a "tradição inventada", na medida do possível, utiliza a história como elemento legitimador das ações e cimento de coesão grupal.

No meu entendimento, que derivo de pesquisas sobre a história de nossa profissão, a perspectiva de ritual encontra-se firmemente alicerçada nos conceitos de poder e de dominação, considerando o ritual uma produção cultural construída como referência coletiva ao simbólico e à experiência localizada de um grupo. Nesse sentido, o ritual é aqui considerado como parte das distribuições objetificadas do capital cultural dominante na escola (por exemplo, sistemas de significados, gostos, atitudes e normas que legitimam a ordem social existente).

Desse modo, a meu ver, uma recuperação, ainda que parcial, do significado dos emblemas e rituais na formação da identidade da enfermeira brasileira é por demais oportuno, pois evidencia o efeito simbólico que as tradições exercem, não apenas no reconhecimento social da profissão, mas também nas relações de poder que determinam a ocupação dos espaços no campo da saúde e da educação. Não é redundante ressaltar que as insígnias e os rituais são instrumentos simbólicos, através dos quais uma profissão pode proclamar sua identidade.

Para respaldar essa inferência, é pertinente lembrar que as instituições formadoras de enfermeiras utilizaram múltiplos dispositivos e símbolos, para transformar mulheres em enfermeiras, ensinando-lhes sua missão, mediante a construção do habitus profissional, que culminou em um modelo de enfermeira, veiculado reiteradamente para a sociedade.

A Escola de Enfermagem Anna Nery como centro difusor de "tradições inventadas"

A Escola de Enfermagem Anna Nery pode ser considerada como o centro difusor de "tradições inventadas". Nesse sentido, é interessante lembrar que o modelo de enfermagem, implantado na capital do Brasil, no início da década de 1920, ocorreu em uma conjuntura de forte influência americana nos domínios da economia e da tecnologia.

À época, um grupo de enfermeiras americanas, patrocinado pela Fundação Rockfeller e chefiado por Ethel Parsons, veio para o Brasil, com o objetivo de dar sustentação à Reforma Sanitária em andamento. Essas enfermeiras trabalharam e estabeleceram vínculos profissionais, sociopolíticos e ideológicos com destacadas autoridades do cenário nacional, durante uma década (1921-1931).

Com a criação da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Publica (DNSP) Anna Nery, em 1922, transplantaram para o Brasil um modelo de enfermagem que agregava às características do tradicional modelo nightingale, na Europa, outras, desenvolvidas em seu processo de adaptação à sociedade americana, desde os tempos da Guerra Civil.

Tendo como centro difusor essa Escola, estabeleceram-se, desde logo, emblemas e rituais que passaram a fazer parte do cotidiano das instituições de ensino de Enfermagem. Esses, de inspiração religiosa e militar, inicialmente adaptados de escolas americanas, eram usados como modo de inculcação da hierarquia e da disciplina e, de certa forma, favoreciam a construção da identidade da enfermeira brasileira (Santos e Barreira 2)

Um traço marcante das gestões dessas diretoras americanas na Escola de Enfermeiras do DNSP foi a institucionalização de emblemas (representados por broches, braçadeiras, uniformes, toucas, lâmpadas, retratos, bustos, hinos e culto a personalidades); ou seja, implantaram um conjunto de práticas consagradas pelo uso ou por normas, observadas de forma invariável em ocasiões determinadas, como cerimônias de recepção de touca, formaturas, e similares, pois o ritual é uma forma de ação simbólica, composta primariamente por gestos (atos simbólicos dinâmicos) e posturas (uma parada simbólica da ação) (Mc Laren3).

A Escola de Enfermagem Anna Nery foi inaugurada em 19 de fevereiro de 1923. Esse dia ficou conhecido como o dia das bem-vindas, pois, naquela ocasião, a diretora da escola, Claire Louise Kieninger, que não falava português, fez a leitura de uma saudação concluindo: sejam bem-vindas. (Sauthier e Barreira 4).

A abertura da Escola deu ensejo a muitas comemorações: os pais das alunas foram convidados a conhecer a "casa" onde suas filhas iriam morar, com as professoras. Essa integração dos pais, que hoje pode causar surpresa, justificava-se à época pelo fato de que, desde o século 19, os homens da elite esperavam que as mulheres de famílias humildes entrassem no mercado de trabalho, mas não suas próprias filhas, uma vez que o trabalho feminino era aceito pela sociedade na condição de complemento da renda familiar e quando necessário ao processo de industrialização do país. A mão-de-obra feminina era tratada como exército industrial de reserva, acionado sempre que compatível com os interesses do Estado, no contexto dos valores sociais dominantes (Rocha-Coutinho 5).

A Escola de Enfermeiras do DNSP operou, inicialmente, em moldes análogos aos das mais modernas escolas norte-americanas da época. A figura-tipo da aluna de enfermagem era a moça de boa família, cuja socialização era pautada por rígidos valores morais, de inspiração religiosa e militar (Barreira 6:161-176).

A seleção das candidatas ao curso comportava atendimento à exigência de cartas de referência, experiência em direção da casa, serviços educativos ou comerciais. Era exigido o diploma de Curso Normal ou estudos equivalentes. Além disso, as candidatas deveriam apresentar um documento expedido por médico de Saúde Pública, atestando sólida constituição, boa resistência, mentalidade perfeita e ausência de defeitos orgânicos e doenças contagiosas (Santos e Barreira2).

Assim, as qualidades exigidas da enfermeira integravam um quadro de disposições internas desejáveis, uma vez que a Escola de Enfermagem constituiu espaço privilegiado de transformação das relações sociais, através da formação do habitus profissional.

Inicialmente, a duração do curso era de dois anos e quatro meses, em regime de internato. Os quatro primeiros meses correspondiam a um período de experiência no qual, em qualquer tempo, a aluna poderia ser desligada, caso demonstrasse alguma incapacidade.

Após esse período, ocorria o primeiro evento de grande força simbólica: a cerimônia de "Recepção de Touca", que representava a integração efetiva da aluna ao corpo discente. O significado atribuído à touca era o domínio de si mesma e a devoção à causa da Enfermagem. Nesse sentido, a touca das alunas sempre esteve impregnada de forte valor simbólico, uma vez que representava a mística da profissão, definida como valor essencial, e constituía simultaneamente estratégia de igualdade e distinção do grupo.

A alva touca de organdi, peça fundamental e permanente do uniforme, que coroava a cabeça sobre os cabelos presos, era o símbolo de maior efeito dramático da mística da enfermagem. Usada desde o dia do ingresso da postulante no corpo discente da escola até o fim da vida profissional, distinguia a enfermeira de todas as outras mulheres, porventura presentes no mesmo cenário. Assim, a touca significava a pertença ao grupo e, por isso, conferia obrigações e privilégios a suas portadoras. Ao mesmo tempo, demarcava o espaço ocupado pelos agentes, dentro do grupo.

A formatura da primeira turma de enfermeiras brasileiras, que ocorreu em 1925, com 15 formandas, designadas como "As Pioneiras", foi celebrada por meio de eventos religiosos, profissionais e sociais que duraram três dias. No dia 19 de junho (sábado), foi celebrada uma missa solene, na matriz da Candelária, pelo arcebispo do Rio de Janeiro, dom Sebastião Leme e realizada a cerimônia de recepção de diplomas e o juramento profissional e ainda um baile de gala.

À solenidade de diplomação no Instituto Nacional de Música, realizada às 20:30 horas, presidida pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Afonso Pena Júnior, compareceram autoridades civis, religiosas e figuras ilustres da sociedade. O ritual de diplomação abarcou diversas atividades: na abertura, enquanto se executava o hino da enfermeira, entraram no recinto, por ordem hierárquica ascendente, membros do corpo discente. Em seguida ao discurso de Carlos Chagas, alta autoridade sanitária à época, d. Sebastião Leme benzeu os diplomas e distintivos. Após o discurso da oradora da classe, todos cantaram o Hino Nacional.

No dia seguinte ao da formatura, foram inaugurados os bustos de Carlos Chagasª e de Claire Louise Kieninger e uma placa em homenagem à Superintendente do Serviço de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública, Ethel Parsons. Esse ritual evidencia, entre outras mensagens mais subliminares, uma estratégia de manipulação simbólica, para formação da identidade grupal, mediante a consagração pública dos fundadores da Enfermagem nacional, ao tempo em que oferecia figuras exemplares às futuras enfermeiras e preservava sua memória para a posteridade.

No entanto, as novidades mais espetaculares no plano simbólico ocorreram em 1926, a começar pela própria denominação da escola que, por influência da Cruz Vermelha Brasileira, adotou como patrona a figura de uma heroína que encarnava os ideais religiosos e patrióticos. Assim, em 1926, a Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública passou a chamar-se "Escola de Enfermeiras d. Anna Nery"b. No dia 20 de maio de 1926, 46º aniversário de sua morte, a Escola, pela primeira vez, promoveu uma romaria ao seu túmuloc , tradição mantida por quase meio século (Santos e Barreira 2).

Como iniciativas de grande visibilidade e repercussão, destaca-se ainda a inauguração do Pavilhão de Aulas da Escola de Enfermeiras d. Anna Nery, no dia 28 de setembro de 1927. Esse prédio representa um monumento-documento da memória da Enfermagem brasileira, capaz de produzir o que Bourdieu denominou de "efeitos de lugar". Essa inferência se justifica quando levamos em consideração que passou a ser apropriado pelas agentes/enfermeiras como propriedades que as situavam e simbolizavam no espaço social (Santos e Barreira 2). Como esclareceu Bourdieu, a apropriação de estruturas do espaço físico constitui mediações através das quais as estruturas sociais convergem progressivamente para estruturas mentais, pois o espaço é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce (Bourdieu 7).

Emblemas e rituais mobilizados na produção de modelos de enfermeiras

As escolas de enfermagem, que foram criadas na esteira da Escola de Enfermagem Anna Nery, através de suas fachadas, freqüentemente solenes, indicavam aos transeuntes sua distinção em relação aos demais prédios dos bairros em que estavam localizadas. Seus espaços internos tinham também uma organização plena de significados: seus corredores e salas, a capela, as bandeiras, os retratos das autoridades, os quadros de formaturas ou os bustos de personalidades ilustres afirmavam saberes, apontando exemplos e modelos a serem seguidos.

Nesse sentido, a promoção de figuras e feitos da Enfermagem teve, como propósito e resultado, a apropriação (como no caso de Carlos Chagas, o pai fundador da Enfermagem) ou a construção (como as dirigentes norte-americanas e a brasileira Rachel Haddock Lobo) de figuras míticas, como modelos a serem seguidos e elementos de identificação da profissão.

O cotidiano das alunas nas Escolas de Enfermagem era planejado e controlado: as ações e movimentos eram distribuídos em espaços de tempo regulados e reguladores. Uma infinidade de rituais e símbolos, doutrinas e normas foram mobilizadas para a produção dessas mulheres/enfermeiras. Por meio desse trabalho de educação, as construções sociais eram incorporadas, inscritas nos corpos das estudantes e se tornavam um sistema de disposições, um habitus.

Também os rituais e a difusão de símbolos religiosos pelas escolas de enfermagem reforçavam o aspecto da inculcação do modelo adequado e padronizado da conduta das estudantes. Como elucidou Mc Laren3, os símbolos religiosos eram uma forma de concretizar as qualidades transcendentes de Deus; eles provocavam as estudantes a "dar-se conta" - a aprender a realidade de uma maneira especial.

As intenções manifestas no currículo escolar (por exemplo, o reconhecido compromisso das escolas de enfermagem, como o da Igreja em produzir católicos) eram objetivadas, concretizadas, tornadas éticas, coisificadas em um contexto unificado. Essas relações conjugadas dos contextos sagrados e escolares apresentavam - ou melhor, "criavam" - um ambiente cultural que lograva transmitir às estudantes uma racionalização legitimada para o mundo tal qual ele era - de trabalho árduo, porém santificado.

A normatização da vida das estudantes de Enfermagem fazia-se por uma série de dispositivos, como os exames públicos e as premiações, pela conduta nas solenidades e rituais, pela obediência a superiores, pela observância da pontualidade, da assiduidade, da regularidade e da ordem.

Construía-se uma ética e uma estética. Uniformes sóbrios, avessos à moda escondiam os corpos das jovens, tornando-as praticamente assexuadas e combinavam-se com a exigência de postura discreta e digna, conforme os parâmetros mais tradicionais de dignidade feminina. Havia todo um investimento sobre os corpos das estudantes que culminava na formação de um "habitus de enfermeira", o que compunha um quadro delimitador, quando associado aos rituais e emblemas, na produção dessa nova figura de mulher profissional.

Buscava-se ainda salvaguardar a imagem da enfermeira por meio de dispositivos arquitetônicos, vigilância e normas. Uniforme e edifício eram dois signos de "status" e de reforço do controle disciplinar para a enfermeira. Os arranjos físicos do tempo e do espaço formavam e informavam. A arquitetura escolar apresentava-se como um programa que falava aos agentes, que lhes dizia como ser ou agir, enfim, que instituía em sua materialidade um sistema de valores, como ordem, disciplina e vigilância.

Nos rituais de imposição de insígnias e de formaturas, ao longo desses oitenta anos, merece destaque a lâmpada, que evoca Florence Nightingale. Nos rituais de "recepção de touca", por exemplo, a chama da lâmpada enunciava que os ideais da enfermagem permaneciam vivos na sociedade, o que implicava um compromisso perene com a profissão, traduzido pelo ideal de dedicação ao serviço. A touca e o uniforme foram abolidos há mais de uma década.

Nas formaturas, a lâmpada continua a integrar o ritual: ela é acesa sempre por uma enfermeira, cujas qualidades superiores a dignificam a personificar esses ideais. A transferência dessa chama às lâmpadas de todas as formandas simboliza o compromisso compartilhado de manterem vivos tais ideais e reforça o voto, o compromisso, a fé e a fidelidade das alunas perante a instituição e a enfermagem, emprestando caráter mais grave ao momento.

O simbolismo da chama da lâmpada é o da fé em uma verdade e em uma beleza, que transcendem a própria existência, determinando a consagração perene a um serviço. Ao mesmo tempo, a chama da lâmpada, que se perturba com simples sopro, mas que magicamente se restabelece, nos lembra também os perigos que ameaçam a mística da profissão e dos cuidados com que devemos cercá-la, de modo a manter-se em movimento ascendente, pois a lâmpada representa um emblema de continuidade, num mundo em rápida transformação.

As tradições instituídas na Enfermagem brasileira visavam inculcar nos membros do grupo valores, direitos e deveres e se constituíam estratégias de manipulação simbólica que tinham como objetivos dar visibilidade à nova profissão, mediante a criação de representações mentais a respeito daquelas propriedades.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início do funcionamento da Escola de Enfermagem Anna Nery, em 1923, e mesmo após sua inserção na Universidade, seus emblemas e rituais foram adotados por outras escolas, com poucas alterações durante cerca de cinqüenta anos. Tais emblemas e rituais simbolizam ainda a coesão social de um grupo e favorecem a construção de uma imagem positiva da profissão.

A partir da Reforma Universitária de 1968, as escolas de enfermagem, buscando melhor inserção nos meios acadêmicos, foram modificando ou abolindo suas expressões simbólicas: "o dia das bem-vindas", por exemplo, atualmente recebe a denominação de "recepção dos calouros". Quanto à imposição de insígnias (broche, braçadeira e touca), a touca e a braçadeira foram abolidas, juntamente com o uniforme, ao passo que o broche foi substituído pelo crachá.

A sessão solene de diplomação sofre uma série de modificações circunstanciais, de acordo com a preferência de cada turma. Vale ressaltar que tais mudanças no ritual de formatura não têm sido objeto de discussão por parte dos corpos docente e discente das escolas de enfermagem.

No entanto, alguns estudos desenvolvidos no âmbito do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira têm evidenciado que os Serviços de Enfermagem em vários hospitais tendem a resgatar essas expressões simbólicas, como estratégia de visibilidade do grupo de enfermeiros que aspira ao reconhecimento de sua prática assistencial. Nessas instituições, o uniforme dos enfermeiros constitui, simultaneamente, instrumento simbólico de igualdade e distinção do grupo. Observamos ainda reivindicação de enfermeiros no sentido da adoção de "botons" de diferenciação dentro da equipe, conforme a posição ocupada no cenário hospitalar.

A "Dama da Lâmpada", outorgada à melhor aluna da turma também foi abolida, a partir da inserção de homens no curso de Enfermagem. No entanto, também se verifica no cenário da prática assistencial, principalmente hospitalar, um sistema de premiações, agora intitulado "enfermeiro destaque do mês".

Assim, procuro explicações acerca dessas alterações simbólicas dos emblemas e rituais da enfermeira, bem como da sua (re)utilização no cenário hospitalar no pensamento de Hobsbawn1 ao pontuar que a execução dos rituais é dinâmica. Esse autor afirma textualmente que "a maneira exata pelo qual se apresenta um ritual pode variar, o que por si só serve para acrescentar uma nova dimensão às mudanças de seu significado", mudanças essas a meu ver determinadas pelo contexto.

Finalmente, quero sublinhar a importância do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem, no que concerne à (re) construção da memória da Enfermagem Brasileira, particularmente contribuindo para o reconhecimento da importância da preservação da mística da Enfermagem.

À margem de ritos e rituais, tomo a liberdade de sugerir aos alunos e enfermeiros o empenho em preservar a chama da nossa profissão.

 

REFERÊNCIAS

1. Hobsbawn E. A invenção das tradições. Rio de Janeiro (RJ): Paz e Terra; 1997.

2. Santos TCF, Barreira, IA. O Poder Simbólico da Enfermagem Norte-Americana no ensino da Enfermagem na Capital do Brasil (1928-1938). Rio de Janeiro (RJ): EEAN/UFRJ; 2002.

3. Mc Laren P. Rituais na Escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. Petrópolis (RJ): Vozes; 1991.

4. Sauthier J, Barreira IA. As enfermeiras norte-americanas e o ensino da enfermagem na capital do Brasil: 1921-1931. Rio de Janeiro (RJ): EEAN/UFRJ; 1999.

5. Rocha-Coutinho ML. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro (RJ): Rocco; 1994.

6. Barreira, IA. Os primórdios da enfermagem moderna no Brasil. Esc. Anna Nery R. Enferm 1997 jul; 1(n. especial de lançamento).

7. Bourdieu P. Efeitos de lugar. In: Bourdieu P, organizador. A miséria do mundo. Petrópolis (RJ): Vozes; 1997.

 

NOTAS

ª O busto de Carlos Chagas encontra-se hoje exposto no hall de entrada do Pavilhão de Aulas da Escola de Enfermagem Anna Nery, mas o destino do busto de Clara Louise Kieninger é ignorado.

b pelo Decreto nº 17.268, de 31 de março de 1926.

c no Cemitério São Francisco Xavier, no bairro do Caju, Rio de Janeiro.

Este artigo foi apresentado originalmente como aula Inaugural do 1º semestre letivo de 2003 - Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte do calendário comemorativo de seus 80 anos de existência.

 

 

Recebido em 18/12/2003
Reapresentado em 04/03/2004
Aprovado em 12/03/2004

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