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CAPES

Volume 8, Número 1, Jan/Abr - 2004

ARTIGOS DE PESQUISAS

 

Hospital Nereu Ramos: berço da assistência às doenças infecto-contagiosas em Santa Catarina - As condições de trabalho da enfermagem de 1940 a 1960

 

Nereu Ramos Hospital: cradle of the assistance of the infecto-contagious diseases in Santa Catarina - The work conditions of nursing from 1940 to 1960

 

Hospital Nereu Ramos: origen de la asistencia de las enfermedades infecto-contagiosas en Santa Catarina - Las condiciones de trabajo de la enfermería de 1940 a 1960

 

 

Miriam Süsskind BorensteinI; Anesilda Alves de Almeida RibeiroII; Maria Itayra Coelho de Souza PadilhaIII

IProfessora Adjunto do Depto de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutora em Filosofia da Enfermagem UFSC. Coordenadora do Grupo de Estudos de História do Conhecimento da Enfermagem (GEHCE)
IIEnfermeira. Especialista em Enfermagem na Saúde da Família e Mestre em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Membro do GEHCE
IIIProfessora Adjunto do Depto de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutora em Enfermagem pela EEAN/UFRJ. Sub-Coordenadora do GEHCE

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo historiar o nascimento do Hospital Nereu Ramos, criado na década de 40 do século XX, em Florianópolis/Santa Catarina, caracterizado como o principal hospital destinado às doenças infecto-contagiosas, e busca ainda analisar as condições de trabalho oferecidas ao pessoal de enfermagem que lá atuava no período de sua implantação. Os resultados desta pesquisa, em uma abordagem histórico-social, mostram: uma estreita vinculação entre o poder de polícia exercido pelas autoridades sanitárias, no que se referia ao controle dos doentes e das doenças, em especial as moléstias infecto-contagiosas; e as relações no espaço intra-hospitalar que eram permeadas de um intenso controle e rigidez nas decisões e determinações tomadas pelas irmãs de caridade.

Palavras-chave: História da enfermagem. Condições de trabalho. Equipe de enfermagem.


ABSTRACT

The history of Nereu Ramos Hospital is presented here, since its birth in the 40's of the 20th Century, in Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, characterized as the main hospital that treats infecto-contagious diseases, and seeks yet, to analysis the work conditions offered to nursing personnel that work at that institution during its implantation period. The results of the research, from a socio-historical perspective, showed: a close relation between the police-power exerted by the sanitary authority referring the control of the diseased and their ailments, particularly the infectocontagious ones, and the relationship kept among the nursing staff members within the intra-hospital space that was went trough by an intensive control and strictness in the decisions and determinations that was took by the charity sisters.

Keywords: Nursing history. Work conditions. Nursing staff.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo historiar el nacimiento del Hospital Nereu Ramos creado en la década de 40 del siglo XX, en Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, caracterizado como el principal hospital destinado a las enfermedades infectocontagioses, y también intenta analisar las condiciones de trabajo ofrecidas al personal de enfermería que actuaba durante el período de su implantación. Los resultados de esta investigación, en un abordage historico y social, demuestran: una estrecha vinculacón entre el poder de policía ejercido por las autoridades sanitárias, en lo que se refiere al control de los enfermos y enfermedades, en especial las molestias infectocontagioses; y las relaciones en el espacio intrahospitalario que eran permeadas por un intenso control y rigidez en las decisiones y determinaciones tomadas por las hermanas de caridad.

Palabras clave: Historia de Enfermería. Condiciones de trabajo. Equipo de Enfermería.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Este estudo é fruto de um projeto abrangente, que vem sendo construído de forma gradual e consistente, denominado "Enfermagem em Santa Catarina - 50 anos de História" ª, o qual trata de construir a História da profissão da Enfermagem, a partir dos serviços de saúde, criados inicialmente em Florianópolis e posteriormente no interior do Estado.

A escolha pelo Hospital Nereu Ramos, como foco do estudo, deve-se ao fato de que foi o segundo hospital a ser construído em Florianópolis, em 1943. Até então existia apenas o Hospital de Caridade, criado em 1789, que atendia a pacientes que apresentavam doenças com implicações clínicas ou cirúrgicas. Esse primeiro hospital possuía uma enfermaria destinada ao tratamento de pacientes com tuberculose, mas não apresentava condições de atender outras situações de doenças infecto-contagiosas da população (Borenstein1).

No Departamento de Saúde Pública, criado no final dos anos 30, havia um setor para o atendimento de casos de moléstias infecto-contagiosas. No entanto, quando se tratava de internar os casos de pacientes mais graves, a capital do Estado carecia de instituições de saúde para este fim. Portanto, a criação do Hospital Nereu Ramos veio ao encontro de uma necessidade específica do Estado (Borenstein1).

A criação do Hospital Nereu Ramos fazia parte da política do Governo Federal de Getúlio Vargas, que era a da "eugenia da raça". Essa era uma filosofia que vinha permeando as políticas públicas dos países da Europa, especialmente aqueles de regime político totalitário (Alemanha - nazista e a Itália - fascista). Tal orientação parecia estar relacionada com o que Foucault2:197-201 abordou sobre as questões relativas à higiene, na qual medidas deveriam ser tomadas, em benefício da saúde individual e da comunidade, para a manutenção de uma espécie saudável e, principalmente, produtiva e geradora de riquezas. A saúde era um imperativo individual e grupal, e o Estado deveria sutilmente manter um certo poder de polícia no controle da manutenção da saúde.

Com essa mesma política, foram criados nesse mesmo período, nos municípios vizinhos de São Pedro e São José respectivamente, dois hospitais que denominamos de hospitais de exclusão, um em 1940, o Hospital Colônia Santa Tereza, destinado ao tratamento de pacientes acometidos pela hanseníase, então denominados leprosos; e o outro, em 1941, o Hospital Colônia Santana, destinado ao tratamento de doenças mentais. Esses dois hospitais, portanto, faziam parte da filosofia de disciplinar o espaço do doente e da doença, como também transformar as condições do meio em que o doente era colocado, um princípio que tinha por base "ter um lugar para cada coisa, e cada coisa ter um lugar" (Foucault2).

A partir da compreensão das razões que levaram à construção do Hospital Nereu Ramos em Florianópolis, percebemos a necessidade, de realizar uma investigação que nos permitisse aprofundar a análise sobre a formação de uma das primeiras equipes de enfermagem criadas na capital, considerando que poucos são os trabalhos que registram informações sobre os trabalhadores da Enfermagem daquela época. Assim surgiram as seguintes questões: Quem eram? De onde vinham? O que pensavam? O que sentiam? O que queriam? Quais as suas condições de trabalho?

Este trabalho tem como objetivo historiar o nascimento do Hospital Nereu Ramos criado na década de 40 do século XX, em Florianópolis/SC, caracterizado como o principal hospital destinado às doenças infecto-contagiosas.

A idéia de resgatar a história do Hospital Nereu Ramos de Florianópolis/SC, sua vinculação com as doenças transmissíveis e a inserção da Enfermagem, faz parte de um projeto amploª, que vem sendo desenvolvido por um grupo de pesquisadoras que fazem parte do Grupo de Estudos de História do Conhecimento da Enfermagem (GEHCE), vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (PEN/UFSC). Esse grupo, desde sua criação em 1995, tem como foco de investigação as raízes históricas da Enfermagem brasileira, desde o século XIX. Este estudo pretende contribuir para a construção do conhecimento da História da Enfermagem em Santa Catarina e principalmente dar visibilidade aos trabalhadores da Enfermagem, cuja contribuição não é reconhecida e que permanecendo no anonimato da História.

 

2. METODOLOGIA

Trata de pesquisa qualitativa com abordagem histórico-social. De acordo com Burke3:11-15, a nova história caracteriza-se por apresentar novas diretrizes como: 1) a substituição da narrativa tradicional dos acontecimentos por uma história-problema; 2) a substituição da história vista de cima, por uma vista de baixo, ou seja, a partir da opinião das pessoas que participaram direta ou indiretamente do cenário dos acontecimentos; 3) a não preocupação somente com documentos oficiais escritos, mas também com toda e qualquer evidência histórica; 4) a questão do relativismo cultural, negando que a história possa ser construída a partir do ideal, do neutro, objetivo, pois sempre haverá por parte de quem constrói uma certa subjetividade e, finalmente, a 5) possibilidade da interdisciplinaridade, ou seja, de um contato do historiador com outras profissões de abrangência humana, como: antropólogos, psicólogos, sociólogos, entre outros, de modo a construir uma história com inúmeras facetas.

A nova história permitiu que, nos últimos trinta anos, aparecessem inúmeras histórias notáveis, de coisas que nunca haviam sido pensadas como possuidoras de uma história, como a história da loucura, da infância, da morte, do clima, dos odores e de tantas outras.

Com essa nova perspectiva, os documentos formais existentes não são mais as únicas fontes para a História, porque às vezes eles são insuficientes e até mesmo inexistentes. Por isso, cabe ao historiador buscar novas formas de evidências para construir a História. Uma delas tem sido a História Oral (H.O.), que é um termo amplo, que recobre uma grande quantidade de relatos a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação ou cuja documentação se quer completar. Colhida por meio de entrevistas, de variadas formas, a H.O. registra a experiência já vivida por uma ou mais pessoas de uma mesma coletividade, para se investigar um determinado objeto (Burke3:25; Queiróz4:279).

Neste estudo, por haver escassas informações com relação ao trabalho desenvolvido pela enfermagem no Hospital Nereu Ramos, as práticas de enfermagem, as relações estabelecidas entre os exercentes de enfermagem que lá atuavam, entendemos que a H.O. traria algumas luzes sobre este assunto. Além disso, constatamos que, apesar do tempo transcorrido, duas pessoas que atuaram no cenário daquela época estavam lúcidas e orientadas, com possibilidade de colaborar com o projeto, concordando em participar das entrevistas.

Uma das entrevistadas é irmã religiosa e mora em uma cidade no interior do Estado. A outra, solteira, mora na Capital. Apesar da idade avançada (82 e 83 anos) e do tempo transcorrido, mostraram-se entusiasmadas e interessadas em participar do projeto.

As entrevistas seguiram um roteiro previamente elaborado pela equipe, com perguntas norteadoras, sem haver, no entanto, por parte das entrevistadoras nenhuma rigidez na sua implementação. Algumas outras questões foram sendo acrescentadas durante a entrevista, na medida em que as próprias entrevistadas informavam sobre determinados assuntos. As entrevistas foram realizadas durante o mês de outubro de 2001, na residência das entrevistadas. A transcrição de suas fitas foi realizada, tendo sido acertado com cada uma das entrevistadas/depoentes um retorno para a leitura do texto e assinatura da carta de cessão, validando assim os dados coletados.

É importante destacar que, antes de iniciar cada entrevista, as entrevistadas foram orientadas acerca dos objetivos da investigação e das questões éticas, do direito de recusar sua participação e de sair da pesquisa em qualquer fase do processo, sem que ocorresse qualquer tipo de prejuízo às suas pessoas (segundo os parâmetros estabelecidos na Resolução CNS nº. 196/96). Além disso, o projeto na sua íntegra foi aprovado pela Comissão de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina.

Também foram utilizados outros documentos que propiciaram contextualizar o estudo, do ponto de vista político, econômico e social, além de poder argumentar ou contra-argumentar algumas das informações recebidas das entrevistadas. Foram realizadas buscas de documentos escritos, bem como de jornais, revistas, livros e teses em algumas instituições de Florianópolis, como o Arquivo Público do Estado de Santa Catarina; Arquivo do Hospital Nereu Ramos; Biblioteca do Estado de Santa Catarina; Biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina e Museu Público de Santa Catarina.

Finalmente, de posse dos dados coletados, as pesquisadoras iniciaram o processo de análise dos mesmos. A primeira etapa do trabalho foi a transcrição e revisão de tudo o que foi gravado durante cada uma das entrevistas, resguardando o linguajar próprio de cada informante, suas pausas e até entonações. Num segundo momento, fez-se a leitura e releitura das transcrições e a codificação dos dados a partir do referencial foucaultiano, o que permitiu o estabelecimento de uma reorganização dos dados e a sua categorização.

A análise e a interpretação dos dados possibilitou a construção das seguintes categorias: a) O Hospital Nereu Ramos, sua arquitetura e infra-estrutura; b) Os funcionários de enfermagem; e c) As condições de vida e de trabalho dos funcionários de enfermagem.

 

3. HOSPITAL NEREU RAMOS, SUA ARQUITETURA E INFRA-ESTRUTURA

A construção do Hospital Nereu Ramos foi iniciada em 1940, sendo amplamente divulgada pelos órgãos da imprensa local, em especial pelo Jornal "A Gazeta (09 de janeiro de 1943)", que destacou sua importância para o atendimento das populações da Capital e do Estado. O terreno foi doado pelo governo federal, através do Ministério da Educação e Saúde, e, segundo Liz e Feuerschuette5:8, ele estava situado em local retirado, elevado, amplo e circundado de ar puro e com magnífica vista para o mar. Embora dentro do perímetro urbano e com fácil acesso às comunidades, o local escolhido manteve-se livre de poeira e outras conseqüências desagradáveis do tráfego urbano.

Segundo o Jornal A Gazeta 6 e o Relatório do Governo Estadual 7, o Hospital Nereu Ramos foi edificado em uma área de 3.310m2. O prédio era composto por cinco pavilhões, ligados por passagens cobertas. Além de destaque no tratamento das doenças infecto-contagiosas, o Hospital foi considerado como uma grande obra estética, por sua beleza, fazendo com que as autoridades locais e os demais segmentos sociais manifestassem um grande orgulho por sua construção.

A capacidade inicial do Hospital era de 100 leitos, sendo que 60 deles se destinavam para os casos de tuberculose e 40 leitos para os casos de outras moléstias infecto-contagiosas. Os leitos estavam distribuídos em seis enfermarias separadas por sexo, quatro delas para adultos e duas para crianças. Em cada enfermaria, os leitos eram separados por meias-paredes para permitir maior conforto e privacidade aos doentes. Ao invés de campainhas, as chamadas eram efetuadas através de sinais luminosos localizados fora das enfermarias e à vista do pessoal de enfermagem, e "uma lâmpada tranqüilizadora" localizada ao lado de cada leito permanecia ligada enquanto o doente não fosse atendido (Liz; Feuerschuette5).

Segundo uma das entrevistadas (Vieira8), as condições do Hospital Nereu Ramos eram excelentes, principalmente em termos de material, pois não faltava nada, tinha muita fartura. Provavelmente, isso ocorria em função do iníco das atividades do Hospital sendo ele, o foco das atenções das autoridades locais. Os serviços especializados, como os raios X e a farmácia eram administrados e operados pelas religiosas da Congregação Divina Providência, que costumavam realizar os exames dos pacientes, além de se responsabilizarem pela compra dos medicamentos e distribuição dos mesmos nas enfermarias, conforme estabelecido nas prescrições médicas (Liz; Feuerschuette5).

 

4. OS TRABALHADORES DE ENFERMAGEM

Conforme indicado por Westrupp9, os funcionários que atuavam no serviço de enfermagem do Hospital Nereu Ramos dividiam-se em dois tipos de trabalhadores: (a) as religiosas da Congregação Divina Providência que, em geral, assumiam as enfermarias como supervisoras e como responsáveis pela execução de cuidados considerados mais complexos; (b) as práticas de enfermagem, funcionárias que aprendiam a profissão no cotidiano do serviço, em geral com as funcionárias mais antigas. Posteriormente, elas foram submetidas a uma banca examinadora, constituída por enfermeira e médicos no Departamento de Saúde Pública de Florianópolis, para receberem o certificado de Prático de Enfermagem, quando aprovadas (nota das autoras).

Os demais funcionários, que eram contratados pela Superiora, como serventes, e que atuavam nas enfermarias sob as ordens das irmãs supervisoras, realizavam serviços de limpeza de materiais e da enfermaria. Elas também, ao longo do tempo, poderiam ser promovidas para executar as atividades de enfermagem, da mesma forma que as práticas de enfermagem, porém sempre supervisionados pelas irmãs.

Borenstein1:62-64, em estudo relativo à atuação das irmãs da Divina Providência em outra instituição, afirma que, na realidade do Hospital de Caridade, as irmãs da Congregação Divina Providência assumiam como chefes todos os outros serviços especializados, além da Enfermagem, dos raios X e da farmácia. Assim pode-se depreender que outras irmãs também eram encaminhadas pela referida congregação para o Hospital Nereu Ramos, no qual assumiam a chefia dos mesmos serviços, ou seja, de cozinha, limpeza, rouparia e lavanderia.

A Irmã Superiora era responsável pela administração do Hospital e pelas demais irmãs sendo elo de ligação entre a direção do mesmo e a Congregação. Todas as irmãs atuavam no Hospital estando diretamente subordinadas à irmã superiora, a quem deviam obediência. Afinal, como religiosas, elas haviam feito os votos de obediência, pobreza e castidade, sendo-lhes proibida a insubordinação contra a ordem estabelecida, especialmente a ordem religiosa.

A autoridade da superiora caracterizava-se pelo "poder da fala", ou seja, de porta voz autorizado, que se exprime em situação solene, e, às vezes nem tão solene, e que dispõe de autoridade cujos limites coincidem com a delegação da instituição Bourdieu10: 87, neste caso a Congregação Divina Providência.

Os demais funcionários provinham, em sua maioria, do interior do Estado de Santa Catarina. As mulheres deveriam ser solteiras e de boa índole. Em geral, a irmã superiora realizava a entrevista de admissão com os candidatos e, seguramente, era ela que decidia sobre sua contratação, para posterior encaminhamento à direção do Hospital. Havia uma política, não explícita, de contratar pessoas que viessem do meio rural, por serem pobres, simples, menos instruídas e mais submissas, na presunção de que elas se adaptariam melhor ao trabalho. Também foram evidenciadas estas atividades da irmã superiora em estudo sobre o Hospital de Caridade da cidade de Florianópolis, a qual assumia a responsabilidade pelo controle de todo o serviço de enfermagem (Borenstein e Padilha11). Os requisitos para contratação eram a boa saúde do candidato e sua disposição para fazer todo tipo de trabalho na instituição. Não havia um treinamento prévio e, em geral, o funcionário mais antigo ensinava o que sabia ao funcionário recém admitido.

Mesmo os funcionários que procuravam o Hospital Nereu Ramos para trabalhar no serviço de enfermagem, inicialmente eram encaminhados para outros serviços como, por exemplo, a cozinha ou os serviços gerais, até que se adaptassem. Posteriormente, eles poderiam trabalhar na Enfermagem, conforme Vieira8 informa:

Eu disse para a freira que eu queria trabalhar com os doentes. Mas, aí ela falou assim: por enquanto, a senhora começa a trabalhar na cozinha, vai se acostumando com a casa. Naquele tempo não era como hoje. Elas decidiam. Trabalhei dois anos na cozinha. Ai, comecei a trabalhar com os doentes.

O serviço de enfermagem, por ser considerado mais especializado, deveria contratar pessoas após uma espécie de treinamento, em empregos anteriores. Em geral, as pessoas ingressavam no Hospital sem possuírem conhecimentos específicos da área em que iriam atuar. Elas realizavam um rodízio e treinamentos informais em cada um dos locais por onde passavam (Vieira8)b.

As irmãs avaliavam as condições apresentadas pelas candidatas e candidatos para o cumprimento das tarefas. Essas condições não estavam diretamente ligadas ao serviço onde iriam atuar, mas sim ao comportamento e à postura. Segundo Liz e Feuerschuette5 era proibido o namoro e a conversa com o sexo oposto.

Havia uma preocupação com a manutenção da ordem, da disciplina e do controle sexual. De um modo geral, a preferência era dada às pessoas dóceis, meigas, ingênuas, tímidas e receptivas, que se submetiam à ordem estabelecida (Borenstein1). Até porque, à época, a moral e os bons costumes regulavam rigidamente a sociedade. A manutenção de uma vida sexualmente ativa deveria estar sempre vinculada ao matrimônio. Fora dele, essas práticas não eram aceitas, especialmente para as mulheres, embora fosse compreensível e permissível aos homens, mesmo àqueles casados, freqüentar as "casas de tolerância" que existiam na cidade.

Essas idéias acerca do comportamento dos trabalhadores de enfermagem vêm ao encontro das posições emitidas por Florence Nightingale12:6 em meados do século XIX, quando preconizava a idéia de que a Enfermagem deveria ser considerada como arte, com motivação religiosa exigindo estudos e aperfeiçoamento constantes, exercendo influência moral pelo que delas emana, quase sem que o percebam. Tais idéias foram sendo difundidas pelo mundo e as escolas fundadas sob sua influência consideravam a necessidade de as enfermeiras garantirem os aspectos relativos à moral e aos bons costumes da época.

Isso pode ser percebido quando da criação da primeira escola de enfermagem brasileirac a adotar o modelo anglo-americano para o ensino de enfermagem, instituição educacional, na qual as qualidades consideradas necessárias (para a enfermagem norte americana e pelos médicos brasileiros) para que uma enfermeira pudesse ser considerada "boa" podem ser evidenciadas no discurso proferido em 1923d, provavelmente pela primeira Diretora da escola, Miss Clara Louise Kieninger13, para as alunas da Escola de Enfermagem Anna Nery. Miss Kieninger (1923) disse:

(...) acerca de uma aluna; perguntaram-me se era orgulhosa, retraída, pois não podiam decifrá-la.(...) que era atenciosa, cortês, mas que somente respondia sim ou não às suas perguntas, indagando quando não compreendia; que não conversava com os médicos, mas que silenciosa fazia seus deveres... eles a respeitavam e disseram que era o tipo de enfermeira que gostariam de ter se estivessem procurando uma boa executiva.

A idéia de uma boa executiva comparava-se à de uma "boa enfermeira" que só responde sim ou não, e principalmente não questiona as determinações médicas, mantendo assim o ideal da docilidade e formando as alunas no espírito do servir e do cuidar, preconizado pelas ordens religiosas e referendado por Florence Nightingale (Padilha14: 132-133).

 

5. AS CONDIÇÕES DE VIDA E TRABALHO DOS FUNCIONÁRIOS DE ENFERMAGEM

Eram previamente estabelecidas pela irmã superiora em consonância provavelmente com a direção geral do hospital. Os funcionários, ao serem admitidos, passavam a morar no próprio Hospital, em regime de internato. Os seus momentos de trabalho, vida e lazer ocorriam integrados de tal modo que se confundiam. Quando as irmãs achavam necessário, o funcionário poderia ser retirado de sua folga para voltar ao trabalho, já que elas tinham o controle sobre sua localização. Esse controle sobre os funcionários aproxima-se daquilo que Goffman16 refere sobre as instituições totais. Nelas, o indivíduo mora, trabalha e tem o seu lazer em um mesmo local realizando todas as suas atividades cotidianas dentro dele.

O contrato de trabalho era de oito horas diárias, conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)e. Entretanto, não era incomum que os funcionários trabalhassem o dia inteiro e a noite também, conforme informações fornecidas por Vieira8:

A gente trabalhava o dia todo e, às vezes, à noite. Às vezes tinha cirurgia que o Lobato queria operar, que tinha paciente que era obrigado a operar em cima da hora. Nós tínhamos que limpar a sala e fazer de tudo. Não se tinha horário para dormir, se tinha serviço, não dava para dormir.

Vieira8 ainda destacou os motivos pelos quais os funcionários trabalhavam às vezes durante o dia e a noite, apontando para a insuficiência de recursos humanos para dar cobertura em todos os horários de trabalho. Ressalta também que os funcionários tinham de atender aos pacientes, à portaria, ao telefone chegando a fazer faxina. Assim, a entrevistada/depoente destaca que os funcionários trabalhavam "em tudo" dependendo do chamado e da designação das irmãs.

Cinco horas da manhã era o horário de os funcionários acordarem. Às seis horas eles eram obrigados a assistir à missa, rezada pelo padre que também morava na Instituição, juntamente com as irmãs. Somente depois eles faziam a refeição matinal e começavam os trabalhos no Hospital. Havia uma pausa de uma hora para o almoço, com retorno imediato ao trabalho. No horário noturno, aconteciam os ensaios do coral e as novenas. Nessas atividades participavam os funcionários que não estavam no campo de prática (Liz, Feuerschuette5).

Quanto à natureza do trabalho propriamente dito, além de cuidar dos doentes nas suas necessidades, os funcionários também faziam a higienização do ambiente e até dos banheiros, conforme pode ser constatado através da fala de Vieira8:

...quando a gente limpava o banheiro, deixava tudo limpinho né. A freira fiscalizava. Ela espiava, olhava, olhava!!! A gente limpava cedo. Aí ela dizia pros pacientes: "olha vocês estão vendo como a moça limpou, como está limpo. Eu não quero papel higiênico no chão, não pode deixar chiclete no banheiro. Aí, ela ajudava a gente. Ela cooperava.

Nesse depoimento observa-se a fiscalização e o exame exercidos pelas irmãs sobre o trabalho das funcionárias e a manutenção de um controle dos pacientes, no sentido de como eles deveriam proceder em relação aos hábitos de limpeza. Essa era uma prática bastante comum das irmãs em relação a todos que trabalham no Hospital e não apenas dirigida aos funcionários da enfermagem.

Essas atitudes vão ao encontro do que Foucault17, afirma, ou seja, este exame é silencioso e vigilante e a observação sobre cada indivíduo da rede de poder é constante e também minuciosa: o médico examina o doente, a irmã examina os espaços e as pessoas, os funcionários de enfermagem são examinados, a direção examina e determina os "dispositivos" do cotidiano, e também é esquadrinhada e submetida aos movimentos de resistência de todos os demais. Essa é uma verdadeira "pirâmide de olhares" que se constrói através de uma vigilância perpétua.

A fala de Vieira8 destaca as influências políticas sobre as condições institucionais. Vieira8 refere que: quando mudou a política, e entrou o Roberto Laparpire, ele era muito bom (provavelmente um administrador). Depois entrou o Dr. Hélio Rodrigues, aí melhorou tudo para nós. Mas no começo a vida era muito dura. A partir desse depoimento, percebe-se que a vida no Hospital, embora não fosse considerada ruim por parte das entrevistadas, não era fácil. Trabalhava-se o tempo todo, com intenso controle. O controle por parte das irmãs, sobre os funcionários e pacientes, era permanente, pois eles, permaneciam durante todo o tempo na instituição, onde acordavam, trabalhavam e dormiam, o que permitia uma vigilância contínua e constante.

O hospital pode ser entendido como uma instituição onde cada indivíduo desempenha papéis específicos e estão inseridos em um espaço individualizado e classificatório. Um local onde o tempo é controlado, as atividades são previamente determinadas, a disciplina estabelece a sujeição do corpo ao tempo e a vigilância é um dos principais instrumentos de controle (Santos8).

Em estudo realizado por Padilha14 sobre a atuação das Irmãs de Caridade de São Vicente de Paulo, na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, no século XIX, a autora observa um cotidiano semelhante, ou seja, de que a rotinização do tempo para o cumprimento de horários e tarefas mantidas pela hierarquia da direção do hospital sobre os médicos e as irmãs da congregação, e destes, uns sobre os outros e ambos sobre os demais empregados, comanda e controla as atividades administrativas e assistenciais do hospital, mantendo também em ordem toda a estética ambiental, relativa à aparência física e higiênica das enfermarias. A rotina do trabalho permite o ordenamento e a disciplina do espaço que é contínuo e previsível.

 

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo percebemos uma estreita vinculação entre o poder de polícia exercido pelas autoridades sanitárias, no que se referia ao controle dos doentes e das doenças, em especial as moléstias infecto-contagiosas, e as relações entre o pessoal de Enfermagem no espaço intra-hospitalar. Essas relações eram permeadas de um intenso controle e rigidez nas decisões e determinações. Não havia possibilidades de discussão, as irmãs e os médicos mandavam e os demais obedeciam.

Assim como as irmãs eram mantidas num controle absoluto determinado pela Igreja e pela Congregação, através da Irmã Superiora, pois elas haviam proferido votos de obediência, pobreza e castidade, também, os funcionários leigos subalternos eram mantidos com igual rigor pelas irmãs supervisoras, cuja autoridade e responsabilidade lhes haviam sido concedidas por serem religiosas. Além disso, a prática na enfermagem era adquirida, sem um treinamento formal para a atividade. Aqueles com mais "jeito" eram promovidos para a função, embora seu conhecimento fosse distante do que deveriam possuir. Portanto, além do grande controle em que a enfermagem era mantida, era pouco o conhecimento que o pessoal possuía acerca da profissão.

 

REFERÊNCIAS

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2. Foucault M. Microfísica do poder. 8.ed. Rio de Janeiro (RJ): Graal; 1989.

3. Burke P. A escrita da história. 2.ed. São Paulo (SP): UNESP; 1992 (p. 11-15, 25).

4. Queiròz MI. Relatos orais: do "indizível" ao "dizível". R.Ci e Cult 1987 mar.3(39):272-90.

5. Liz TG, Feuerschuette K. A historicidade da tuberculose no Hospital Nereu Ramos em Florianópolis - SC, nas décadas de 40 e 50. Florianópolis (SC), 2001. (Trabalho apresentado na disciplina "Pesquisa Histórica para enfermeiros" do Curso de Mestrado, do Programa de Pós Graduação em Enfermagem da UFSC) não publicado (p. 8).

6. A GAZETA. Flagrantes administrativos. Florianópolis, 09 jan. 1943.

7. GOVERNO ESTADUAL (SC). Relatório das atividades anuais - 1943. Florianópolis (SC); 1943.

8. Vieira MM. Entrevista concedida a pesquisadora Tatiane Gobbatto de Liz. Florianópolis, 22de outubro de 2001. Gravado. Texto com as pesquisadoras no Departamento de Enfermagem da UFSC. (Fontes orais - entrevista)

9. Westrupp, Apolonia. (Irmã). Entrevista concedida a pesquisadora Anesilda Alves de Almeida Ribeiro. Tubarão, 20 de outubro de 2001. Gravado. Texto com as pesquisadoras no Departamento de Enfermagem da UFSC. (Fontes orais - entrevista)

10. Bordieu, P. A economia das trocas lingüísticas: o que falar, o que dizer. São Paulo (SP): Edusp; 1996. p. 85-126 (p. 85-126, p. 87).

11. Borenstein MS, Padilha MICS. O cotidiano de irmãs enfermeiras num hospital de caridade em Florianópolis na década de 50. Esc, Anna Nery R. Enferm. V.5, n.1, p.53-63, abr.2001.

12. Nightingale, F. Notas sobre enfermagem. O que é e o que não é. São Paulo (SP): Cortez; 1989 ( p. 6).

13. Kieninger MCL. Analisando o ideal. In: CARVALHO, V, SAUTHIER, J. Catálogo de História da Enfermagem Brasileira, volume 1 - A missão Parsons (1922 - 1931), Rio de Janeiro (RJ): EEAN/UFRJ; 1923. p 49.

14. Padilha MICS. A mística do silêncio: a enfermagem na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro no século XIX. Pelotas (RS): UFPel; 1998 (p. 132-133).

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NOTAS

ª Aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 2001.

b Os rodízios e o treinamento informal era feito pelas irmãs e/ou funcionários mais antigos e tinha por objetivo promover o desenvolvimento nos novatos das habilidades necessárias ao desempenho das funções para as quais seriam deslocados (nota das autoras).

c O curso foi organizado pela Enfermeira americana Ethel Parsons, que introduziu o modelo nightingaleano de enfermagem no Brasil. Em 1925 a Escola de Enfermeiras Dona Ana Neri ainda nem existia a denominação de UFRJ. A entrada da Escola na Universidade do Brasil, criada em 1923, somente aconteceu em 1937. Ethel Parsons foi a Chefe da Missão de Enfermeiras e Superintendente do Serviço de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Ela não foi a organizadora da Escola de Enfermeras do DNSP. O curso da Escola foi organizado pela sua Superintendente Clara Louise Kieninger (SAUTHIER15).

d O Discurso "Analisando o ideal" é um documento de 03 páginas que consta no catálogo História da Enfermagem Brasileira, volume 1 - A Missão Parsons (1922 - 1931), p.49, organizado por Vilma de Carvalho e Jussara Sauthier e publicado pela EEAN. Trata-se de um documento s/d, mas assinado por Miss Louise Kieninger - Superintendente da Escola de Enfermeiras. Ele está localizado no módulo A, caixa 02, documento 14 do Centro de Documentação (CDOC) da EEAN/UFRJ.

e A CLT, foi inaugurada por Getúlio Vargas em 1943, tinha como objetivo oferecer a garantia de estabilidade aos trabalhadores especialmente aqueles que já trabalhavam há mais de dez anos, previa o descanso semanal, a regulamentação do trabalho do menor, da mulher e do serviço noturno; a criação da previdência e a instituição da carteira profissional em março de 1932 para maiores de 16 anos que exercessem um emprego; a jornada de trabalho fixada em oito horas de serviço diária (ENCICLOPÉDIA DIGITAL apud BORENSTEIN1).

 

 

Recebido em 30/06/2003
Reapresentado em 02/04/2004
Aprovado em 08/04/2004

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